“A resistência improvável, a ocupação impossível”
Reportagem na Palestina, por Renato Teixeira
São semanas confusas as que se vivem, por estes dias, no Médio Oriente, um território que tem pago caro as aventuras das potências que aí jogam, sem nenhum pudor, os seus interesses, à custa de elementares direitos humanos. Aqui todos sabem bem que ao aumento da confusão corresponde mais sangue derramado, sempre por aqueles que menos condições têm para se defender. O povo palestiniano vive desde o início da Nakba – tragédia; expulsão e extermínio dos palestinianos para a fundação e aprofundamento do Estado de Israel – uma violência sem paralelo, numa desproporção obscena relativamente a quem é vítima e agressor, levada a cabo por um projecto colonial já com 70 anos, e que se transformou numa das feridas que mantém todo o Médio Oriente em carne viva. Os palestinianos defendem-se levando a revolta a todas as esferas da vida onde o colonialismo israelita, sem memória e sem misericórdia, avança. Para embaraço dos poucos judeus que se mantêm verticais contra o que Israel tem feito, a verdade é que a sua estrutura política e militar sempre preferiu aprofundar a ocupação a partir o relatório do general das SS, Jürgen Stroop, que comandou a destruição do Gueto de Varsóvia, do que das teorias socialistas dos que alimentaram a ilusão de era possível construir uma sociedade justa por dentro do contexto de uma ocupação, numa coexistência que não implicasse a transformação do dia-a-dia dos palestinianos num pesadelo, como se veio a verificar. A mais violenta ocupação que sobra ao colonialismo enfrenta a mais abnegada das resistências, pelo que fica evidente que a revolta só terá fim quando terminarem as razões que a alimentam.
A noite cai em Jerusalém ao som das sirenes das ambulâncias, do latir generalizado dos cães, que nunca se habituam ao alvoroço dos disparos ocasionais dos militares. O dia acorda da mesmíssima maneira. Aqui e ali, do caminho que faço a pé ao longo da estrada de Damasco até à cidade velha, um palestiniano é revistado pela polícia, duas ambulâncias passam, mas pouco a pouco os sobressaltos vão dando lugar ao som da cidade. O eterno barril de pólvora parece mais cheio que nunca e isso sente-se no ar em cada esquina, desde que se aterra no Aeroporto Internacional de Telavive, uma das poucas passagens para quem quer chegar à Palestina.
Contrariando tudo o que foi escrito nos sucessivos acordos de paz, Israel continua sem definir as suas fronteiras, numa cavalgada permanente sobre os poucos quilómetros quadrados que sobram à Palestina. Do lado palestiniano, cada dia que passa é sinónimo que o país ficou mais pequeno. Ano após ano, acordo atrás de acordo, a realidade prova que a aventura colonial de Israel avança e a Palestina mantém-se incapaz de reunir o que precisa para ser um país soberano e independente. Olhar a evolução do mapa dá-nos uma visão avassaladora. A Palestina está circunscrita a cerca de 15% do seu território histórico, com todas as suas cidades praticamente sem contiguidade, no queijo suíço em que foi transformada a Cisjordânia. Gaza, cercada pelo muro de onde poucos entram e saem, foi convertida num gueto, uma prisão a céu aberto, onde até os poucos palmos de mar só podem ser usados consoante o humor de Israel e onde, a Sul, o Egipto há muito alienou a sua soberania e cuja fronteira está encerrada há 500 dias. Desde 2008, e sobretudo desde o massacre do ano passado, são raros os que conseguem entrar e muito poucos os que conseguem sair.
A rotina da violência colonial é arrasadora e chegou a todos os momentos da vida, a todas as horas do dia. O caminho das crianças para a escola, apedrejadas por colonos ou acossadas pelo gás, as revistas e os tiros das colunas militares, muitas delas feitas pela noite dentro, as sistemáticas demolições de casas e o inferno dos checkpoints, são exemplos que mostram bem que não há um minuto de sossego para quem vive ocupado. As sucessivas revoltas não são filhas de nenhum radicalismo. São a única maneira de sobreviver com dignidade.
Jerusalém
Jerusalém mudou muito nos últimos anos. Nota quem, como eu, só a conhece, mal, nos últimos vinte, mas quem, vivendo lá ou fora, testemunhou essa mudança ao longo das sete décadas de conflito. À data da minha primeira visita os palestinianos ainda se viam por todos os sectores da cidade, hoje são poucos e estão confinados ao lado que os sucessivos acordos de paz alegadamente lhes reservaram. Recordo, no tempo dessa visita, o olhar de um palestiniano no cimo da muralha da cidade, apontando com raiva para o emergente colonato israelita e segurando simultaneamente a chave de casa que lhe foi demolida e onde já só sobra o lugar. Assim percebi a dimensão da questão do direito de retorno, porque andavam os palestinianos com a chave das casas que foram ocupadas ou destruídas ao pescoço e porque não é possível uma solução pacífica e duradoura sem dar uma solução ao povo que foi expulso da sua terra. No olhar da esmagadora maioria dos palestinianos fica evidente que nenhum betão os separa do sonho de uma Palestina livre, de ver quem foi expulso regressar e de recuperar um modo de vida sem segregação.
Hoje, ao caminhar pelas ruas de Jerusalém, seja em que sector caminhe, procuro estabelecer paralelos com a Jerusalém que conheci nos anos 90, já fortificada e dividida, claro, mas muito habitada, diversificada, onde os múltiplos checkpoints não eram suficientes para separar as pessoas, mesmo dentro da cidade velha. Vinte anos depois o cenário é bem diferente, as barreiras do exército servem para separar ruas esvaziadas, centenas de lojas fechadas, do lado palestiniano pela brutalidade da ocupação e da sua política segregacionista, e do lado israelita por falta de clientela que abalou, e muito, até o turismo religioso. O lado cristão e o lado arménio estão assimilados e praticamente não se distinguem do lado israelita, com duas ou três vias sacras para que os fiéis façam o seu caminho com o mesmo frenesim e rapidez com que os turistas visitam a Torre Eiffel, o Parque Güell, a Big Ben ou os Jerónimos.
Jerusalém está a morrer desidratada às mãos daqueles que, fazendo-lhe juras de amor, a secam premeditadamente. Do lado palestiniano porque a política de Israel passa pelo confisco progressivo da parte Oriental, com sucessivas ordens de demolição e com o congelamento das autorizações de construção. Do israelita porque a ocupação, tão ávida tem sido em construir muros, tarda em perceber que também ela ficou cercada dentro dos muros que levantou.
Jerusalém Oriental é o que sobra à capital da Palestina ocupada, mas tudo o resto é uma cidade fantasma, militarizada, mas onde poucos trocam um olhar sem medo, vergonha ou fanatismo. Jerusalém está a deixar de ser uma cidade de todos para se tornar apenas e só numa gigante sinagoga, um campo de batalha entre quem a quer só para si e os que recusam a expulsão até ao fim das forças.
Depois de transformar Gaza, primeiro numa prisão e depois numa ruína, depois de ter cercado e recortado a Cisjordânia com um muro infame e ilegal de quase 800 quilómetros de comprimento, Israel voltou a centrar-se, nos últimos meses, a exterminar a presença árabe em Jerusalém, mesmo dos que têm cidadania israelita. Na capital que todos reclamam e que os acordos dividiram, só Israel manda e desmanda. Apesar da estratégia de Israel para o seu esvaziamento, a verdade é que Jerusalém Oriental ainda é a parte mais povoada da cidade e também a mais cosmopolita, com a diáspora dos amigos da resistência palestiniana e os palestinianos que aí resistem a serem uma presença com uma visibilidade que a diáspora judaica ou sionista não consegue. Do lado árabe respira-se menos a cada dia, mas respira-se. Do lado israelita, a política das provocações afastou tudo e todos da cidade velha, à excepção dos religiosos, transformando a cidade ora numa sinagoga exclusiva ora numa passerelle de militares. Do lado árabe os religiosos também resistem a caminho da Al-Aqsa, mas além dos chamados da mesquita, onde confluem muçulmanos de todos os cantos do mundo, ainda se vê a vida a acontecer ao ritmo do reboliço das crianças a jogar à bola nos becos ou dos trocares de olhares dos adolescentes apaixonados, de escada para escada na Porta de Damasco, essa mesmo onde Israel passou a liquidar sumária e sistematicamente qualquer palestiniano que não se prostre perante os sistemáticos arrastões militares. Os israelitas vivem cada vez mais longe do modo de vida moderno que lhes prometeram e remetem-se aos condomínios fortaleza, seja nas cidades seja nos colonatos, cercados pelas armas e pelo medo.
A cidade velha é toda ela um santuário, mesmo para abnegados materialistas. Ao caminharmos pelas ruas sente-se a magia de uma atmosfera que é uma testemunha de uma parte significativa da história humana e um dos locais determinantes para a arquitectura dos povos. Uma cidade onde até os cheiros são coloridos, onde as ruas escondem segredos com séculos, onde o burburinho dá ares de sinfonia e onde apesar de toda essa harmonia se sente também o dramatismo de se saber que poucas são as pedras da calçada que não foram pintadas por botas cardadas de sangue.
O último cemitério árabe colado às paredes da cidade velha é um bom exemplo da expulsão dos árabes da cidade. A primeira vez que ali estive ficou-me na retina a beleza do espaço, com as oliveiras e os ciprestes a dar a paz que boa parte destes mortos nunca tiveram. Hoje não sobram árvores e o cemitério é um dos muitos castigos a céu aberto com que os árabes muçulmanos são humilhados todos os dias. Do outro lado do muro onde está este cemitério, votado ao abandono e sujeito ao vandalismo dos colonos, está a Esplanada das Mesquitas, planalto que ostenta a mesquita Al-Aqsa, local onde Israel incentiva as provocações dos colonos.
A esplanada das mesquitas é um dos mais espantosos sítios que conheço. Eu, que nada tenho de religioso, saio sempre de lá revigorado. Pela luz, os mosaicos e as oliveiras, tudo cria um ambiente acolhedor e empático para quem quer que seja que lá vá sem ressentimentos. Não tenho nenhum fascínio pelo Islão, como por nenhuma outra religião, mas é inegável a força simbólica, quase mística, deste lugar.
Há checkpoints em todas as entradas para a esplanada das mesquitas, controlados pelo exército israelita. Só uma delas permite a entrada a não muçulmanos, em horários muito restritos e quando Israel não decide fechar o espaço a todos para o abrir aos colonos. À porta de cada um dos controlos militares a intimidação é permanente, e qualquer jogo, de palavras que seja, pode colocar um palestiniano em maus lençóis. Mesmo com quem não é palestiniano há um olhar de desdém só pelo interessa na visita. Curiosamente, o debate pode ser levado para o surrealismo, algo que permite demonstrar melhor o paradoxo da realidade que ali se vive todos os dias, onde os soldados israelitas questionam tudo e todos se são ou não muçulmanos, não sendo, eles mesmo, muçulmanos. O debate é curto, mas revelador:
IDF: É muçulmano?
– Não.
IDF: Então não pode entrar.
– E você é muçulmano?
IDF: “Jerusalém is not a good place for jokes”.
– Não.
IDF: Então não pode entrar.
– E você é muçulmano?
IDF: “Jerusalém is not a good place for jokes”.
Lá dentro o ambiente é de paz. Muitos rezam. Os turistas fotografam sem qualquer hostilidade. Outros deambulam. Em qualquer dos casos percebe-se que este é um local de grande tolerância, onde a beleza do espaço convida a tudo menos à guerra que ali se vive há demasiados anos, sobretudo desde que Israel ocupou a Palestina.
Intifadas sem número
Todos negam a terceira intifada e ao mesmo tempo ela parece estar em toda a parte. Todos dizem que numerar intifadas é um exercício disparatado, mas todos levam a intifada a todas as esferas da vida. Não podia ser de outra maneira e todos parecem ter alguma razão no ponto de vista. Há revoltas a cada vaga colonial israelita, pelo que as duas que se celebrizaram como as maiores estão longe de ser as únicas e, esta que alguns dizem ser a terceira é muito diferente de todas as outras. Desta feita, ao contrário das duas grandes revoltas não há uma direcção política definida, uma intenção, uma pauta reivindicativa concertada das organizações do campo palestiniano para fazer frente ao avanço colonial israelita.
A atravessar uma gigantesca crise de liderança e de sobrevivência, as organizações políticas que fizeram a história do campo palestiniano nos últimos 70 anos estão agora isoladas, sobretudo se estivermos a falar do seu prestígio junto da juventude radicalizada, daqueles que, já tendo perdido quase tudo, não conseguem perceber o horizonte que lhes é dado pelas organizações no terreno, ora esmagadas pela ocupação e pela clandestinidade, ora comprometidas, elas mesmas, com o colonialismo.
A natureza espontânea desta terceira grande revolta além da falta de direcção política está entregue ora ao voluntarismo ora ao desespero de quem já nada tem a perder, mas essa característica também a dota de um grau de imprevisibilidade que deixa Israel, mas também o campo institucional palestiniano, à deriva. Esta imprevisibilidade fere Israel como poucas outras revoltas, algo que se percebe pelo aumento do rácio de baixas israelitas face às palestinianas, que apesar de continuar desequilibrado tem uma assimetria com uma distância menor do que nos anteriores levantamentos. Esta capacidade, até ver, teve no entanto a proeza de dar ao lado palestiniano a certeza que, independentemente da ferocidade de Israel e do grau de falência das suas organizações políticas, a ocupação enfrentará resistência até ao último ser humano, no lugar e na hora que menos se espera. Não é uma revolta reprimível como eram as outras, uma vez que ela se identifica bem além das linhas das barricadas.
A forma como os palestinianos resistem foi-se diversificando e esta capacidade parece ter sido a chave para tornar a resistência insuperável por parte de quem ocupa. Se a ocupação se identifica em todo o lado, a resistência parece ser capaz de ter sempre uma resposta. Estejamos a falar da abertura de um túnel em Gaza à vaga de greves na Cisjordânia, estejamos a falar dos sistemáticos castigos militares de Israel até à segregação dos árabes com cidadania israelita. À ocupação absoluta dos israelitas, os palestinianos responderam com a intifada infinita.
