PCP nos alvores do Estado Novo
Portugal - Batalha de ideias Segunda, 16 Maio 2011 02:26
Política Operária - [Ângelo Novo] Numa altura em que estava ainda em começo de consolidação o travejamento essencial do Estado Novo, no início dos anos 1930, há uma verdadeira vaga de edições de ou sobre Lenine, acrescida de um ou outro clássico marxista e alguns livros de impressões sobre a Rússia soviética: O Estado e a Revolução, Lenine, Lisboa, Couto Martins; V. Ilitch, F. Engels, O Marxismo: com extratos de outros trabalhos e um discurso de Engels; V. Ilitch Lenine, nova edição de O Estado e a Revolução, Lisboa, Biblioteca Cosmopolita; Estado e comunismo, Lenine, Lisboa, Vanguarda Proletária; Lenine e a juventude, Lisboa, Biblioteca do Jovem; Lénine, Jean Jacoby, Porto, Liv. Lello; A vida de Lenine, D. S. Mirsky; W. Ilitch Lenine, A Última Étape (?!), em três volumes (I – Monopólios e Bancos, II – A Partilha do Mundo e III – O Imperialismo), Biblioteca Cosmopolita, Lisboa; John Reed, Dez dias que abalaram o mundo, Biblioteca Cosmopolita, Lisboa; Alexandra Kolontay, A mulher moderna e a moral sexual, Livraria Minerva, Lisboa, com um prefácio de Ferreira de Castro.
Todo este movimento editorial, envolvendo a própria Livraria Lello, os seareiros anarquistas Emílio Costa e César Porto, o republicano Bourbon e Menezes, o jornalista católico "Mário", etc., por certo só muito remotamente tinha a ver com o PCP. Da responsabilidade do partido, sem dúvida, em edições já semiclandestinas, publicaram-se, em 1931 e 1933, duas brochuras de J. Staline sobre o Primeiro Plano Quinquenal da União Soviética.
O movimento operário sofreu uma derrota muito marcante com o fracasso da greve geral de 18 de Janeiro de 1934. A fascização dos sindicatos impôs-se, sob o ordenamento do Estatuto do Trabalho Nacional, destruindo-se por completo todo o sindicalismo autónomo e independente. Mesmo o PCP passaria doravante a defender a adesão e a actuação no seio dos sindicatos fascistas. Deixou de haver uma escola livre que formasse, na luta de classes, táctica, doutrinal e estrategicamente, dirigentes e quadros operários de raiz. O partido comunista continuou a actuar, em redes clandestinas, fazendo trabalho de agitação e organização nos meios operários e do proletariado rural, mas agora largamente dominado por dirigentes provindos de uma elite universitária radicalizada, imbuída de uma certa ideia de regeneração nacional.
Eram desse tempo Vítor Hugo Velez Grilo e Firminiano Cansado Gonçalves (1903-1994), que tiveram funções de direcção no PCP após a prisão de Bento Gonçalves e fizeram parte, com Vasco de Carvalho (1909-2006) e Francisco Sacavém (1915-2003), do "grupelho provocatório" resistente à reorganização de 1940-41. Os dois primeiros acabariam por emigrar para Moçambique, aliás em momentos diferentes. Velez Grilo tornou-se um etnólogo e economista de serviço ao colonialismo, mas Cansado Gonçalves deixou memória grata a muitas gerações de estudantes de Filosofia no Liceu Salazar e nos últimos anos coloniais do Liceu António Enes, da então Lourenço Marques. Antes disso foi um veterano do "reviralho" de 1927, das greves académicas na Faculdade de Letras de Lisboa, da clandestinidade, de Espanha, das prisões, da imprensa neo-realista. Deixou-nos um curioso ensaio político, A Traição de Salazar, com base em duas de três conferências clandestinas realizadas em 1943 (1).
