Os pobres de Portas
Um destes dias, num noticiário da hora de almoço, numa das agora frequentes reportagens sobre populações a quem encerram mais um serviço essencial, apareceu, numa localidade do interior, um grupo de gente a grandolar pelas ruas. Ouvi ao lado o comentário: “Têm cara de quem nunca cantou isto antes”. E tinham, é verdade, com tudo o que de preconceituoso, e como tal possivelmente falso, que isso implica. Tinham essa cara tão portuguesa de quem nunca se quis meter nas coisas da política, de quem nunca quis confusões, de quem acreditou nas promessas repetidas ano após ano, e logo década após década, e se vê agora, envelhecido e desalentado, a sentir como lhe foge o chão debaixo dos pés e como a ideia de futuro faz o estômago apertar-se de angústia.
Fecham-lhes o centro de saúde, as urgências nocturnas, a estação de correios, o balcão da segurança social e das finanças, e a alternativa está a uma distância incomportável para quem tem de deslocar-se em transporte público, sem dinheiro para pagar o bilhete da camioneta da carreira, quanto mais o táxi.
E pela primeira vez, saem à rua. Nunca os tínhamos visto, a esses homens e mulheres de um Portugal em grande parte desconhecido, que talvez nunca tenham estado numa manifestação, que porventura nem costumam votar, ou votam nos seus carrascos, mas que saem agora à rua, pela primeira vez, como se se aventurassem num território novo, o da cidadania indignada, activa, transformadora, e apesar das suas dificuldades, parecem vivos, alerta, até entusiasmados. Empunham cartazes, marcham, falam para os microfones, cantam o Grândola, e é como se finalmente isso da luta também fosse com eles. O que a esquerda nunca conseguiu em tantos anos, conseguiu-o este governo, quem diria.
Paulo Portas, cínico de pouca monta, à escala da baixa classe política do país, diz que não foram os mais pobres quem esteve presente na manifestação de sábado, porque “os mais pobres não se manifestam e não aparecem na televisão”, e tem razão, não devem ter sido os mais pobres de entre todos, até porque as deslocações começam a tornar-se, como no salazarismo, um luxo que muita gente não pode permitir-se. Se não o fizeram não será por falta de motivos mas de oportunidades, e Portas sabe-o bem, mas dos mentirosos profissionais e encartadíssimos tampouco se pode esperar argumentos que não sejam falaciosos.
O vice-primeiro-ministro tenta assim criar um novo arquétipo, «os pobres de Portas», essa multidão sem nome nem rosto, condenada à miséria e impedida até de expressar o seu sofrimento porque fica arredada das manifestações e jamais aparece na televisão, mas que sempre poderá contar com o providencial número dois do governo para aumentar em 1% as pensões mínimas que agora rondam os 240 euros. Os pobrezinhos de Portas sempre poderão beijar-lhe a mão se algum dia se cruzarem com ele, reconhecidos pelo seu empenho em mantê-los afastados do caos das manifestações e reconfortados com a esmola que ele lhes estende.
Só que, desgraçadamente para Portas, o país já não é o de 1950 e desmente-o. Porque onde Portas quer ver apáticos famélicos, irrompem inconformados. Improváveis manifestantes, que deitam os olhos à cábula com a letra do Grândola e põem a arejar palavras de ordem que ainda ontem cheiravam a naftalina. E a antiga pacatez das vilas que ficam longe de Lisboa vai dando lugar à indignação. Não será ainda o rastilho que faça chegar o fogo ao rabo de quem nos arruína, mas é um sinal de que já se acendeu o lume na forja. E é sabido que, por muito que se malhe no ferro, é só quando ele aquece que é possível fazer nascer novas formas.
aventar.eu
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