Ocupações sem fim
Ali é palestiniano com cidadania israelita, o que o coloca no fim da cadeia alimentar da cidadania. Israel é um mosaico racista com muitos graus de direito (ou falta dele), consoante a identidade de quem se apresenta aos olhos do Estado e da Justiça. “A natureza segregacionista é evidente e facilmente comprovável nas escolas, nos hospitais, em todo o lado”. A todo o tempo, no que sobra de espaços mistos ou contíguos, os palestinianos são apedrejados e violentados, com particular gravidade nas ofensas comprovadas contra idosos, mulheres e crianças. Mesmo entre os judeus há os de primeira e os de segunda, sendo que aqueles que se opõem a Israel são imediatamente classificados de ‘self-hating jew’. Por exemplo, para os judeus etíopes, a terra não é tão prometida como para os judeus americanos, europeus ou russos, e uma vez chegados em Israel por ali ficam a fazer os trabalhos que outrora eram para os palestinianos e nenhum outro judeu aceita fazer. São o exército de mão-de-obra barata que acabou com o aumento da segregação dos árabes palestinianos.
Ali é um estudioso do Islão político e não tem dúvidas de que há uma revolta em curso, à qual prefere chamar de “intifada 2.0”, sublinhando o aspecto digital (ligado às redes sociais) e informal (sem direcção política) deste novo levantamento, que ganhou dimensão com a soma das provocações dos colonos na Al-Aqsa, que se somaram às demais violações quotidianas que a ocupação impõe. “Ao contrário das outras intifadas esta não tem nenhuma organização política palestiniana na retaguarda”, conta, confirmando que as acções são levadas a cabo quase sempre por jovens de vinte anos, que agem por sua conta e risco, e no lugar das pedras usam facas ou canivetes para atacar os colonos. “As ordens de Israel são para matar”, garante Ali, “o que dá origem a que os colonos matem primeiro e perguntem depois, não raras vezes plantando uma faca junto ao corpo da vítima”. Entre os ataques verdadeiros e os semeados há registo deles todos os dias num processo de revolta que, por não ser politicamente enquadrado, levanta toda a espécie de problemas a Israel. Podem matar quem os comete, mas não podem comprar nenhuma liderança política por um punhado de dólares, como em boa medida aconteceu para domarem as duas primeiras revoltas palestinianas.
A lista de execuções sumárias não pára de aumentar e quem as regista corre risco de vida. Assim aconteceu com o foto-jornalista brasileiro, Marcel Leme, Observador dos Direitos Humanos, que teve que sair à pressa de Israel perante as ameaças de morte que recebeu depois de fotografar um soldado das IDF a fuzilar Hadeel al-Hashlamon, estudante palestiniana de 18 anos, num checkpoint de Hebron. A viralização das imagens de Marcel Lemedeixou as autoridades israelitas em polvorosa, mas o seu relato foi demolidor ao denunciar a política que vigora nas forças militares: “a mulher aproximou-se de um posto de controle militar em Hebron, tentou abrir sua bolsa para mostrar que nada tinha. Assustado, um soldado teria disparado e, na sequência, outro oficial da IDF teria dado outro tiro.” O brasileiro permaneceu no local, fotografando, até que foi abordado por um soldado de forma intimidatória, acabando por sair de Israel temendo pela sua segurança.
Outra história, igualmente reveladora, é a tentativa de alguns, em Israel, de processar Imad Abu Shamsiya por ter filmado, em Al-Khalil, a execução de um jovem palestiniano já ferido e prostado no chão, sem que oferecesse qualquer ameaça aos soldados presentes. Em causa, a indignação gerada não só pelo fuzilamento, mas também pela frase que se ouve no vídeo onde um médico israelita dá a ordem ao soldado que executa a execução: “He’s Not Dead, Shoot Him In The Head”. Em Israel, para que se perceba bem o isolamento em que vivem as franjas progressivas, houve manifestações apoiadas por Avigdor Lieberman, com centenas de pessoas contra o castigo e em homenagem ao soldado que executou Abdul-Fattah al-Sharif.
Estes incidentes não são ocasionais, mesmo que seja ocasional a capacidade de os provar sem que sobrem dúvidas, em registo fotográfico ou em vídeo. Eles são testemunhas desta etapa do processo colonial de Israel, que com factos no terreno deixam perceber um conjunto de práticas coerentes com a limpeza étnica, não só de Jerusalém como de todo o lado onde Israel não teve força para expurgar a Palestina e a resistência dos palestinianos.
Os sinais do fundamentalismo sionista são cada vez mais hegemónicos. Durante uma conferência organizada pelos ‘Estudos de Segurança Nacional’, em Telavive, o ministro da Defesa israelita, Moshe Yaalon, afirmou que preferia o Daesh ao Irão, que no seu entender “será sempre o principal inimigo do Estado Judeu”. O radicalismo no campo sionista mede-se em números mas também em palavras. As sucessivas ordem de prisão para crianças parecem até uma pena menor face aos apelos à morte daqueles que alguns, em Israel, consideram serem apenas “futuros terroristas”. Bate todos os recordes a prisão de Ali Alqam, de apenas onze anos de idade, acusado de ser, ora pois, terrorista. O grau de atrocidades levou, por exemplo, a que o observador da ONU, Makarim Wibisono, abandonasse o território apontando o dedo a Israel. Outro exemplo foi o do Rabino Yitzhak Yosef, uma das maiores autoridades religiosas, quando afirmou que “se as nossas mãos forem firmes e se eu tivesse poder para governar, então todos os não judeus não poderiam viver em Israel.” Apesar da barbaridade de tudo isto não se julgue que a sociedade israelita ficou chocada. Bem pelo contrário. Uma sondagem recente levada a cabo pelo Pew Reserch Center, um think tank financiado pelos EUA, concluiu que metade dos judeus em Israel entende que os árabes deviam ser expulsos de Israel. O mesmo estudo, mostra que um em cada cinco adultos acha que a “limpeza étnica” é aceitável. Entre o universo do estudo, quatro em cada cinco judeus considera-se ortodoxo e somente um em cada cinco judeus seculares, dados de um Estado com uma proximidade assustadora do delírio de ser uma ocupação que se julga capaz de consumar o extermínio total da população anterior.
Fonte: Pew Reserch
A resistência cultural contra a ocupação
Amer Khalil é director do Teatro Nacional Palestiniano Al-Hakawati, e confirma a ideia de que Israel está a expulsar os palestinianos de Jerusalém, “não só aqueles que a visitavam e são de outras cidades na Palestina como aqueles que têm cidadania israelita e nasceram em Jerusalém”. Amer Khalil sabe bem disso uma vez que luta para manter o mais antigo teatro de Jerusalém com as portas abertas, e uma das ameaças é precisamente a falta de público, que com o muro e o isolamento de Jerusalém Oriental foi deixando de aparecer. É com carinho que recebe um jornalista português, que lhe dá bom pretexto para lembrar a visita a Lisboa, cidade que conheceu a convite do Teatro A Barraca.
Conta que o primeiro cinema de Jerusalém foi construído em 1950, que já enfrentou dois incêndios durante dois dos muitos confrontos com Israel. Com orgulho mostra-me as instalações do teatro, cujo facto de estar de pé é já de si uma vitória, ainda que continue a enfrentar grandes dificuldades.
Para Amer Khalil o teatro palestiniano tem grande valor, valor esse reconhecido pelos seus pares, seja a nível regional seja a nível internacional. “Tudo começou depois da guerra de 67, desenvolvido por políticos, sindicatos, militantes. Ganhou notoriedade nos anos 70, um espaço que foi sendo usado como uma ferramenta de luta contra a ocupação.
Entre eles houve um homem que se destacou, François Abou Salem, que se suicidou em 2011 e deixou de luto o teatro palestiniano e mundial. Amer Khalil contracenou com ele para fazer o “The Epic of Gilgamesh”, a tal peça com que esteve em cena não só no teatro A Barraca, mas um pouco por todo o mundo, dos EUA ao Japão, numa tournée fundamental para a denúncia da ocupação e para a causa palestiniana.
Nascido em Jerusalém, em 1964, cedo abandonou os estudos por não gostar da escola. “Foi terrível para os meus pais, que não sabiam o que fazer comigo”, lembra. Foi aprender electricidade e acabou por conhecer François Abou Salem, na altura director do Al-Hakawati, tinha então 15 ou 16 anos, e passou a trabalhar como técnico de luz. Em 1983, depois do segundo incêndio do teatro, passou a ser o braço direito de Francois para a recuperação do espaço, altura em que o encenador francês lhe detectou um talento especial para cantar e uma voz com potencial para virar costas às luzes e passar a brilhar no palco. A partir daí foi fazendo algumas peças e, em 89, dar inicio à tournée do “The Epic of Gilgamesh”, a tal que lhe permitiu conhecer perto de duas centenas de cidades em todo o mundo. No final, percebe que tinha que estudar teatro, que não lhe bastava o empirismo e uma voz boa, e o mesmo François Abou Salem incentiva-o a ir para Paris. Uma vez em França, país que o acolheu de 89 a 94, faz muitos estudos particulares, com muitos grupos, do Teatro Du Soleil a outros que mantinham intensa actividade em Paris. É uma altura em que aproveita para recuperar algum tempo perdido, lendo os livros e vendo os filmes que nunca tinha tido oportunidade de conhecer e que eram fundamentais para aprofundar a sua formação: “Em cinco anos recuperei muito do que devia ter aprendido na escola.”
Em 1990 foi quando o Al-Hakawati passou a ser o Teatro Nacional Palestiniano, e desde então é uma porta aberta a todos: “é a minha grande luta, se é de todos tem que ser acarinhado por todos, tem que ser visto como um prestador de serviços, das crianças aos adultos, e financiado pelas instituições”. Apesar da conversão em teatro nacional as dificuldades não diminuíram: “Temos muitas dívidas, às companhias de seguros, ao Estado, e temos tido muitas dificuldades”, onde sobreviver passou a ser a maior batalha: “para manter o teatro aberto temos que pagar, mas sozinhos não seremos capazes. Temos que ser apoiados regularmente.”
Para Amer Khalil, como já dizia Ali, “Jerusalém está a ser esvaziada, tornou-se muito difícil encher as salas. Antes as pessoas vinham, não só de Jerusalém como das cidades e vilas à volta, mas agora está tudo fechado e ninguém quer enfrentar um checkpoint para vir ao teatro. Antes as pessoas vinham ao teatro sem terem que passar por nenhum soldado israelita, vinham pelos campos, sem qualquer problema. Agora é uma tortura fazer uma simples viagem de vinte quilómetros, de Ramallah até aqui”. Partilha da ideia que Israel está a transformar Jerusalém numa cidade só sua, contra tudo o que foi acordo assinado. “Agora está tudo dificultado com a separação de Jerusalém da Cisjordânia. Isto está vazio. Tudo, não é só o teatro, são os mercados, é tudo. Jerusalém costumava respirar das cidades à volta, neste contexto está asfixiada do que lhe dá vida, as pessoas. Desde a segunda intifada é assim. Começou com os checkpoints, depois o muro, agora até dentro da cidade velha se vive um pesadelo.”
Sobre a realidade do teatro não esconde nenhum dos seus propósitos: “Aqui respiramos política. O que quer que faças, em cena, reflecte isso”. Khalil defende que devem continua a tentar ser cada vez “mais profissionais e menos panfletários”, o que, como também diz, “dota a mensagem de outra eficiência”. Explica que a cena cultural palestiniana em Jerusalém “está limitada a um grupo de intelectuais que corre à volta do que uns e outros produzem, muito distantes do povo, do público de uma maneira geral, que não tem condições de vir”. A falta de dinheiro reflecte-se no número de produções, uma vez que uma parte significativa das verbas acaba por ser canalizada para pagar dívidas e não para fazer teatro: “Temos produzido uma grande peça por ano, e duas pequenas, uma virada para as crianças, móvel, que podemos rodar em tourné. Mas tudo implica muito dinheiro, e o dinheiro não tem chegado. Temos apoios pontuais, mas somos um projecto que não pode de depender de ajudas pontuais.” Conta que desenvolvem o festival de marionetas, que tem o apoio da a ONU e da Autoridade Palestiniana (AP), mas é um financiamento irregular e insuficiente. Para o futuro deixa claro que, para sobreviver com condições, a realidade não pode continuar a ser o que tem sido, onde “depois de se conseguir dinheiro para uma produção acabamos condenados a ter que usar esse dinheiro para pagar as contas da água e da luz, que naturalmente sem água e luz não se consegue fazer nenhuma produção… é dramático. Sem teatro aberto, não há teatro,” conclui com lógica.
Para sobreviver lançaram a rede dos amigos do Al-Hakawati, com o objectivo de criar um fundo de doações nacionais e internacionais. Estão também a negociar com a AP para contornar os muros burocráticos, uma vez que tal como ficou estabelecido com o acordo de Oslo a Autoridade Palestiniana não pode financiar nada do que aconteça sob jurisdição israelita, como acontece com tudo em Jerusalém, mesmo no sector Oriental confiado supostamente aos palestinianos.
Explica-nos, com pormenor, porque são cidadãos de quinta categoria: “Aqui não somos sequer autorizados a votar, a não ser para as autárquicas. Antes de 67 votávamos para a Jordânia”. Depois dos acordos manteve a nacionalidade jordana, com direito a cidadania israelita, mas essa cidadania só lhe permite votar para as eleições municipais. “Podemos votar para a AP, em Ramallah, numa urna especial para nós, mas ela não tem jurisdição em Jerusalém, pelo que não beneficiamos directamente das nossas escolhas”. Sobre a realidade política, e porque o teatro quer manter a sua dimensão nacional, defende uma relação saudável com todos os partidos: “procuramos acolher todos os que aqui querem desenvolver actividades”, e sobre a ocupação israelita diz ser algo que não há muito a dizer a não ser que é “uma história feia que mais cedo ou mais tarde tem que acabar. Não posso fazer uma análise de algo que nem sequer devia existir. Israel tem sido tão cruel, e o mundo tem sido tão complacente, procurando legitimar uma ocupação, dar-lhe lógica, defini-la com outras palavras, com eufemismos. A ocupação é ocupação, não pode ser mascarado. É um jogo sujo que não pode continuar. Qualquer discussão que se perca na discussão dos termos está a legitimar a ocupação, torna-a aceitável, e isso é intolerável. Chegámos ao século XXI, o tempo das ocupações acabou”. Defende que “os povos de ambos os lados são os primeiros a pagar o jogo sujo da legitimação”, e não deixa de ser duro para com o seu lado: “Não há liderança na revolta palestiniana. É uma revolta da tristeza, do desespero. Cada um toma as suas decisões baseadas no desespero, na ausência de uma estratégia.” Explica também como é fácil perder a cabeça na ocupação: “Eu próprio, em tempos, depois de estar no carro três horas com as crianças a berrar e os soldados sem me deixarem passar, acabei a conduzir contra os soldados do checkpoint. Estive perto de matar três soldados em consequência da humilhação e do desespero que aquela realidade provoca. Hoje estaria morto, mas quando o fiz tive sorte. É muita pressão, muita humilhação, muita pobreza. Tem que haver consequências e o desespero é inevitável.”