Trata-se de um férulo requisitório contra o Estado Novo, na sua política económica corporativista como na sua política educativa e cultural, em linguagem tersa de grande vigor polémico. A "traição" nacional de Salazar era um tópico discursivo muito insistente entre os comunistas, desde o início da guera civil em Espanha. Este é talvez o primeiro documento português de análise política detalhada – com uso extensivo de estatísticas, relatórios e documentos oficiais, notícias da imprensa, tudo minuciosamente pesquisado – a utilizar um instrumental teórico de inspiração marxista, com uma concepção da história enformada pela dinâmica da luta de classes. Por outro lado, denota também como estes comunistas se concebiam então como continuadores da obra desenvolvimentista e racionalista da I República. Até o "racha-sindicalistas" Afonso Costa se vê elogiado como grande estadista e um mago das finanças muito superior ao "tartufo" de Santa Comba Dão, o que seria absolutamente chocante para qualquer militante operário da geração anterior, aí incluídos os pioneiros da Federação Maximalista e do PCP. Esta reverência e cumplicidade com os grandes vultos da I República foi também uma característica muito vincada do semanário O Diabo (1934-40), do qual aliás Cansado Gonçalves era colaborador assíduo, sob pseudónimo.
Da mesma geração do "grupelho provocatório" eram ainda outros dirigentes do PCP que, por razões diversas, em distintas épocas e circunstâncias, teriam destinos marcados pela aventura, frequentemente pela tragédia, ficando uma boa parte deles também situados do lado errado da história oficial do partido: Joaquim Pires Jorge (1907-1984), clarinete na Banda da Armada, o alegre "durão" da vida clandestina; Júlio Fogaça (1907-1980), sempre entusiasta e abnegado, repetente no Tarrafal; Miguel Wagner Russell (1908-1992), andarilho salta-fronteiras ao serviço do Socorro Vermelho Internacional, que penou no Tarrafal e se fixou também em Moçambique; José Gregório (1908-1961), operário vidreiro da Marinha Grande, veterano do 18 de Janeiro, eterno vigilante pela segurança do partido, que acabaria os seus dias no exílio em Praga; Francisco Paula de Oliveira, "Pável" (1908-1993), operário do Arsenal da Marinha que se tornaria crítico de arte no México, depois de, dirigente principal do PC., formado na Escola Leninista de Moscovo, ter disparado sobre a polícia a partir dos telhados de Lisboa; Ludgero Pinto Basto (1909-2005), o médico bukharinista que esteve com Togliatti na Madrid cercada pelos falangistas; Alberto Araújo (1909-1955), jovem esperança da Filologia Clássica portuguesa, divulgador clandestino do marxismo, arruinado na "frigideira" do Tarrafal; Soeiro Pereira Gomes (1909-1949), o romancista que sucumbiu à tuberculose na clandestinidade; Carolina Loff da Fonseca, outra distinta formanda da Escola Leninista que foi uma secretária do topo e agente do Kommintern em Espanha e em vários outros países. Todas estas pessoas tiveram episódios e fases na sua vida envoltos em sombra e de contornos ainda muito mal dilucidados (2).
O caso é completamente diferente quanto a Júlio Fogaça, sobre quem se sabe quase tudo, mas quase nada se diz. Durante décadas foi a "outra" cabeça pensante no PCP, deixando a sua marca pessoal indiscutível não só na história do comunismo, como na própria história geral deste país. Basta pensar na influência que teve a sua política de frente nacional anti-salazarista nos sucessivos congressos democráticos de Aveiro e no oposicionismo eleitoral à ditadura. Os seus escritos políticos e político-económicos – documentos e artigos anónimos ou sob pseudónimo consabidamemte de sua autoria – circularam amplamente no partido. Não há hoje nenhum registo bibliográfico, activo ou passivo, em qualquer biblioteca do país, para Júlio Fogaça. Nunca ninguém se preocupou em editar as suas obras, que vão apodrecendo com o papel dos manuscritos e cujo rasto autoral se vai perdendo na memória colectiva, com a morte dos testemunhos da época.
