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domingo, 10 de abril de 2016

CARTAS PARA Q.



















Empada, 10 de Agosto de 1971


Q.,

O correio, o sempre ansiado correio, chega aqui semanalmente, trazido por uma avioneta civil em voo regular, ou quando aterra um helicóptero ou uma avioneta 'Dornier' que por aqui passam em missões diversas: evacuações de feridos ou doentes, visitas de altas patentes, coisas assim. Mal os aparelhos picam sobre o quartel, pedindo segurança na pista, o rebuliço instala-se. Os da segurança vão de 'Unimog' para a pista. Os restantes correm para a porta da secretaria e esperam pelo saco que traz as cartas, os aerogramas, as encomendas.
Então, o cabo encarregado do SPM (Serviço Postal Militar) abre o saco e começa a chamar pelo nome dos destinatários. É uma festa para os que têm correio e um desgosto de abandonado para os que não têm uma carta, um aerograma, uma palavra dos pais, irmãos, namorada, madrinha de guerra. Quase um drama.
Hoje, chegou correio e as cenas repetiram-se, mas desta vez com um pormenor interessante: no fundo do saco, sem envelope, umas folhas de carta dobradas. Perante o espanto do cabo SPM disse-lhe "Essa carta é para mim". Por não trazer envelope e pelo cor-de-rosa das folhas, só poderia ser para mim. Ainda disse ao cabo "Se quiseres confirmar, verifica o "P." da primeira página e o "Da tua Q." que vem na última". Não foi necessário. Não me tinha enganado. Era para mim.
A "Segunda Repartição", a pide militar, quis mostrar serviço e violou a correspondência sem brio profissional nem competência. Podiam ter feito desaparecer a carta, mas preferiram dizer-me que a vigilância continua. Rasgaram o envelope, leram a carta, analisaram o conteúdo, talvez o tenham considerado inofensivo ou, mesmo, piegas e deixaram as folhas no saco do correio de Empada.

Sabes desde que nos conhecemos que não gosto da tropa. E cada vez gosto menos da tropa. E é fácil perceber porquê:  é porque, na tropa, os cavalos têm nome e os homens têm número; porque, na tropa, a dotação para alimentação de um cavalo ou de um cão é superior à dotação para a alimentação de um soldado; porque, na tropa, os eunucos têm a promoção garantida; porque foi a tropa que veio de Braga a Lisboa para matar a República; porque a tropa sempre cheirou, em sentido e sem franzir o nariz, o chulé das botas que o Salazar lhe pôs nos ombros, por cima dos galões; porque é da tropa que saem os oficiais para a Legião, Mocidade Portuguesa, para a Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana; porque da tropa saiu o director do campo de concentração do Tarrafal; porque a PIDE à tropa foi buscar os homeros, os graças, os pais; porque são da tropa os tenentes, capitães, majores e coronéis da Censura; porque a tropa expulsou e entregou à PIDE o general Humberto Delgado e o capitão Varela Gomes; porque a tropa ocupou e patrulhou a minha cidade, depois do assalto ao quartel levado a cabo por um grupo de românticos por quem sinto, sempre e crescentemente, a maior admiração; porque a tropa permitiu, perfilada e em silêncio, a humilhação dos militares da Índia, pelo simples facto de estarem vivos; porque a tropa 'imediatamente e em força', sem sequer discutir, embarcou para uma guerra colonial que se arrasta sem fim à vista; porque a tropa não faz perguntas porque percebe tudo à primeira (é o que dizem os cartazes colados nas paredes do quartel de Mafra); porque a tropa aceita, de calças em baixo e de cu para o ar, o papel de ordenança dos facínoras da PIDE e viola correspondência sem brio profissional nem competência. E a tropa, esta tropa que assim actua, pretende ser a "reserva moral da Nação". Porca miséria, suprema abjecção.

Salvam-se duas ou três dúzias de oficiais que sabem ler, sabem expressar-se sem recurso constante ao macho, ao casernícola linguajar, sabem pensar, que já contestam e, alguns, até conspiram (apercebi-me disso por conversas que ouvi no clube de Oficiais do Quartel General em Bissau, quando lá estive). Mas é pouco, muito pouco. Não dá para recuperar a honra perdida desta instituição que, há muito, constitui o pilar principal deste fascismo rústico, beato, de falinhas mansas, voz esganiçada, amaricada, até, que à tortura chama 'safanões dados a tempo' e ao campo de concentração, de morte lenta, do Tarrafal, cândidamente, chama colónia penal, tão bem corporizado por essa figura sinistra que nos chegou de Santa Comba com passagens pelo seminário e Universidade de Coimbra, esse António, esse Oliveira, esse Salazar, esse filho-da-puta.

Antes de terminar esta carta amarga, onde exprimo a revolta e o nojo, deixo aqui formulado um desejo: oxalá que os pides fardados da "Segunda Repartição" a abram e a leiam. Ficarão a saber o que penso deles, dos chefes deles e dos patrões deles. Puta que os pariu, ámen!

Destilei o fel, aliviei. Restam os

beijos doces.
Aí vão e são para ti.

P.


aditaeobalde.blogspot.pt

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