Um dos temas que o deixa amargurado é a realidade em Gaza, por também lá ter desenvolvido a sua dramaturgia: “O que se passa em Gaza é o cúmulo. Um milhão e meio de pessoas enclausuradas. Como podem sobreviver, inclusivamente psicologicamente? Estão todos deprimidos ou desesperados. Eu trabalhei lá, lembro como era diferente. Agora já não me deixam entrar e a última vez que consegui já foi em 2008”. Por tudo isto está convencido que a estratégia de Israel passa por levar os palestinianos ao limite: “Estão a querer levar-nos à loucura e daí a multiplicação dos actos individuais.”
Apesar de pessimista sobre a actualidade acha que no futuro o mundo vai acabar por assumir as suas responsabilidades e isolar Israel: “Acredito que com o tempo, e atenção que não acredito que haverá solução no meu tempo de vida, mas acredito que as futuras gerações serão capazes de criar uma solução. Com a quantidade de ódio acumulado nada se vai resolver de um dia para o outro”. Sem hesitar defende que os palestinianos expulsos “têm que ter o direito de voltar”, que “não haverá solução duradoura se não for encontrada uma solução”. Para tal reconhece que algumas pessoas “vão ter que ser convencidas a desistir da casa do lado israelita, mas o lado israelita tem que aceitar que a Palestina seja um estado viável, com todos os direitos dos estados independentes, e não uma Autoridade Palestiniana com poder e autonomia muito limitados.”
A dimensão do extermínio
Cada vez que algum jornalista escreve que Israel é um Estado colonial, de natureza segregacionista, que construiu um apartheid entre os seus cidadãos e entre os seus cidadãos e os outros, que há um registo criminal de práticas que configuram uma sociedade que se alimenta do extermínio de outra, logo Israel faz soar as sirenes do antissemitismo. Por cada facto que se apresente para ilustrar essa realidade, Israel esbraceja acusações infundadas que cavalgam sem nenhum decoro os problemas de consciência da humanidade relativamente ao holocausto, usando essas cicatrizes como salvo conduto para amnistiar as suas próprias atrocidades.
Recordemos, tal como na questão territorial, os números dos factos, algo que propaganda nenhuma consegue contornar. Só desde o ano 2000 que a cada três dias morre uma criança palestianana. Cerca de 35% da área de Jerusalém Oriental foi ocupada por colonatos com meio milhão de habitantes. As licenças de construção estão proibidas para os palestinianos e 14 mil foram expulsos da cidade velha. Duas mil casas foram demolidas – muitas destruídas pelos próprios habitantes para evitarem a multa que o tribunal israelita faz o desalojado pagar pelo uso do bulldozer – e há 20 mil casas cuja ordem de demolição já foi aprovada. Cerca de 75% dos palestinianos de Jerusalém Oriental vive abaixo do limiar da pobreza, com a sobrevivência agravada pelo elevado custo de vida, consequência do facto de 80% das importações da Palestina serem controladas por Israel, que cobra 20% de impostos sobre todos os produtos. Somam-se 8600 oliveiras queimadas ou envenenadas por Israel, que faz o mesmo em boa parte dos terrenos agrícolas. O Muro tem uma extensão aproximada de 760 km, entre a Cisjordânia e Israel, sem contar com os 100% da fronteira da Faixa de Gaza. O muro é ladeado por uma faixa de 60 metros de largura, designada por área de exclusão, em 90% da sua extensão, e a muralha de chega a ter 8 metros. Só desde outubro de 2015 e só nos checkpoints da Cisjordânia já foram assassinados 61 palestinianos. (Fonte: Euro-Mediterranean Observatory for Human Rights).
Nas semanas que antecederam e sucederam esta reportagem multiplicaram-se as notícias que deixam claro uma nova vaga de provocações israelitas, numa cadência que resulta em fuzilamentos sumários de palestinianos praticamente a cada dia, num conjunto amplo de acções que visam invariavelmente a alimentação de um estado de guerra e de agressão permanente. São por isso muitos e diversificados os exemplos da política de Israel para aumentar o grau de provocações: entrada de colonos na esplanada das mesquitas; detenções arbitrárias, que duram indefinidamente sem acusação formada, a bater todos os recordes mesmo noutros picos da ocupação; invasões diárias aos campos de refugiados; a transformação de Gaza num inferno onde o bloqueio já só permite quatro horas diárias de abastecimento eléctrico por dia; amnistia, activa ou passiva, da generalidade dos crimes contra os palestinianos, sejam eles o arquivamento do caso do assassinato das quatro crianças na praia de Gaza, há dois anos, sejam eles a ausência de castigo que dê um mínimo de justiça no caso dos colonos que assassinaram um bebé palestiniano. Sempre que o crime é israelita pouco ou nada acontece, o simples afastamento do exército dos militares que foram apanhados a fuzilar pessoas desarmadas e em rendição, é pouco provável por mais do que o par de semanas em que o assunto é notícia.
Recentemente soma-se a greve de fome do jornalista Mohamed Alqeeq, que acabou por conseguir que fossem atendidas as suas reivindicações, ou a expulsão do cirurgião norueguês Dr. Gilbert, em Gaza, ou ainda a condenação de Leila Khaled, deputada da FPLP e advogada palestiniana ligada à luta pelos direitos humanos. Casos como estes tornaram-se a rotina da vida debaixo da ocupação, não a excepção. Israel pode gastar milhões em propaganda para ocultar essa evidência, mas ela fala muito alto. De volta aos números, percebemos incrédulos que só em 2015 foram assassinados 170 palestinianos, foram feridos 15377, detidos 6800 e 11 mil casas receberam ordem de demolição. Quem queira demonstrar que isto não configura um quadro de segregação e de extermínio, de limpeza étnica, vai ter que apresentar mais do que declaração de intenção e impressões pessoais para negar os destroços provocados por obscenos ciclos de violência que Israel repete com uma obsessão tão cruel como sistemática.
Depois do último castigo massivo a Gaza, em 2014, em 2015 Israel já superou os crimes de guerra de que qualquer outro Estado, mesmo que se inclua no paralelo o terror do famigerado Estado Islâmico. Execuções extra-judiciais, uso de munições reais sob civis, detenção prolongada sem acusação formada de todo o tipo de cidadãos, nacionais ou internacionais, novos ou velhos, em função do exercício das suas funções, como pessoal médico ou jornalistas, ou simplesmente transeuntes como turistas religiosos ou habitantes cuja acção não obstaculiza sequer a ocupação, são práticas generalizadas. Uso de crianças, mas também de adultos, como escudos humanos, rapto sem mandato de palestinianos, demolição de casas e construção de colonatos, veto fronteiriço que chega a afectar eurodeputados e diplomatas palestinianos que procuram entrar na Palestina, uso de materiais proibidos como o fósforo branco ou o uso de gás lacrimogéneo fora do prazo de validade e aplicado contra todas as convenções, enfim, um cadastro inesgotável que é negado ou mistificado por Israel contra todas as provas e evidências que, apesar das dificuldades, se conseguem comprovar no terreno dos factos.
A humilhação psicológica, como seria de esperar, faz parte de todo o processo. Abertura e fecho aleatório das vias de trânsito e dos checkpoints, revistas violentas sem qualquer pretexto, entrada de colonos na esplanada das mesquitas apenas e só com o intuito de ferir a comunidade religiosa, provocações sistemáticas nos campos de refugiados com visitas nocturnas, revistas nos mercados, nas escolas, à entrada e à saída de cada uma das entradas da mesquita Al-Aqsa, proibição do acesso ao mar na Faixa de Gaza, cortes de água e de luz frequentes, envenenamento da água, envenenamento dos campos agrícolas, destruição das oliveiras, pilhagem das casas dos palestinianos, protecção militar aos colonos que são financiados para passarem o dia a perseguirem palestinianos, da porta da escola dos filhos aos seus trabalhos, castigos aos cidadãos israelitas que se recusem a participar no exército. Em suma, uma lista infindável de horrores que, fruto do bloqueio informativo de que a região é alvo, raras vezes ocupam as primeiras páginas da indignação mundial. Não é só um longo cadastro. É um longo cadastro que é o preço a pagar pela loucura de tornar infinita e absoluta uma ocupação colonial ancorada na ideia igualmente disparatada de se permitir que ganhe raízes algo que não passa de um gueto confessional que só sobrevive militarmente.
Hikmat Ajjuri, Embaixador da Palestina em Portugal, é um feroz crítico de Israel e da sua política, a quem acusa de ser o responsável pelo fim de todas as pontes que se tentaram, preferindo sempre a via das armas à cedência do pouco que foi sendo dado aos palestinianos. Companheiro de jornada e admirador de Arafat, Hikmat Ajjuri chegou a Portugal vindo da Irlanda, onde também representou a Palestina como Embaixador, e reconhece que apesar das sucessivas quebras de compromisso de Israel a crise de liderança na AP continua por resolver. “Depois do fracasso de todos os acordos de paz e da morte de Arafat as pessoas não vão continuar a aceitar só as palavras, não vão continuar a acreditar no futuro, querem ver resultados”, aludindo ao escalar da revolta no campo palestiniano. “Agora terá que ser a comunidade internacional a travar Israel, uma vez que Israel já deu provas que nunca travará pela sua vontade”. Remete uma solução para o campo da diplomacia internacional depois de comprovado o fracasso das negociações bilaterais entre Israel e a Autoridade Palestiniana. “A ONU, quem seja, tem que intervir, Israel não pode continuar a violar todos os acordos e tratados impunemente”. Para o diplomata, a causa palestiniana é pouco conhecida na Europa Ocidental, pelo que parte da intervenção da comunidade internacional terá que ser ancorada “num movimento de denúncia internacional dos crimes israelitas”.
Israelitas mas pouco, os insubordinados que resistem à assimilação
Não são muitos os que, no campo israelita, remam contra a maré e tentam travar a espiral colonial. Sabe-o sobretudo quem está nesse papel, no terreno, a enfrentar ora a marginalidade ora o músculo da repressão interna israelita, que não sendo tão dura como é com aqueles considera inimigo, mas igualmente madrasta. São disso exemplo soldados que quebram o silêncio no “Breaking The Silence”, os refractários que se recusam de todo a participar no exército e até a esquerda sionista, que sem chegar a questionar a natureza de Israel e procurando genuinamente a coexistência pacifica, também enfrenta, em diferentes níveis, a repressão de Israel. Seja lá o ponto que ocupem no mosaico pouco variado no campo progressivo da sociedade israelita poucos escapam ao rótulo de traidores ou de “judeus que se odeiam”. Alguns, filhos ou netos da diáspora, cresceram quase todos num ambiente em que Israel não era só um destino para se procurar melhores condições de vida, vindos da América do Sul, dos EUA, da Rússia ou da Europa, mas também uma agenda ideológica. À esquerda, alimentando a ideia de que o socialismo era possível numa colónia de coexistência com o povo que tinha sido expulso, convicção que levou a URSS a ser o primeiro país do mundo a reconhecer Israel. À direita, acreditando na tradição segregacionista que conduziu a África do Sul a um longo e penoso apartheid. Israel era simultaneamente assumido como uma religião e uma ideologia da qual quem lutou por ela tudo fez para não ver os seus filhos abrirem mão de uma ocupação arrancada a ferros a vários países vizinhos em sucessivas guerras de anexação. Quase sempre os filhos ficaram, mas a verdade é que poucos escolhem ficar a viver numa ocupação cuja natureza os condena à guerra infinita.
Entre o campo que defende a ideia, aparentemente generosa, da coexistência pacifica entre ocupante e ocupado, sobretudo numa sociedade em que quase todos os outros preferem a limpeza étnica, alguns, como Mikel Elkan, é uma voz autorizada. Idealista da coexistência, reconhece que nos poucos casos em que se tentou, “a partilha de espaço nunca correspondeu à partilha de direitos, a partilha de paredes nunca correspondeu à partilha das cidades, dos empregos, dos salários, e, constitucionalmente, do mesmo estatuto como cidadãos”. Israelitas de primeira, de segunda e de terceira, todos eles têm um quadro próprio de direitos e deveres assimétrico que, mesmo com a Palestina fora da equação, se revela uma sociedade profundamente dividida.
Michael Elkan é um cirurgião da ala moderada israelita, que viveu a experiência dos kibutzs e o sonho do socialismo por dentro da colónia, mas que tem vindo, paulatinamente, a perder a esperança na liderança israelita. “Desde o assassinato de Isaac Rabin que é difícil acreditar numa solução pacífica”. O antigo primeiro-ministro, assassinado pela extrema-direita israelita, “foi provavelmente o último israelita a defender, sem agendas escondidas, a paz entre os dois povos e uma solução negocial”, acrescentando que Shimon Perez ainda diz que o defende, mas poucos acreditam que ele possa fazer tudo quanto promete, sendo que outros duvidam que o queira.
A história de Mikel Elkan confunde-se com a história de Israel, único país onde apesar de tudo se vê a viver. Nasceu no território na década de todas as convulsões e os seus pais eram judeus fugidos do holocausto. Serviu o exército, precisamente em Jerusalém, e dedica-se agora ao voluntariado médico com as populações segregadas e, como o próprio assume, para que ele próprio se possa reconciliar com a sua memória. Faz voluntariado não só em Israel como um pouco por todo o Mundo, e viu os seus filhos sair de Israel, um dos seus maiores desgostos, que hoje admite ter compreendido. “Eu cheguei a ponderar aceitar um convite nos EUA, mas sempre que saio fico sempre com vontade de voltar. Quando eu fiz a tropa achava que os meus filhos, quando fossem homens, já não a tivessem que fazer, mas a verdade é que não só tiveram que a fazer como já não tinham nenhuma dúvida que, se tivessem filhos em Israel, era uma certeza esse destino.”
Michael Elkan desenvolve com Sharon Barnett e outros voluntários uma organização chamada “Médicos pelos Direitos Humanos”, ONG que tem uma clínica em Jafa e um serviço móvel na Palestina, cujo trabalho tem sido muito dificultado por Israel nos últimos tempos. São olhados de lado pela sociedade israelita, cuja ala conservadora não hesita em os acusar de traição, por prestarem serviços médicos em regime de voluntariado seja aos palestinianos dos territórios ocupados, seja aos exilados políticos em Israel.