Dos anos 1930 – com Bento Gonçalves – aos anos 1960 – acolhendo entusiasticamente a crítica ao estalinismo e a linha krutchoviana da "coexistência pacífica" –, e para além ainda, Júlio Fogaça defendeu sempre posições reformistas e moderadas, na política de alianças do partido, na luta social, na táctica para defrontar o fascismo. Fê-lo, indiscutivelmente, por profunda convicção pessoal, numa atitude alicerçada em estudos e refexões próprios, bem sustentados, dos quais infelizmente não dispomos de registo, para poder comentá-los. Com isso perdemos todos. Por ter sido direitista ou por ter sido homossexual, ninguém parece querer reclamar a herança política deste percursor nacional do que viria a ser o eurocomunismo. Do nosso ponto de vista, isso só envergonhará quem detém posições reformistas dentro do marxismo português, que deve responder, seja por homofobia, seja por não se manter muito tempo nessas mesmas posições, logo passando ao carreirismo puro e simples. Fogaça, por ele, foi um homem de princípios firmes e de uma indiscutível verticalidade, que podia ter levado uma vida desafogada mas escolheu a luta pelos mais desfavorecidos, cumpriu dezassete anos de prisão política (oito deles no Tarrafal, em duas estadias) pelas suas convicções, teve sempre bom porte sob detenção, nunca denunciou, nem traiu, nem renegou, mesmo quando, cumprindo prisão, soube que o seu partido de sempre o expulsara por "razões morais" não especificadas, cobrindo-o de opróbio e de ridículo. Uma coisa, porém, é não aparecer ninguém para reclamar a herança política de Júlio Fogaça. Outra coisa, completamente distinta, é não haver, até hoje, um único investigador que se tenha interessado por ele, sabendo-se que há um espólio seu publicamente acessível, depositado na Academia de Ciências de Lisboa.
Mais jovens ainda eram António Alves Redol (1911-1969), António Ramos de Almeida (1912-1961), Álvaro Cunhal (1913-2005), Joaquim Namorado (1914-1986), Mário Dionísio (1916-1993), Vasco de Magalhães Vilhena (1916-1993), Jofre Amaral Nogueira (1917-1973), António José Saraiva (1917-1993), Óscar Lopes (n. 1917), Fernando Pinto Loureiro (1917-1982), Armando Castro (1918-1999) e Fernando Piteira Santos (1918-1992). Estes, sim, entre muitos outros, constituíram a geração que introduziu em força o marxismo em Portugal. E trata-se de uma geração intelectual no sentido mais clássico, como a geração de 70 portuguesa ou a geração de 90 espanhola: uma elite altamente escolarizada, animada por uma sensibilidade comum e mobilizada, com sentido de missão, ao serviço de uma certa ideia de regeneração nacional. Enquanto houve em Portugal um movimento operário vibrante e independente, ele fazia de forma tenteante o seu caminho até ao marxismo. Quando o marxismo chegou finalmente, em força, foi já enformado na moldura política da Frente Popular e portador de uma visão progressiva e nacionalista da história portuguesa, que remontaria as suas raízes subterrâneas até 1383, em sucessivas revoltas da grei contra a perfídia retrógrada e vende-pátria das elites.
NOTAS:
(1) Cansado Gonçalves, 'A traição de Salazar', Iniciativas Editoriais, Lisboa, s/d (1975).
(2) Esta malta era recrutada para a Federação das Juventudes Comunistas e, num ápice, em meses, via-se sugada pelo vórtice do século XX para situações e locais dos mais complexamente perigosos que pode haver no mundo. Com todo o seu heroísmo e inconsolável dureza, esta geração aparece-nos envolta num esfumado trágico de sonho, como Bogart e Bacall. Num colóquio, o realizador Luís Filipe Rocha revelou que deu instruções à sua equipa (iluminação, adereços, guarda-roupa, etc.), no filme 'Sinais de Fogo', que queria que este resultasse, esteticamente, como "um filme de gangsters".
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