A experiência dos postos móveis, onde Michael Elkan e Sharon Barnett, com outros voluntários, levavam auxílio médico à Palestina, acabaram com a radicalização da segregação após a segunda intifada, sendo que o auxílio limita-se agora aos que mantêm alguma espécie de legalidade no campo israelita. Essa mudança não levou a que passassem a ser aceites pela sociedade israelita, e não são raras as vezes onde o seu centro de apoio, em Jaffa, aparece pintado com inscrições a acusar o centro de “traição”. Apesar da dificuldade ninguém se resigna e todos se alimentam da esperança que o seu trabalho alimenta: “somos uma espécie de sementes contra o ódio”, desabafa Sharon Barnett enquanto se prepara para receber outro doente no centro médico.
Ainda no campo israelita, outros, em menor número, questionam a legitimidade da natureza de Israel, e foram percebendo que antes da fundação de Israel a coexistência entre todos na região era possivel, mesmo sob um ultrapassado protectorado inglês. Com o avanço do Estado Judeu, agenda que nunca se divorciou da história de Israel e da intenção de todas as suas lideranças, o número de judeus israelitas a tomar consciência do processo político tem vindo a aumentar, ainda que nas margens da sociedade, realidade que abriu um campo de trabalho muito importante ao nível da educação.
Eitan Bronstein Aparicio começou por se chamar Cláudio, quando chegou da Argentina. Depois o seu nome foi mudado, como era hábito, e como todos mudou o nome original para um nome com pergaminhos hebreus. Tinha cinco anos em 1965, data em que os pais fugiram da Argentina, para onde vieram com o sonho socialista dos kibutzes. Cresceu lá, em Bahan, um kibutz com tradições na diáspora sionista vinda da América do Sul, localizado a uma hora de viagem de Telavive, no sentido da Jordânia. “Nós viemos convencidos que vínhamos fazer uma revolução, ajudar a erguer um Estado que tinha todas as condições para ser socialista, o que estava muito longe de ser possível.”
Juntou-se ao exército, que não questionava na altura. Tinha crescido com a lente do sionismo, que só começou a recusar mais tarde, com 22, 23 anos: “Foi na altura da primeira guerra do Líbano, que ficou conhecida pelos massacres de Sabra e Chatila. Foi a primeira vaga com um número significativo de refractários, conta. “Aí decidi recusar ir para o exército. Foi a minha primeira tomada de posição contra o sionismo, com consequências. Fui preso, naturalmente, na sequência da recusa e o mesmo voltou a acontecer na primeira intifada, uma vez que também recusei castigar a resistência palestiniana nessa altura.”
Eram muito poucos e mesmo assim, alguns deles, apenas questionavam as operações de ataque do exército, não a ocupação propriamente dita: “Comecei a ver o exército a reprimir os protestos dos árabes com cidadania israelita, e aquilo foi muito chocante para mim. Perceber que havia pessoas de primeira e de segunda.” Daí às conclusões políticas foram muitos passos, mas todos lógicos, até concluir que “o objectivo do sionismo é absurdo, querer um estado confessional, só para judeus, num território que sempre teve pessoas de muitas outras religiões. A Nakba, a expulsão dos palestinianos, foi logo um sinal da natureza do sionismo”, algo que enquanto jovem não tinha como perceber.
O primeiro projecto do De-colonizer foi precisamente mostrar aos israelitas o que foi a realidade da Nakba, que muitos israelitas desconhecem, como aliás desconhecem muitos elementos da sua própria história e do sofrimento que significou para os povos que viviam na Palestina a imposição de Israel pela força das armas e do extermínio, precisamente numa altura em que o povo judeu tinha visto acabar o holocausto. Eitan Bronstein Aparicio diz-se motivado no “desenvolvimento de materiais que não permitam a ocultação da verdade”, como tantas vezes faz Israel. Uma espécie de laboratório histórico e social. “Escrevemos e publicamos, colocamos na rede, vamos às escolas. É uma agenda cultural, educativa, muito importante no combate sobre a identidade.”
Foi sempre um activista político, mas nunca esteve filiado em nenhum partido. “Acho que há um problema grande entre os palestinianos, sobretudo desde a morte de Arafat. Há uma crise de liderança grande, que não o entusiasma. É uma situação problemática, não está ninguém a apoiar os levantamentos. Nenhum partido, ninguém com peso político. Na segunda intifada, ou mesmo na primeira, as grandes organizações apoiavam, agora não”, explica sobre as limitações da revolta em curso.
Eléonore Bronstein teve uma história bem diferente e, ao contrário de Eitan, não teve que “lutar contra a minha própria identidade, descolonizar o meu passado”. Nascida em França, em Paris, cedo aprendeu que Israel era uma colónia, fruto de ter nascido no seio de uma mista família muito politizada, com mãe judia e anti sionista, e pai muçulmano e sírio, que lhe deram um entendimento claro sobre o assunto. Foi criada num ambiente comunista que cultivava a ideia que a religião é o ópio do povo e Israel uma ocupação ilegítima”. Ficou activista muito cedo, com 14 anos, na JCR, a juventude da LCR (organização mandelista francesa) e mais tarde esteve envolvida na construção do NPA (Novo Partido Anti-Capitalista). “Eu procurei alguns trotsquistas cá, mas quando vim já não tinha a construção do partido como prioritário. Estava sobretudo interessada na ocupação e em compreender o que podia fazer contra ela. Há um paradoxo grande entre ser-se revolucionário e estar num Estado colonial e nenhuma corrente assume isso”. Conheceram-se numa manifestação em Telavive, em 2008, a propósito do aniversário da Nakba: “Foi aí pela primeira vez que encontrei israelitas com quem conseguia criar laços de afinidade”.
Como Eitan teve que descolonizar o seu comportamento, não no que diz respeito à identidade, mas no momento em que decidiu viver em Israel, reconhecendo no entanto que “não é uma luta tão violenta”. Cresceu em Amam, na Jordânia, onde viveu até aos cinco anos e nunca se imaginou a viver em Israel. Chegou a França para a primeira classe e está agora com 35 anos: “A minha história com a Palestina começou sobretudo no meu doutoramento, momento em que procurei perceber os diferentes níveis da cidadania não judia em Israel, sobre o que significa não ser judeu em Israel”. Mudou-se para Israel em 2006, para fazer trabalho de campo. “Lembro que foi um choque para mim. Era muito naïf. Achava que tinha o exemplo perfeito de coabitação, pois a população que veio estudar era uma minoria árabe não palestiniana, e mesmo com esse universo as conclusões não foram muito animadoras. “Em Israel aprende-se rapidamente que quem se atreve a mudar o status quo nunca saberá se vai morrer assassinado por uma faca nas costas dadas pelo lado israelita ou palestiniano.”
Acusa os israelitas de não entenderem o que se passa do lado palestiniano, alvo evidente na presente revolta, e lembra que não houve praticamente manifestações de solidariedade com a última intervenção em Gaza, algo que reflecte bem a dimensão hegemónica do sionismo. “Há uma grande crise de identidade de ambos os lados. São muitos níveis de direitos, muitos níveis de cidadania, muito racismo interno. Se fores israelita podes fazer toda a tua vida sem nunca ver sequer um palestiniano. Até chegares ao exército e os teres debaixo de mira, podes viver sem nunca te cruzares com aqueles que desde cedo te ensinam a odiar como o inimigo”.
É certo que não há autocarros separados, como na África do Sul no tempo do apartheid, mas as escolas são separadas e há muita exclusão entre todos. Os bairros são definidos. Nas cidades mistas o apartheid entra pelos olhos com ruas exclusivas para israelitas e para palestinianos. “Nos kibutzes, por exemplo, não é sequer hipótese deixar quem não seja judeu ser aceite pela comunidade”. Há leis que são claramente discriminatórias. Quem é que tem direito de cidadania, quem pode ou não ter propriedade. Desde o ataque a Gaza, há um ano e meio, há uma forte aceitação de que nunca haverá paz, de resto como assume Netanyahu, depois de lhe perguntarem pela possibilidade de uma paz duradoura: “Viveremos sempre pela força da nossa espada.” “O discurso da guerra ganhou raízes fundas”, afirma Etan. “A formação do Estado define um Estado judeu e define essa linha de forma muito clara, muito brutal. O Estado Israelita define uma linha muito evidente entre quem são os seus e os outros,” acrescenta Eléonore.
Para ambos a chave está na cabeça das pessoas, das gerações futuras, por isso se empenham na questão cultural, educativa. “As pessoas devem começar a fazer perguntas. Quererão viver aqui para sempre? Dantes as pessoas iam para a guerra a pensar que os seus filhos não teriam que passar por aquilo. Hoje é uma certeza que passarão. Quantas pessoas ficarão uma vez que estejam conscientes dessa inevitabilidade?” Eitan sublinha que agora há uma realidade que vulgarizou a execução sumária, tendo o exército israelita todo o poder para executar sentenças de morte a qualquer momento. “Temos testemunhado uma radicalização da sociedade israelita, mesmo em Telavive, moderna e tolerante, há histórias de mulheres palestinianas a serem atacadas na rua. Vivemos num país onde uma pessoa pode matar um bebé e a sua família e ainda assim não serem detidos, ou confrontados com a justiça. Os poucos que são apanhados e julgados ficam seis meses presos e voltam para a rua para aterrorizar a vida dos palestinianos. Nunca há provas suficientes para prender cidadãos israelitas, particularmente judeus. Há duas leis, uma para judeus e outra para palestinianos. Há uma lei para palestinianos com cidadania e outra para os palestinianos dos territórios”.
Israel já foi maior, territorialmente falando, no tempo em que ocupou o Sinai e Gaza, mas isso não nos diz muito sobre o crescente radicalismo que alimenta o delírio de que Israel venha a ocupar as duas margens do rio Jordão: das margens do Nilo ao rio Eufrates, como diziam os fundadores do sionismo. Mesmo os moderados usam isso para dizer e se justificar: “já perdemos a margem Oriental, a Ocidental será nossa a todo o custo”.
O medo é uma arma permanente na boca dos vários primeiros-ministros. “Israel é uma sociedade fraca, e está a perder força a cada dia”, defende Eitan. Entende que é fraca porque está rodeada por muros, porque está subdividida em várias camadas. “Há mais gente a morrer de acidente de carro do que assassinados por palestinianos. É uma sociedade frágil porque é odiada pelo mundo. Por isso afirmo que a comunidade internacional é fundamental para isolar Israel, isolar Israel através do BDS e pressionando os tribunais internacionais. As lideranças já perceberam que é este o seu ponto fraco. Veja que até no ministério dos negócios estrangeiros já têm um departamento dotado com milhões de dólares só para dar resposta à campanha de BDS,” exemplifica.
Defendem que se deve manter a visão de um só Estado e não uma visão de separação, uma vez que “o enraizamento dos dois Estados significa a eternização da guerra e de dois Estados inviáveis. Um confessional, para judeus, e outro sem viabilidade económica, como um queijo suíço, para os palestinianos”. Sobre o facto de Israel ter vindo a ganhar terreno do ponto de vista militar, Eitan chama a atenção para o que Israel tem perdido noutras frentes tão ou mais importantes do que a militar: “Há o poder diplomático, económico, académico, social… em todas essas frentes Israel tem vindo a perder. Ganha no medo e na guerra, não onde queria celebrar vitórias”. Dizem-se esperançados sobretudo quando observam que até nos EUA todos os dias novas universidade se juntam ao boicote, e mesmo entre as organizações judias, como os judeus pela paz, que têm vindo a ficar organizações corajosas e clarividentes: “O ‘Jewish Voice For Peace’, são judeus que vão a espaços públicos enfrentar Israel. É corajoso e muito importante”, mas recordam que há ainda muito a fazer, uma vez que “pessoas importantes como Finkelstein ou Chomsky não defendem o boicote a Israel”, exemplifica Eitan que defende esta forma de luta como uma boa ferramenta. “Uma das nossas tarefas é produzir materiais que denunciam a realidade de Israel por isso mesmo, e esperamos que eles tenham alguma influência na mentalidade das pessoas.” Não querem ensinar ninguém a resistir afirmando que “temos que descolonizar também o olhar que temos sobre a resistência. Não somos ninguém para ensinar os demais como resistem”.
Sobre o direito de retorno, a equação das equações deste conflito, afirmam que ele “é uma condição para se viver em paz” e contestam quem argumenta com aspectos logísticos: “É uma decisão política. A argumentação formal não faz sentido. Não falta espaço. Se há espaço para o regresso de sete milhões de judeus que todos os dias as autoridades israelitas apelam, através da Aliá (chamado para o regresso à ‘terra prometida’), há seguramente espaço para os palestinianos que cá viviam.” Explicam que o direito de regresso não deve implicar uma nova Nakba, desta feita ao contrário. Por isso tem que haver muito trabalho ao nível da cultura, da educação: “Temos que desenvolver essa possibilidade na cabeça das pessoas, para elas virem a estar preparadas. Não podemos continuar a construir gerações de desespero. Temos que parar este ciclo de violência, ódio e desespero.”
A intifada pela informação
Com a explosão das redes sociais muita coisa mudou também na guerra pela propaganda, deixando Israel em grandes dificuldades, uma vez que o fenómeno aumentou exponencialmente a torrente de provas contra a sua política, expondo muitos dos seus actos que até aqui gozavam além de impunidade de invisibilidade, nomeadamente no que aos assassinatos extra-judiciais diz respeito. Do lado da Palestina encontrou-se aqui uma oportunidade de multiplicar os olhos sobre os crimes da ocupação e amplificar o movimento de solidariedade internacional. Em cada um dos lados há contradições. A AP já deteve palestinianos por via de posições assumidas na rede, plataforma que é usada para potenciar boa parte dos protestos, e do lado Israelita a oposição ao avanço colonial de Israel também tem desenvolvido novos meios de informação livres da masmorra que o sionismo dominante impõe à generalidade dos meios de comunicação tradicionais.
Poucos dias depois de chegar à fala com Sergio Ayni, uma das figuras do Alternative Information Center (AIC), um grupo de informação que articula resistências nos dois campos e denuncia dos crimes da ocupação, o AIC recebia novamente o reconhecimento internacional, angariando novo prémio, desta feita em França, pelo seu trabalho.
Sergio Ayni é judeu argentino. Os pais fugiram da ditadura em 1979, tinha ele 12 anos. Viveu num kibutz, onde ainda vivem os seus pais, ideia que seduziu a esmagadora dos exilados com aspirações socialistas. Depois disso recusou servir no exército e como todos os que o fizeram acabou detido. Hoje considera-se anti-sionista e anti-capitalista e aborda o tema sem fastasmas: “Todos os kibutz, na sua origem, tinham uma matriz socialista. Era uma tentativa de fazer o socialismo funcionar num contexto colonial. Os kibutz criam a ideia que o socialismo pode ser materializado numa comunidade imigrante específica”, diz-nos Sergio Ayni, que faz tempo que se divorciou dessa utopia. “Marx falhou completamente na sua análise sobre o Médio Oriente. Fundou as suas crenças nos livros do colonialismo inglês. Esse erro conduziu a esquerda a várias falácias, sendo a mais perniciosa de todas a ideia que as pessoas no Levante não estavam prontas para o socialismo, pelo que então tal desiderato seria possível através de uma comunidade colonial alegadamente esclarecida”. Saiu do kibutz em 1989 e foi viver para Jerusalém. A sua actividade política começou como membro da Comunists Revolucionary Left, mas hoje milita no Tarabut, um movimento árabe e judeu para a mudança social que federa militantes de várias tradições da esquerda revolucionária, que trabalham numa perspectiva não colonial. “Todas as organizações políticas que se construam na comunidade israelita têm uma realidade colonial, algo contraditório com a natureza do socialismo. É como se os revolucionários em Portugal fossem criar partidos em Angola ou Moçambique”, compara Sergio.
Ao contrário do que fazia inicialmente com a Comunist Revolucionary Left, com o Tarabut “a ideia é reforçar o trabalho entre as organizações progressistas em Israel e na Palestina”, mantendo a unidade possível com todos os que contam na luta contra o colonialismo. O Tarabut tem um bom impacto nas novas organizações sindicais, nos novos sindicatos independentes. ‘Poder aos Trabalhadores’, chama-se a mediação em que trabalham, que tem um impacto significativo nos sectores da indústria química e dos transportes. Para Sergio Ayni “os velhos sindicatos atravessam uma crise grande, sobretudo sob direcção do partido comunista tradicional” o que abre boas perspectivas de trabalho.
Sobre o AIC conta que este foi capaz de juntar organizações palestinianas e israelitas. “É das poucas a trabalhar com ambas as sociedades, e organizar acções com ambas as comunidades.” O objectivo é precisamente esse, “criar uma ponte entre activistas, usando informação formal e informal, dos canais de informação alternativa, etc. Depois há os canais informais, que é colocar as pessoas em contacto alargando a capacidade de resistência.” É no entanto um trabalho difícil dos dois lados. Do lado da sociedade israelita, mesmo os sectores progressivos, poucos questionam a ocupação. “Não se discute, não se questiona o carácter colonial do estado. É uma minoria muito reduzida aqueles que em Israel combatem efectivamente o colonialismo.” Do lado da Palestina a desconfiança é enorme fruto de décadas de agressão. “Israel está a estabelecer-se como um apartheid, um sistema de controlo, de segregação, há pouco que os palestinianos podem fazer para o travar. E em Israel também. Não tem havido força no interior das comunidades, para travar Israel”. Sergio explica-nos que em Israel “só duas ou três mil pessoas se opuseram ao último massacre em Gaza. As vanguardas manifestaram-se, mas a sociedade israelita não se mobilizou.”
Sobre a nova vaga da revolta palestiniana Sergio explica que “há uma reacção de muitos jovem palestinianos, que depois de perderem tudo perderam também o medo, mas é muito localizado. Jerusalém Oriental, Ramallah, Hebron, Belém, alguns campos de refugiados.” Esta revolta, que acontece em cima de uma enorme crise de liderança do campo palestiniano e deixou, na opinião de Sergio Ayni, “os partidos políticos na Palestina sem saber o que fazer. O Hamas e a Fatah estão abertamente contra. A Autoridade Palestiniana está a especializar-se em reprimir palestinianos e as pessoas estão a agir por sua conta.” Sergio Ayni entende que se trata de um levantamento popular que não tem paralelo com a primeira ou a segunda intifada: “esses foram movimentos estratégicos, organizados politicamente, com a participação da esmagadora maioria da população palestiniana. Agora há muito desconforto, muita humilhação e naturalmente há cada vez mais gente que responde a isso, mas faz isso de forma individual, sem enquadrar a sua acção estrategicamente”.
A sua crítica não se limita à direita, mas também à esquerda sionista. “A esquerda israelita defende a acção não violenta, mas não considera violenta a violência da ocupação. É uma contradição insuperável. Do lado palestiniano respondem com razão que a violência inicial é a imposta pela ocupação e pelo exército, que determina a inevitabilidade das revoltas”. Sergio Ayni defende que o boicote é importante, mas insuficiente. “É preciso, a par do boicote, reforçar brigadas internacionais, intercâmbio de jornalistas e de activistas, troca de experiências, e a construção de um movimento internacional forte. O boicote sozinho não será suficiente.” Para Sergio Ayni o movimento “Breaking The Silence” é um movimento importante, que tem colocado na opinião pública algumas das atrocidades cometidas pelo exército, mas mais importante que contar atrocidades seria os soldados abandonarem o exército: “O movimento de recusa do exército perdeu muita força, e isso é um drama.”
Outro dos factores que considera importantes é a análise do que se passa na Síria, cuja realidade entende que vai mudar o que se passa na Palestina: “É um desastre o que se passa na Síria. Não há uma solução para a Síria sem ter em consideração seja Assad, seja o Daesh, e ninguém o assume. Eles são o problema mas também parte da solução. A presença russa quer sobretudo dominar o preço do petróleo, não combater o Daesh. Todos que estão no terreno têm uma agenda que não passa pelo combate ao Daesh. A Rússia tem perdido dinheiro com o petróleo Daesh, pois eles vendem-o muito barato, fazem dumping, sobretudo no mercado negro que opera na fronteira turca. E essa é a preocupação da Rússia, mas também é a preocupação dos países europeus, como a França, ou mesmo os Ingleses.” No seu entender a solução passa por um cessar-fogo imediato e, em contramão com a opinião pública internacional e o politicamente correcto defende que não haverá uma solução diplomática em que Daesh e Assad não sejam levados em conta. “São actores incontornáveis”, justifica. Para Sergio Ayni “o Daesh é uma consequência da realidade e no final, o Daesh e o Assad vão ter que se sentar e negociar uma solução.” Entende que neste momento “estão todos a perder, têm pequenos reinos, mas ninguém tem país. Para que haja país terá que haver uma solução política. Que comece com um cessar fogo imediato e que depois discuta uma solução. Em todas as guerras a paz parece impossível mas no final acaba por falar mais alto uma solução. Eu não sei qual é, não tenho a receita no bolso, mas para garantir uma solução pacífica tem que entrar tudo em cima da mesa, da pacificação da Síria à ocupação da Palestina. E há ainda a instabilidade permanente do Líbano. Enfim, é todo o Levante que tem que ser equacionado.” Não acha que Israel esteja a ajudar o Daesh, mas tem poucas dúvidas que tem ajudado Al-Nusra, da Al-Qaeda, nos montes Golã, com apoio médico e algumas incursões da força aérea.
Sobre a falta de empatia entre os movimentos de libertação do Curdistão e da Palestina, Sergio explica que essa realidade se baseia no facto de se tratarem de duas lutas diferentes. “Ambos são problemas que nasceram na forma como o mundo foi dividido, já desde o fim da primeira grande guerra, mas enquanto os palestinianos enfrentam uma ocupação, e, portanto, enfrentam uma questão clássica de colonialismo, a outra é uma questão de múltiplas nacionalidades, um pouco à imagem do que se passa no Estado Espanhol.” Não sabe se “o caminho é que cada recanto acabe por ter um país”, ou se será preferível recuperar o velho sonho pan-arabista, “uma unidade entre todos os estados do Levante”. Em todo o caso sublinha que “estamos num campo teórico e que o que é fundamental, no momento, é garantir, na Síria, um cessar-fogo duradouro”. “Eu não sei o que é que vai parar a guerra civil, mas sei o que é que as incendeia. Se pararmos de as incendiar começamos a fazer recuar as fronteiras da guerra.” Exemplifica que “o Daesh nasceu da desbahzização forçada que acontece desde a invasão militar americana do Iraque”, como um dos motores da guerra. “Os sunitas foram segregados sistematicamente desde a ocupação americana, e isso foi o fogo da formação do Daesh”. Para Sergio Ayni não houve nada de positivo na intervenção internacional. “No Líbano funcionou deixarem as organizações internas ao país encontrarem uma solução. Não foi perfeita, mas foi uma solução. Na Síria serão capazes de desenhar melhor um futuro sem que hajam vários países internacionais a fazerem chover bombas”, conclui.
A Resistência palestiniana diversifica-se
Qualandia é a grande trincheira da guerra em curso, com um grau de conflito apenas comparável a Hebron, local por onde todos os palestinianos da Cisjordânia que queiram ir a Jerusalém Oriental têm que passar. É outra das faces da humilhação quotidiana que Israel impõe à Palestina. Para regressar a Jerusalém, de Ramalah, a rota das rotas na Cisjordânia, a fila de automóveis é um castigo e os autocarros são esvaziados para que todos os passageiros passem por um autêntico estábulo, pouco próprio para animais quanto mais para pessoas. A hora de ponta é uma autêntica tortura. Ao mínimo desassossego o exército faz chover gás lacrimogéneo para dispersar o que provavelmente se resolvia com duas palavras. Lá dentro, as pessoas além de tratadas como gado têm que respirar o ar contaminado. Os bebés de colo berram. As mães consolam-nas. As crianças, excitadas, tentam largar as mãos dos pais para se juntar à rixa. Todo o processo de animalização durou uma hora e, por vergonha e prevenção propagandística, é proibido filmar ou fotografar. Dizem-me que tive sorte. Toda a viagem, que no sentido inverso se faz em meia hora, levou três horas, o que dá uma média de seis quilómetros por hora. E assim é a vida de quem tem que aqui passar todos os dias, a cada regresso a casa ou a cada ida para o trabalho, a cada visita de um amigo ou a cada fim de semana de recreio na cidade velha.
Do lado da Cisjordânia, Belém é outra das cidades sob cerco, algo que o movimento internacional denuncia com veemência redobrada na época natalícia, dado o poder simbólico da cidade. Quem melhor o traduz é Banksy, num desenho que mostra Maria e José impedidos pelo muro de chegar ao local onde se acredita que Jesus terá nascido. Banksy é de resto um dos membros do movimento internacional de solidariedade mais acarinhados em Belém, e as suas pinturas no muro tornaram-se numa atracção turística para denunciar a tela onde estão pintados. ‘Banksy tour’, gritam todos os taxistas à saída dos autocarros que chegam a Belém.
Aida Camp é um campo de refugiados colado a Belém, que está sob permanente fogo do exército israelita. As barricadas à volta do campo, bem nos limites de Belém, voltaram a fazer parte do quotidiano. Israel alega que só usa “balas de borracha e gás lacrimogéneo” mas as provas mostram o contrário. Contra todos os tratados e acordos, as balas são verdadeiras, furam vidro, matam.
Ao participar de uma dessas barricadas valeu-me a generosidade de um homem que, a contragosto mas de boa vontade, salvou-me de ficar debaixo de um jipe anti-motim, puxando-me para dentro da sua casa e enfiando-me uma máscara cabeça abaixo. O mesmo risco correm dezenas de crianças e adolescentes todos os dias, dada a inexperiência e a falta de meios para se opor a um dos mais poderosos exércitos do mundo (vídeo). No dia em que decidi participar havia barricadas em todas as saídas e entradas de Belém, em resposta à ofensiva realizada na véspera pelo exército israelita, momento em que os militares assassinaram um jovem palestiniano de 19 anos, quando saía de casa para o trabalho com um tiro na cabeça. Era um militante da FPLP, uma das organizações que ainda mantém a sua coluna intacta, apesar de estar na clandestinidade seja por causa de Israel seja por causa da AP, liderada pela Fatah, e que persegue esta organização política laica e marxista. Na Europa estão mesmo na lista de organizações terroristas, algo incompreensível e indefensável para quem conhece a história da organização.
Na fronteira entre o campo de refugiados de Aida e Belém as barricadas sucedem-se. Onde uma acaba, outra se forma, logo que o gás dissipe e os militares recuem. O exército varre o motim e leva quem fique no caminho, dispara gás e balas de borracha em direcção às pessoas e não poupa ninguém. Do lado dos palestinianos tudo é vivido com uma rotina desarmante, que tem a virtude de nos tirar o medo. Assim que abranda está tudo preparado: água e limão para os olhos, café e cigarros para a alma. A luta, e a vida, continuam já de seguida.
No campo de refugiados, cujas ruas conheci com a companhia e as explicações de Marwa Romi, tive a oportunidade de entrevistar Abdelfattah A Abusrour, fundador do Al-Rowwad Cultural and Theatre Training Center e um dos criadores da ideia da Beautiful Resistance.
Apesar da diferença de idades, Marwa já nasceu na década de 90, ao passo que Abdelfattah Abusrour nasceu em 63, ambos nasceram no campo de refugiados de Aida. Abdelfattah Abusrour foi o segundo membro da sua família a nascer no campo, depois dos seus pais terem sido expulsos na Nakba, em 48. “A tragédia, a nossa catástrofe (Nakba), não acabou. A cada processo de paz seguiu-se novo avanço da ocupação. Aqui a limpeza étnica não é um eufemismo e, ouvindo Netanyahu, e percebe-se isso claramente. Se somarmos as demolições de casas, os assassinatos sistemáticos, as detenções, tudo prova que a segregação nunca parou e vai continuar.”
Abdelfattah Abusrour conta que a sua esposa tem uma casa em Jerusalém Oriental, mas porque ele não pode ir viver para lá a opção foi alugar, mesmo que para tal tivessem que esperar sete anos só para ter autorização. “Eu estive nas boas vindas do Papa Francisco, e desde então – há um ano e meio – estou proibido de ir a Jerusalém. Não fui acusado de nada. Apenas me disseram, ‘você sabe bem o que fez'”. Em causa não esteve nenhum discurso contra o Estado de Israel, mas a enumeração de factos da realidade: “Eu disse apenas que ele era bem-vindo e que o esperava poder receber um dia numa Palestina livre, onde as nossas crianças não sejam raptadas a meio da noite e possam ir para a escola sem ter que passar por um checkpoint arriscando levar um tiro. Apresentei ao Papa a realidade, aliás limitei-me a fazer um retrato da realidade que Israel considera que conspira contra o Estado de Israel.” Abdelfattah Abusrour não faz parte de nenhum partido político, que apesar de respeitar institucionalmente tem pouca confiança nas suas direções.
Viveu nove anos em Paris para terminar os seus estudos e, em 1994, quando acabou o seu Doutoramento, regressou à Palestina com a convicção que todos tinham quando regressavam: “vinha para ajudar na libertação da Palestina.” Quando voltou fundou o conceito da “beautiful resistance”: “Não foi fácil, pois cria algumas dúvidas. Será que é mais um processo de normalização, de assimilação, onde até a resistência é embelezável? questionavam-me.” O debate sobre a luta armada acaba por ser uma falsa discussão, uma vez que elas sempre coexistiram. Em 1920 as mulheres tinham muita força e, em 1929, chegaram a organizar manifestações contra a imigração massiva de judeus e o mandato britânico. O tempo da resistência palestiniana, não tem, para Abdelfattah, o tempo de Israel. “O império Otomano esteve aqui e enfrentou resistência dos palestinianos. Este é um aspecto que deixa claro que o que está em causa não são questões religiosas. Não é uma luta entre religiões, é uma luta contra a ocupação, independentemente de quem a representa.”
A Palestina foi sempre um palco de muitas confissões o que leva Abdelfattah a acreditar que este “não é um país onde o extremismo possa prosperar. A inexistência de fenómenos como o Dash ou a Al-Quaeda, que nunca conseguiram florescer na Palestina, é disso prova, uma vez que é um dos países que tem uma das situações mais desesperadas do planeta”, argumenta. E acrescenta: “Não, isso não aconteceu aqui porque os palestinianos não querem uma Palestina só para muçulmanos, não faz sentido. Não temos essa natureza. Nem esse desejo de ter um país só para muçulmanos, longe disso. Essa é a agenda impossível de Israel”. Contesta assim quem coloca em cima da mesa o argumento religioso: “ninguém tem o direito de dizer que a terra lhe foi conferida por Deus. Deus nenhum andou por aí a distribuir terra pelos seus fiéis. Se assim fosse Jerusalém foi oferecida por muitos. Não faz qualquer sentido.” Para Abdelfattah parte do problema é achar-se que se podem dividir países como se puzzles se tratassem, ignorando as pessoas e a cultura de cada local e, pior, achando que se pode, a partir de um gabinete, desenhar a vida das pessoas no terreno: “Todas as divisões negociada com vista à criação de dois Estados foram injustas. Como se podia aceitar que a minoria da população tivesse a maioria do território?” Questiona, levantando também o facto de que Israel continua sem conseguir apresentar o desenho das suas fronteiras, que até hoje continuam indefinidas. “Israel não tem fronteiras. Alguém sabe dizer quais são? Quem quer reconhecer Israel que Israel deve reconhecer? O de 48? A de 67? Aquela com que muitos sionistas sonham, da grande Israel, de ambas as margens do Nilo? Qual, pergunto eu?”
Perante os factos, cuja responsabilidade não atribui exclusivamente a Israel, entende que o descrédito deve ser atribuído a todos, consoante as suas responsabilidades. “Nós sentimo-nos traídos por todos. Não exploramos essa traição para expor ninguém, mas essa verdade não pode ser escondida. De resto, essa traição está na base da recente sublevação, levada a cabo só pelas pessoas, perante o total descrédito das organizações convencionais. Os partidos tornaram-se cada vez mais preocupados com a sua agenda, e pouco preocupados com o futuro do país. Esta é uma revolta também contra isso”. Para Abdelfattah a vitória do Hamas já tinha sido a expressão desse descrédito. E, ao negarem a vitória do Hamas e ao avançarem para a guerra civil, entende que todos acabaram por fazer o jogo que Israel queria, Israel que, na sua opinião, “assistiu feliz às nossas divisões”. “Fatah e Hamas estão cheios de problemas e parecem dois cães loucos a lutar por um osso de plástico. O meu inimigo não pode ser outro palestino. Eu não posso condenar a luta armada, como não condeno quem procura outras formas de resistência. Ambas se articulam e cumprem o seu papel”, defendendo uma vez mais a abordagem que escolheu para enfrentar a ocupação. “A estratégia de Israel é que nós respondamos com o desespero, pelo suicídio, e eu recuso entrar no jogo de Israel. Cada palestiniano que perde a vida é uma derrota”.
Abdelfattah contesta a argumentação de Israel quando tenta imputar o terrorismo aos palestinianos, e lembra que foram os sionistas os primeiros a usar muitos dos métodos que hoje todos apontam como terroristas: “O uso das sinagogas para esconder as armas, os atentados nos autocarros, nas escolas, sobre a população indefesa, tudo isso foi feito por sionistas desde o inicio do século passado, bem antes da fundação de Israel. Eles fizeram tudo em primeiro lugar. A violência não começou com as intifadas, começou muito antes com a violência brutal da ocupação”.
Contrapor a vida à violência da ocupação é em síntese o espírito da Beautiful Resistance, “o nosso objectivo é salvar vidas, criar a possibilidade de uma resistência criativa, tentar dar aos nossos filhos e aos jovens forma de se expressarem e de combaterem a ocupação promovendo a esperança”. Por isso mesmo o trabalho do Centro é sobretudo direccionado às crianças, que só lhes foi dada a conhecer a linguagem da ocupação. “As crianças que estão agora na adolescência já viveram três guerras”, recorda. “Começamos pelo teatro, um teatro de crianças, para que elas pudessem falar do que querem, do que sonham. Os palestinianos são programados para só falar no “nós”, no colectivo, não no individual. É muito difícil perguntar a um jovem e ele não responder que o seu sonho é ‘a libertação da Palestina’, e mesmo que se pergunte mil vezes o que querem para eles, individualmente, todos respondem um desejo colectivo.” O objectivo do centro é também esse, permitir que cada um se perceba individualmente, independentemente da sua posição colectiva. “É difícil convencer as pessoas que vivem humilhadas todos os dias. Nós sacrificamos tudo pela Palestina, mas devemos salvar a nossa vida, não acabar com ela, precisamente porque queremos que a Palestina tenha futuro. A resistência tem muitos níveis de actuação e o da educação não pode ser descurado”. Para ele, quando se fala de Beautiful Resistance, trata-se de disseminar a ideia de que todos são importantes. “Todos somos relevantes para mudar o mundo à nossa volta. Combater a escravatura do desespero.”
Abdelfattah não acredita que “nenhum pai no mundo, mesmo aqueles que têm filhos que vão para soldado, ninguém quer que os filhos morram. Que sejam mártires.” Entende que “isso é uma estratégia para encontrar paz interior.” Ele considera-se disposto a morrer pela Palestina, mas para ele morrer pela Palestina é lutar pela vida até às últimas forças: “Uma coisa é estar disposto a morrer pela causa, mas o objectivo não é morrer. Bem pelo contrário, é encontrar condições para a vida. Eu quero viver pelo meu país, não morrer. Nenhum país se constrói de cadáveres”, conclui com os olhos em riste.
Aqui todos estão certos que o teatro é uma arma poderosa para contar uma história, mas não é a única área de trabalho. Marwa Romi, apresenta orgulhosa os espaços de rádio, música, fotografia, costura. “Trabalhamos com as escolas, as crianças, os pais, procuramos envolver toda a comunidade”. Neste processo, as mulheres cumprem um papel fundamental, algo que acontece porque gostam de ser fiéis à ideia que Abdelfattah nos resume: “São as mulheres que mudam o mundo, não os homens”.
O espírito da Beautiful Resistance, ou, de forma abrangente, da resistência cultural, foi-se alargando a toda a Palestina. Apesar do cepticismo inicial pouco a pouco foi sendo reconhecida como uma ferramenta poderosa de combate a esta realidade de segregação e isolamento. “Temos conseguido viajar também um pouco por todo o mundo, e assim além de abrir os nossos horizontes também levamos a nossa mensagem e a nossa história aos outros. Claro que é difícil, Israel dificulta muito o processo para autorizar as saídas. Durante as intifadas foi praticamente impossível e agora continua sem ser fácil. Recebemos o Banksy, o Anthony Bourdain (estrela culinária), temos amigos nos EUA, na Noruega, um pouco por todo o lado para fazer face às dificuldades que são também financeiras” explica Abdelfattah.
A limitação de verbas da AP, a par da sua política face às verbas que dispõe, está no cerne do problema. O centro nunca conseguiu superar os cinco mil dólares, fruto dessa realidade. O Ministério da cultura tem o orçamento mais baixo de todos os Ministérios, ao passo que a segurança está nos antípodas, sendo que boa parte dessa segurança se encontra muito limitada pelos constrangimentos de Israel: “Quando falamos de gastos de segurança que nem sequer são gastos para proteger as pessoas. A única coisa que conseguem é regular o trânsito, e mesmo assim sem grande sucesso. O exército israelita é que assume boa parte das funções, incrivelmente”, concretiza Abdelfattah.
Há prioridades mal definidas e isso é apontado por quase todos os que não trabalham para a AP. “Neste último período só se arranjava dinheiro para fazer campanhas contra a Sida, que não é sequer um problema na Palestina. Se me falarem de problemas dentários, ou de questões que digam respeito às pessoas, muito bem. Seguir a agenda da preocupação de quem apenas responde a outras agendas é uma forma prostituição intelectual que não aceitamos”, justifica Abdelfattah contestando a agenda que é imposta à AP pelas organizações internacionais que a financiam. A sua contestação é fundamentada: “Querem desviar as nossas prioridades. Por exemplo quando nos dizem que a prosperidade económica trará a paz. Mas como é que pode haver prosperidade sem se poder importar ou exportar? Onde nem sequer amar é possível sem se pedir autorização a Israel?”, questiona.
Sobre a colaboração com o campo progressista, em Israel, Abdelfattah começa por referir que “há algumas pessoas espantosas em Israel”, mas reconhece que “a relação não é fácil”. Entende que na base da desconfiança está o facto de que a maioria das iniciativas servem apenas para vender a ideia da normalização e de que “há pessoas maravilhosas dos dois lados”. E por isso é frontal na crítica a quem está do outro lado do muro: “se efectivamente são maravilhosos, têm que começar a fazer o seu trabalho de casa, tal como eu faço o meu. Eu trabalho para mudar a mentalidade das minhas crianças, da minha comunidade, e eles devem fazer o mesmo antes de vir querer trabalhar com os palestinianos. Há palestinianos com cidadania israelita, e eles não têm os mesmos direitos. Porque razão esses israelitas maravilhosos não ajudam a mudar essa realidade? Porque se resignam a essa forma de racismo? Porque não combatem os checkpoints? O muro? Se não somos tratados de forma igual, como é que nos podemos relacionar de igual para igual?”, explicando também a sua adesão ao boicote internacional a Israel: “eu defendo o boicote internacional, sobretudo porque a alternativa a não o fazer é aceitar o processo de normalização da ocupação e do colonialismo”.
Garante que não diaboliza todos os israelitas como sionistas, que há organizações a fazer um trabalho importante do lado israelita, mas entende que a tarefa deles passa por mudar a natureza de Israel ou de combater os seus avanços coloniais, não por confraternizar com quem ocupam: “Os palestinianos não podem servir a propaganda israelita. Eu recuso-me a fazer esse papel.”
O grau de obstáculos no campo de refugiados é ainda mais elevado do que aqueles que se enfrentam na Palestina. “O problema da água é terrível e o mesmo pode ser dito sobre o confisco de terras agrícolas. Tudo é consistente na ideia de nos transformarem em bantustões, afastados uns dos outros, sem comunicação entre a comunidade. Envenenam os animais, destroem as infraestruturas, contaminam a água. Israel controla a água, a electricidade, vendem tudo aos palestinianos a preços inflacionados. Cada casa tem que ter reservas no telhado, aqueles cilindros negros que você vê em cima de todas as casas não são decoração, é água que temos que comprar, às vezes várias vezes por semana, e não faltam histórias de contaminação”, conta, não deixando de lembrar que em Gaza o cenário é infernal: “Em Gaza há sempre contaminação da água, em maior ou menor grau. Aqui é ligeiramente melhor, mas também vai variando e dependendo de Israel. Em Gaza, nesta altura, só há electricidade durante quatro horas por dia”.
Gaza, apesar de distante e isolada, está sempre presente na cabeça dos palestinianos, mesmo daqueles que vivem na Cisjordânia. “Houve muita solidariedade na última invasão de Israel, e agora, com a situação em Jerusalém, é raro o dia em que não há problemas e palestinianos a serem assassinados. A revolta que está a recomeçar é contra tudo isto. Tem apoio político entre a comunidade palestiniana, apesar de não ter o apoio das principais organizações. É uma revolta que mostra o descrédito da juventude nas gerações que os educaram, nas instituições, nos processos de paz, em tudo. As pessoas vão fazer barricadas e atacar israelitas mas eu pergunto: Qual é a mensagem que exigem? É o acesso a Al-Aqsa? É a libertação da Palestina? Não é claro”, deixando a ideia de que a juventude não pode viver só de raiva, tem que definir objectivos. “Quando vemos os soldados a plantar navalhas em corpos assassinados… estamos a falar de execuções públicas, feitas a sangue frio. Qual é o resultado no final do dia? Israel adora desculpas para poder matar desta maneira. Eles celebram a morte de cada palestiniano. Ouça os rabinos, ouça Netanyahu. Eu compreendo que a juventude se revolte, mas é uma tragédia que se atirem para a morte desta maneira”.
Há várias provas já documentadas de que Israel está de facto a plantar navalhas para levar a cabo execuções extra-judiciais, e, conta-nos Abdelfattah, “até houve um jornalista israelita que fez uma reportagem onde a mesma faca aparece ao pé de diferentes mortos palestinianos. Chamava-se a faca milagrosa. Estava em todo o lado.”
Mas a revolta não é só a voz do desespero. “Há muita actividade, nas redes sociais, nas organizações de juventude. Quando há um levantamento, uma insurreição, mesmo durante as duas primeiras intifadas, há um exagero de terminologia. Houve muitas intifadas antes da primeira. Chegou a haver uma greve de seis meses. Se as contarmos todas houve 17 ou 18 intifadas desde a ocupação. De tantos em tantos anos Israel começa outra guerra e há sempre resposta. 48, 56, 67, 73, 82 no Líbano, 93 na primeira intifada, depois a segunda no virar do milénio, depois 2006, depois 2008 e 2014 em Gaza, enfim… acha que cada uma destas atrocidades não teve uma intifada como resposta?” O que se vive agora é diferente, “agora é uma intifada não só contra os israelitas, mas contra toda a autoridade. Contra os adultos. Perderam a fé nos partidos, nos mais velhos, na comunidade internacional. Todos lhes mentiram e eles agora não acreditam em nada. É uma revolta contra a mentira”, em suma.
Nos campos de refugiados a realidade é de todas a mais difícil. Ninguém nunca é sequer dono da casas que construiu. “Somos convidados no nosso próprio país”, resume Abdelfattah. “A comunidade tem pouca autonomia, e falharam na garantia de todas as divisões da Palestina. Ninguém nunca deu resposta ao direito de regresso. Votamos para o parlamento palestiniano, mas nem sequer temos o direito de votar para as eleições municipais. Os palestinianos que conseguem verbas acabam por sair dos campos, mas é algo que poucos conseguem”. No campo, raras são as noites em que o exército não o invade, a altas horas da noite, provocando a ira das pessoas e criando pretextos para as fuzilar: “É uma maneira deles mostrarem que são eles que controlam, que são eles que mandam até nas nossas horas de sono. Eles querem quebrar a espinha da nossa juventude, todos os que não convençam ou forcem a ser colaboradores”, imputa Abdelfattah às intenções dessa prática israelita.
Defende que as brigadas do movimento internacional são importantes, mas “tal como o boicote, sozinhos, são limitados”. Abdelfattah lembra que o movimento civil é importante, “mas não tem poderes mágicos contra Israel. “Há gente que foi proibida de voltar, outros assassinados e não foi só o Vittorio Arrigoni e a Rachel Corrie. É uma ajuda, um grão de areia importante, mas não pode ser feito de qualquer maneira ou pode acabar por ser contraproducente. Rachel Corrie era americana, falava inglês, e acabou debaixo de um bulldozer. Se tomas o lado palestiniano não tens nenhuma garantia de segurança dada por Israel”, lembra, de modo a que ninguém venha ao engano.
Entre outras formas de luta, recordando também a importância das flotilhas contra o bloqueio: “Um grito numa altura em que os políticos nos votaram ao silêncio. Todas as iniciativas são importantes, claro, mesmo que Israel não mude nada por causa disso”, conclui com alguma condescendência. Mas há mais que, na sua opinião, está a ser feito e deve ser aprofundado: “Convidar artistas internacionais, levar a história da Palestina a todo o mundo”, exemplifica.
Israel tem vindo a ganhar terreno no plano militar, mas na sua opinião é a Palestina quem tem vindo a ganhar a batalha pela verdade. “Temos tido cada vez mais apoio, ao contrário de Israel. Israel celebra vitórias militares e a ocupação, não a difusão da mensagem. Israel está entre os países com menos simpatia em todo o mundo, é o terceiro com pior prestigio”. Para ele é fundamental que se continue a melhorar as relações da Palestina com o mundo, com organizações solidárias, “contra-atacar a propaganda de Israel que apesar de tudo é muito poderosa e conta com muito dinheiro”.
Para “derrotar a intimidação arrogante de Israel”, para “derrotar a hipocrisia”, afirma que não podem aceitar que “a paz continue sem ser fundada na justiça, em negociações que são sempre injustas para o mesmo lado”. Para que não fiquem dúvidas lembra que “o sionismo não é judaísmo”, que “Israel não representa todos os judeus, que “envergonha aliás muitos judeus que não se revêm em Israel”. Afirma-se um optimista sobretudo porque entende que há uma verdade domina a história do mundo: “A injustiça não vigora para sempre. Nenhum processo colonial durou para sempre. É o ciclo da história. Os judeus deviam saber melhor que ninguém que aquilo que Israel tem feito não durará para sempre. Pode vir até a radicalizar-se mais, mas isso não lhe dará a vida eterna, bem pelo contrário. Por isso claro que estou esperançoso. Já derrotamos os cruzados, os otomanos, os ingleses… A ocupação vai e vem mas as pessoas ficam”.
Jenin, a cidade onde as crianças cresceram a montar tanques como se fossem cavalos
É a cidade que nos entrou na memória na segunda intifada, por ter sido aí um dos palcos dos maiores confrontos, onde Israel mais fogo descarregou e onde encontrou uma resistência heróica. Não havia família que não tivesse alguém envolvido na revolta, e, em muitas delas, todas as famílias estavam envolvidas. Jenin, bem como os seus combatentes, pagaram um preço alto pela sua resistência, sendo que entre os que foram assassinados e detidos poucos ficaram para contar a história. A cidade ficou com feridas abertas que não são fáceis de sanar. Era uma cidade de grande actividade agrícola e, fruto de não estar muito longe do mar e das cidades mistas, era ainda possível, mediante a tutela de Israel, visitas regulares à costa para ver o mar. Esta foi de resto a ideia de Nabil Al-Raee, para uma das suas peças no Freedom Theatre, num elenco que foi desafiado a colocar em tela o mar que nunca tinham visto: “Fizemos uma peça inicial chamado “journey” sobre o caminho de cada um deles e sobre os seus desejos. Um deles abordou o mar, que nunca tinha visto mesmo vivendo a poucos quilómetros do mar. Estamos a 45 minutos do mar, em Haifa, e eles nunca o viram. A peça foi surrealista, mas maravilhosa. Ver como alguém que nunca viu o mar representa o mar e como o imagina. Se somos proibidos de ir ao mar, vamos inventar o mar aqui. Havia tudo, o som do mar, uma zona de água para molhar os pés. Bastou a imaginação para derrotar uma das dimensões da ocupação.” Nabil Al-Raee conta esta história por ela ser representativa do que são os objectivos do Freedom Theatre: “É isso a base do nosso trabalho, combater a ocupação que nos ocupa a criatividade, a imaginação, a fantasia e com isso a força para a conseguir enfrentar. Se manténs tudo isso vivo tu continuas vivo e a resistir, se não, não importa muito estares vivo, uma vez que deixes que a ocupação te mate por dentro”, resume.
Nabil Al-Raee é marido de uma portuguesa, Micaela Miranda, e ambos são pais das duas únicas luso-palestinianas a viver na Palestina, conta com orgulho a avó materna. Trabalham para o Freedom Theatre, grupo que é herdeiro da tradição inaugurada por Arna Mer-Khamis, uma judia que se divorciou do sionismo para abraçar a causa palestiniana e o trabalho de base com a população infantil de Jenin, no final dos anos 80, chamado Stone Theatre. Celebrizada no documentário “Arna’s Children”, produzido pelo seu filho, Juliano Mer Khamis e fundador do Freedom Theatre, as suas sementes estão hoje bem vivas no trabalho que é desenvolvido, apesar do trauma, muito presente, do assassinato de Juliano Mer Khamis, em 2011, à porta do teatro, sem que nem a Autoridade Palestiniana ou Israel tenham desenvolvido os esforços necessários para se apurar os responsáveis. Na segunda intifada a mãe de Juliano morreu de cancro, depois do pai já ter morrido na primeira intifada, e foi nessa altura, por volta de 2002, quando Israel generalizou as incursões militares nos territórios, um tempo terrível para as pessoas, a maioria delas condenada a ter uma vida miserável. Nessa altura, um grupo de pessoas queria continuar o legado de Arna e continuar o sonho e assim abriu, em 2006, o Freedom Theatre.
Nabil Al-Raee tem 36 anos e está em Jenin há uma década, vindo do campo de refugiados Arub. Estudou teatro depois de dois anos na universidade a estudar outras disciplinas: “Tive que descobrir o meu caminho depois de um ano parado em casa, a ler e a pensar”. Juntou-se ao Theather Day Productions, um dos teatros da velha guarda na Palestina, associado ao Al-Hakawati (Jerusalém), mas também presentes em Gaza e Hebron. Viveu na Tunísia para estudar realização e voltou para trabalhar em teatro, rodando várias cidades palestinianas a encenar e a representar.
Veio para Jenin a convite do próprio Juliano Mer Khamis: “estava no campo das artes e o Juliano convidou-me para vir. Não o conhecia, mas conhecia a sua história e a da sua mãe. Fiquei feliz com o convite, pois desde a segunda intifada que eu sempre quis trabalhar em Jenin. Foi a cidade mais massacrada, e ainda hoje se desconhece a dimensão da agressão”. Como tinha ele próprio nascido num campo de refugiados lidou bem com o registo “bad boys”, nome do grupo de rapazes, que naturalmente caracteriza o modo de estar de uma população que passou pelo que passou quem cresceu em Jenin e nos seus campos de refugiados, e lembra com carinho também o grupo de raparigas, chamadas “grupo Che Guevara”. Eram as crianças da segunda intifada. “Era a geração que enfrentava os tanques olhos nos olhos, que escalava os tanques como quem escala cavalos selvagens”, lembra, para deixar bem claro o desafio que consistia em fazer teatro com um grupo com estas características: “Foi muito desafiante pegar num grupo que passou por isto e partir para um projecto cultural, associado ao teatro”.
Ficou à experiência, para ver se funcionava e hoje fala dessa história como se fosse uma bonita história de amor: “O trabalho de encenador neste contexto é muito diversificado, é uma partilha da vida propriamente dita. Somos encenadores, psicólogos, amigos, tudo. Acabamos por ser uma grande família.” É um orgulho, percebe-se, serem hoje portadores de uma das histórias bonitas da resistência, também porque subverteu a natureza identitária. Afinal, quer Arna quer Juliano eram judeus, e isso não foi razão para não serem abraçados, como poucos, pelos combatentes da liberdade, de Jenin primeiro e depois um pouco por toda a Palestina.
Nabil conta que a maioria das pessoas envolvidas no Stone Theatre foi assassinada e que hoje trabalham sobretudo com a população que tem memória desses tempos apenas pelo que ouviu falar. “Eram actores que a realidade obrigou a transformarem-se guerrilheiros pela liberdade.” Diz que o teatro continua fiel à sua tradição, de desmistificar preconceitos e de ter sucesso em “levar a história de pessoas que eram vistas apenas como terroristas, para mostrar as razões da resistência palestiniana”, tal como acontecia no tempo do Stone Theatre. “Qual é a definição de terrorismo? Eis algo que naquela altura poucos se questionavam. Foi muito importante descodificar essa diferença.” Nabil conta que é um grande desafio explicar às pessoas que há uma história, que quando se fala do conflito entre Israel e a Palestina todos acham que é uma luta entre iguais, e quem conhece a realidade sabe que não é assim. “Reescreveram a história”, lamenta. “A propaganda israelita alcançou esse feito”. Apesar do desequilíbrio de forças entre os dois campos, Nabil acha que “Israel pode endurecer o que quiser”, que isso será, paradoxalmente, “o princípio do fim”. “Eu sou uma pessoa cheia de esperança, acho que o fim de Israel vai chegar em breve. Hoje, amanhã, comigo, com os meus filhos, na próxima geração, não sei. Mas sei que vai chegar e que está perto.”
Como a generalidade das pessoas com quem falei, também Nabil entende que esta não é uma intifada como as outras, é uma revolta individual. Não é algo organizado, é uma manifestação popular de natureza individual: “Esta intifada, o que Israel chama de violência, é especialmente dolorosa para as partes que não queriam que as coisas caminhassem nesta direcção. As intifadas têm um preço muito alto. Na segunda intifada não estávamos prontos, por isso tivemos tantas baixas, tanta violência. Desta vez estamos pior preparados, mas ainda assim as pessoas revoltam-se e, conhecendo a realidade, é difícil recriminar”. Entende que é prioritária a aposta cultural, “para dar responsabilidade e clareza às novas gerações”, devir que partilha com Micaela Miranda: “Os palestinanos reagem sempre à pressão que Israel faz sobre eles. Esta é só a repetição do que já aconteceu. Se isto é uma intifada já houve centenas de intifadas.”
Apesar de não ser essa a sua prioridade, Nabil faz questão de sublinhar que nada tem contra a luta armada: “todos devem cumprir o seu papel. Deixem a resistência armada cumprir o seu papel, mas deixem também os artistas e o agente cultural fazer o seu trabalho” defende. “Quem vive debaixo de ocupação tem o direito de se insurgir, e tal não pode ser considerado terrorismo, é uma infâmia essa acusação até aos olhos da lei internacional, que reconhece o direito de resistência”, justifica. “Um dos desafios no teatro, antes de criar uma peça, é criar um contexto. O contexto é tudo e isso percebe-se bem aqui. Só depois de criar o contexto é que avançamos para a peça, sempre com os olhos na versão e na visão dos actores com quem trabalhamos”.
Nabil é crítico dos partidos políticos, apesar de lhes reconhecer, pontualmente, alguns méritos. “A FPLP, por exemplo, e a Leila Khaled, fizeram um trabalho notável para tornar conhecida a causa palestiniana, mas agora estão algo perdidos. Andam à deriva um pouco como todos os outros partidos” resume. “Muitos foram presos ou tiveram que fugir, mas isso não explica tudo. Há novos grupos comunistas a surgir, mas reúnem apenas alguns amigos à volta da mesa do jantar. Surgiram também várias ONGs mas o seu papel é algo pernicioso, uma vez que elas têm uma agenda atrás dos financiamentos, que compromete quem se compromete. É uma agenda governamental de financiar estas ONGs para difundir no terreno a visão desses governos. São tudo menos Organizações Não Governamentais”, em síntese.
A base do Freedom Theatre é a escola que desenvolve. “Nem todos acabam a concluir que querem ser actores, mas descobrem o que querem ser a partir da experiência do teatro”, explica Micaela. É um curso de três anos de treino profissional que prepara quem o faz para exercer a profissão: “Muitos destes rapazes e raparigas que estudaram no Freedom Theatre fizeram-se gente aqui. Foi uma experiência que mudou a vida de muitos deles. Nós temos resultados muito limitados no Freedom Theatre, mas são resultados preciosos”, conclui Nabil com a voz emocionada. “Estamos a fazer uma revolução com o teatro. Mudando as pessoas. Descobrindo e divulgando a sua história, quem eles são, o que são capazes de fazer. Dar-lhes o direito de ser. De existir, de escolha. Ajudar a que eles encontrem isso, se desafiem com isso.”
Micaela conta que o grau de dificuldades aumentou depois do assassinato de Juliano: “Só ficaram três pessoas, foi uma debandada natural face à dimensão de Juliano, mas as coisas agora estão melhor.” O Freedom Theatre está a montar uma rede de solidariedade internacional, que tem também um grupo de apoio em Portugal, fundado recentemente. Querem continuar a desenvolver a resistência cultural, termo que reivindicam pois resistem pela cultura, pelo teatro. Micaela dá conta da dimensão do valor do trabalho que é desenvolvido: “É muito fácil deprimir debaixo da ocupação. O teatro, ao devolver a vida a cada uma destas pessoas, recupera-as não só para si como para o que elas podem fazer na comunidade.”
Ahmed Tobasi é um desses jovens que se aproximou do teatro depois de o conhecer na prisão, onde outras crianças de Arna foram parar e não deixaram de usar o teatro como ferramenta, mesmo com os constrangimentos que os presos políticos enfrentam nas prisões israelitas. É ele quem me recebe no teatro, que apresenta com os olhos a brilhar de orgulho. Bebe-se café e ele afunda no sofá como quem afunda no seu palácio, explicando a importância do Freedom para a comunidade: “Eu cresci no campo e sei bem a dimensão do vazio que se instalou na grande maioria das pessoas. É o maior convite à delinquência, à apatia, à resignação.” Tobasi foi um dos alunos da escola e hoje já é, ele próprio, encenador. Conta das dificuldades que surgiram depois do assassinato de Juliano, recorda os tempos em que esteve preso e da importância que o teatro teve também nesse contexto: “aqui, no Freedom Theatre, aprendemos a descobrir quem somos, o que queremos, aprendemos a pensar numa atmosfera de total liberdade.” Para ele o trabalho com as crianças é fundamental, uma vez que “não são muitas as possibilidades de quem nasce no campo de refugiados poder questionar-se a si próprio e experimentar esta forma de expressão”. Basta passar pelo centro do campo durante a tarde. “Há muito desemprego, muita falta de oportunidades”, lamenta.
Saber Shreim é o exemplo perfeito do que nos fala Ahmed Tobasi. Tem 23 anos e era muito jovem na segunda intifada, que lhe levou o pai quando tinha apenas 10 anos de idade. Lembra os escombros, o ruído, o medo, e lembra sobretudo do modo de vida que sobrou para viver nos anos que se seguiram à revolta. “A maior parte dos meus amigos de infância ou está preso ou foi assassinado, é muito triste.” A sua juventude levou da memória as imagens violentas do tempo da intifada, mas conhece bem as suas cicatrizes. Foi o teatro que o tirou da rua, onde deambulava, como os irmãos, sem grande sentido para dar aos dias. “Cheguei a ser ladrão, não tinha nenhuma expectativa”, recorda. O seu envolvimento começou em 2011, quando se juntou ao Freedom Theatre, depois de alguma experiência com uma banda de garagem. Não lhe faz confusão ser um exemplo do que é o objectivo do teatro: “a ideia é juntar pessoas que não têm nada na sua vida, para que aí fundem um sentido. Eu serei eternamente grato por me ajudarem a fundar o meu”. Saber Shreim conta que no início estava com dúvidas, porque em Jenin nada é fácil, mas hoje afirma ter sido o melhor que fez. “Aprendo muito mais do que teatro, aprendo a ouvir, a pensar, a cumprir horários. Quando cheguei o primeiro trabalho que Juliano me deu foi limpar a rua e as casas de banho, para ganhar responsabilidade”, lembra. Depois do assassinato de Juliano “eu fiquei com outras quatro pessoas, mas não foi fácil. A Micaela, o Nabil, o Tobasi, e poucos mais. O Teatro esteve para fechar, mas fizemos reunião e decidimos continuar a mensagem do Juliano, de resto foi a razão pela qual ele foi assassinado. Deixar tudo morrer seria fazer o que queriam quem o assassinou.” Saber só trabalhou com Juliano um ano, mas foi uma experiência que lhe mudou a vida, motivo pelo qual não teme dizer nenhuma das palavras sobre o que pensa que terá acontecido: “Eu estava no teatro quando ele foi assassinado à porta. Não houve nenhuma investigação independente. Era um judeu mas com a cabeça de um palestiniano. Para mim o assassinato serviu os dois lados. Juliano era um soldado e incomodava quer a ocupação quer a AP. Não fizeram nada para descobrir a verdade.” Lamenta a falta de vontade de se saber o que se passou, e desconfia dessa falta de vontade: “Houve um jornalista americano que veio investigar e rapidamente o mandaram embora. Ninguém sabe o que aconteceu. É um segredo, mas em Jenin os segredos não vivem para sempre. A verdade vai saber-se. Eu tenho a convicção que ambos colaboraram neste crime, algo que não seria a primeira vez que acontece. Ele era um perigo para ambos os lados. Os israelitas e a Autoridade Palestiniana não querem que nós nos questionemos, que pensemos, que nos eduquemos. Isso iria aumentar a pressão sobre o poder de qualquer um dos dois. Veja, eu antes de ir para o teatro nem sequer sabia ler ou escrever. Aprender que somos determinantes para fazer uma mudança é um perigo e esta já é a terceira geração a aprender isso, no Freedom Theatre”, conta.
Saber Shreim explica que na Palestina muito poucos vivem do teatro, pelo qual apenas recebe uma bolsa que não lhe dá mais do que 800 shekels (cerca de 150 euros) por mês, realidade que o obriga a estar sempre atento a outros trabalhos que possa fazer. Em todo o caso as dificuldades valem bem o esforço. “É muito importante dar conhecimento a quem está marginalizado, fazê-los descobrir o que querem, de onde vêm, para onde querem ir, são questões muito importantes, que colocam muita gente em causa, em particular os responsáveis pela actual situação na Palestina”. No entender de Saber Shreim dar ferramentas para mudar o mundo é fundamental, “e o palco é uma ferramenta para mudar o mundo”, é uma tarefa “perigosa para os poderes instituídos”. Ao fazerem teatro a partir das suas histórias, denunciam a situação e a realidade que vivem, e não são poucos aqueles que preferem, e lucram, com a ignorância dos outros. “Estamos ocupados não só territorialmente, mas também na nossa mentalidade. Se isso mudar podemos mudar o mundo, sem isso não podemos fazer nada”, resume Saber. “Abrir mentalidades e fazer as pessoas pensarem com clareza, a partir do trabalho feito no palco, é uma arma poderosa, mais poderosa que uma arma propriamente dita”, razões que os tornam perigosos para todos os poderes, seja os da ocupação, seja os do campo palestiniano.
Um dos problemas da ocupação é que 80% do que se pode consumir vem de Israel, realidade que Saber não tem dúvidas que faz parte do projecto colonial. “Além de nos ocuparem o país e a mentalidade, também nos ocupam tudo o que consumimos. Qual o sentido de combatermos a ocupação e acabar a comprar produtos agrícolas dos colonos?”, questiona.
Conta que também abordam a religião, “que é um tema sensível”, e que o fazem sem ser numa lógica de provocação, mas uma vez mais “para fazer as pessoas pensar”. Ainda é difícil abordar o tema, mas reconhece que já se observam mudanças na mentalidade. “Agora já ninguém se escandaliza por haver homens e mulheres em palco ou peças a questionar a religião”, ilustra. Parte deste trabalho foi feito com o tempo, com paciência para que a comunidade, pouco a pouco, veja o que se faz em palco e o bem que fazia aos jovens que o frequentavam.
Fala-me dos seus sonhos, que incluem a ideia de ter filhos, mas não é fácil encontrar quem, como ele, quer ser pai sem ter que casar: “Não é fácil encontrar uma mãe que não queira casar. Ter filhos é uma peça de teatro que dura toda a vida. Uma obra prima! Veremos quando consigo”, diz confiante que um dia vai conquistar tudo aquilo que deseja e essa é, porventura, uma lição valiosa que leva do Freedom Theatre. A rotina da ocupação esmaga tudo e todos e o teatro é, para todos eles, uma forma de manter a sanidade, de sobreviver: “Aqui sabemos que a qualquer momento tudo muda, e isso liga-nos muito ao presente e ao que pode ser feito agora. Não é fácil convencer quem vive num inferno que a vida é bela, que o amor não é um assunto secundário, entre outros aspectos da vida”, explica Saber. “Continua a faltar muito trabalho para melhorar a vida na comunidade, mas estamos a fazer o nosso caminho. É fácil demolir, basta ver os bulldozers de Israel em acção, já construir dá muito trabalho, sobretudo se estivermos a falar de uma construção ao nível das mentalidades. Hoje já somos uma referência mesmo para os jovens que nunca trabalharam connosco. Ganhámos o respeito da comunidade, depois de muitos anos de luta por esse reconhecimento”, conta feliz.
Sobre a revolta diz que é concreta, embora não tenha dúvida de que “ninguém está preparado para a terceira intifada”. Acha que as pessoas estão revoltadas pelos castigos de Israel e pelo que se passa em Jerusalém, e que, no terreno, apesar de não haver uma resposta generalizada, se percebem as reações contra as provocações. Diz que o que se passa “não tem comparação com o que se passou na primeira e na segunda intifada” e lamenta que quem se revolta não seja organizada, inteligente na forma como ataca Israel: “Estamos debaixo de ocupação há demasiados anos, e ainda não aprendemos a organizar-nos. A pedra é parte da resistência, não a posso separar do resto, e todas as formas de resistir são importantes. Até para atirar pedras precisamos de aprender e ser organizados”.
Rawand Arqawi pertenceu ao Freedom Theatre mas o assassinato de Juliano abalou-a demasiado para continuar como se nada se tivesse passado. Aplaude os que continuaram, mas ela, e outros, decidiram continuar virando a página. Depois de um tempo no estrangeiro voltou a Jenin para fundar o Fragment Theatre com algumas das pessoas que passaram pelo Freedom Theatre: “Escolhemos o nome ‘fragmentos’ porque era isso que nós eramos. Fragmentos de esperança que foram espalhados e que agora quiseram voltar”, explica. Depois do assassinato decidiu viajar. Andou pelos EUA, mas não foi preciso muito tempo para concluir que queria voltar, e fazer o seu próprio projecto, “o Fragment Theather”. Começaram com marionetas e agora estão a lutar por um espaço onde possam desenvolver as suas ideias em permanência e sem depender de espaços provisórios.
Rawand Arqawi nasceu em Jenin onde viveu sempre. No fim da segunda intifada Jenin era portadora de “uma comunidade muito traumatizada, não só pelas feridas da ocupação mas pela continuação das provocações e dos assassinatos selectivos. Praticamente todas as famílias têm uma história para contar. Todas as famílias perderam alguém. Se não foi assassinado está preso, se não foi preso vai ser. É um drama geral”, conta Rawand, explicando que também por isso “todos sentimos que temos que fazer a nossa parte”.
Em 2008 juntou-se ao Freedom Theatre para trabalhar com Juliano. Era voluntária, mas depois passou a trabalhar a tempo inteiro como coordenadora de relações públicas do Teatro. “Gosto de ajudar as pessoas, sobretudo os pobres da minha comunidade. Sei que precisam e gosto de me sentir útil.” Para ela, como para todos os que o conheceram e trabalharam com ele, Juliano foi uma inspiração que vai ser superior ao seu assassinato. “Juliano era meio palestiniano e meio judeu. A mãe era israelita e judia, e casou com um palestiniano, comunista, da FPLP.” Conta que, no início, a mãe de Juliano era contra os palestinianos, “uma sionista como tantas outras”, mas depois de conhecer o marido, que viria a ser o pai do Juliano, passou a compreender o que se passava e tornou-se uma defensora da Palestina e dos palestinianos. Arna veio viver para Jenin, durante primeira intifada, para se dedicar ao ensino e à solidariedade com o povo palestiniano, em particular os refugiados dos campos, onde ensinava as crianças a ler e a escrever, além do teatro. “Era uma mulher de grande valor”, garante. Para Rawand Arqawi é muito importante a educação, “o trabalho entre nós próprios. Temos que cuidar da nossa comunidade se queremos sobreviver debaixo destas condições”.
Voltar para regressar
Sempre que regresso da Palestina volto assoberbado e desta vez, ao contrário das outras em que a pressão para escrever rápido e cortar muito era grande, sabia que podia levar o tempo que fosse necessário para transcrever tudo o que consegui recolher, cada imagem, cada ideia, cada desabafo, cada olhar, que revisitei sem pressa ao longo dos últimos três meses, período em que fui desenhando o que foi possível testemunhar nesta reportagem piloto doJornalismo de Causas. Tal como previa, é fundamental dar continuidade à cobertura do que se passa na Palestina, num período temporal que ambicione transmitir mais do que a voz dos que dão a voz à resistência, seja em que nível de resistência for, mas que também consiga transportar a voz daqueles que, sem que ninguém lhes dê voz, sobrevivem a uma ocupação bárbara e dão corpo a uma revolta inspiradora para todos os que não aceitam que o colonialismo sobreviva no século XXI. Se desta vez dei sobretudo a palavra às vozes da resistência social e cultural, duas das muitas intifadas cruciais para que o povo palestiniano tenha futuro, é preciso deixar claro que a realidade da ocupação no quotidiano continua por reportar, seja pela limitada capacidade do jornalismo independente dos meios de informação dominados pelo ponto de vista israelita, seja pelas dificuldades que o governo de Israel coloca a quem se dispõe a transmitir o ponto de vista dos palestinianos. Por tudo isso não fazia sentido terminar sem agradecer a todos os leitores que acreditaram e financiaram esta possibilidade, garantindo desde já que será dada continuidade assim que se consigam reunir fundos para uma nova viagem à Palestina, tal como foi feito aqui. A Palestina precisa de mais do que as notícias quando soam as sirenes, precisa de todos quantos forem possíveis a escrever, a fotografar e a filmar a partir do território, todos os dias. À causa do sionismo, que tem um exército de correspondentes estrangeiros pagos a peso de ouro para transmitir a perspectiva israelita ao minuto, instalados em Telavive e sempre nas costas do exército, é fundamental contrapor a causa da Palestina, por ser com eles que está a razão, a humanidade, a resistência ao colonialismo e a falta de cobertura jornalística. Tal como não era possível cobrir a actividade de Auschwitz com imparcialidade, este é outro dos locais e dos momentos políticos onde é fácil, muito fácil, perceber que não sobra espaço em cima do muro, sobretudo para quem se dedica ao jornalismo.
NOTA FINAL: ESTA REPORTAGEM FOI INTEGRALMENTE FINANCIADA PELOS LEITORES, SENDO QUE AS VERBAS QUE SOBRARAM (320€ – CONTASAQUI) SERÃO SOMADAS À PRÓXIMA ANGARIAÇÃO DE FUNDOS COM VISTA À CONTINUIDADE DO PROJECTO. TAMBÉM POR ISSO, PODE SER REPUBLICADA EM REGIME DE COPYLEFT, ONDE SE APELA À DIVULGAÇÃO DESTA NOTA E AO RESPECTIVO REFORÇO DE FUNDOS.
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