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domingo, 15 de setembro de 2019

Os fugitivos do brexit estão a invadir o concelho mais envelhecido de Portugal



Penamacor era o concelho mais envelhecido do país. Hoje, é o que tem a maior taxa de residentes estrangeiros do interior - quase 10% da população. São sobretudo ingleses, em idade ativa e em fuga do brexit. Estão a comprar quintas abandonadas, abriram uma escola internacional, trabalham online para o mundo inteiro. Há um mundo novo na Beira Interior.

Sophia Mars (foto), 51 anos, trabalha às terças, quartas e quintas, das sete da manhã às sete da tarde. "Dou aulas de Inglês para o mundo inteiro. A maior parte dos meus alunos são altos quadros de empresas asiáticas, mas também tenho alguns em África e na Europa." As suas lições decorrem online - precisa apenas de um portátil, de uns bons auscultadores e de um microfone para comunicar com o universo. "É muito engraçado, porque às vezes peço-lhes para me descreverem os sítios onde estão e normalmente falam-me dos escritórios envidraçados em grandes arranha-céus. E eu aqui, no meio de nenhures."

Nenhures é aqui, na Quinta do Vale da Ribeira, propriedade de 2,2 hectares para onde se mudou há dois anos, vinda de Sommerset, no sul de Inglaterra. Fica a três quilómetros do Pedrógão de São Pedro, aldeia de 400 habitantes no concelho de Penamacor. Enquanto não acaba de reconstruir a casa de xisto onde quer passar o resto dos dias, Sophia vive numa quinta desde que chegou a Portugal. Comprou online a grande tenda circular e instalou a arquitetura mongol no meio do seu terreno na Beira Interior. Os painéis solares dão-lhe energia para carregar o portátil e o rooter, com internet resolve a vida inteira. "Nos dias de calor, pego numa cadeira e no computador e vou para o meio das árvores. Se chover, ensino dentro da tenda."

Penamacor, mostram os últimos Censos de 2011, é o concelho português com maior índice de envelhecimento. Por cada cem jovens com menos de 15 anos, há 545 idosos com mais de 65. É também o local do país onde o despovoamento bateu mais forte. Há 50 anos, havia aqui 16 mil habitantes, hoje não são mais de cinco mil. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras divulgou há dias o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo de 2017 e, pelo terceiro ano consecutivo, o distrito de Castelo Branco está entre os que mais crescem na taxa de residentes estrangeiros - com Bragança. Aqui, o número oficial de residentes vindos de outros países cresce mais de 10% ao ano. E Penamacor é o município onde a taxa é maior - quase 10% dos habitantes que hoje aqui vivem chegaram de fora.

"O fenómeno começou há dois anos, mas em 2018 chega gente nova todos os dias. Neste momento, temos 400 registos, mas é um número que precisa de ser atualizado", diz António Luís Beites, presidente da Câmara de Penamacor. Destes, 60% são ingleses - e a maioria dos restantes têm, de alguma forma, ligação ao mundo britânico. Australianos e irlandeses, gente de Hong Kong ou de Singapura que trabalhava em empresas londrinas e decidiu mudar de vida.

"Vieram aqui parar por causa dos baixos custos da terra", explica o autarca. "Em Penamacor estava quase tudo ao abandono. Estas pessoas querem viver vidas mais simples do que aquelas que tinham nas cidades." E, ao contrário do que acontece no Algarve, onde vive a maior comunidade inglesa do país, esta população está em idade ativa. Trabalham globalmente, como Sophia.



Há um arquiteto de arranha-céus que divide os dias entre Nova Iorque, Londres e Penamacor, há um engenheiro informático que faz projetos 3D para o mundo todo, há a dona de uma das maiores empresas de impressão em três dimensões da Europa que fez deste lugar a base continental do seu negócio. "Nota-se que é gente muito viajada, com muito mundo e um elevado nível cultural", diz António Luís Beites. "E isso só pode ser uma vantagem para a nossa terra."

Num dos territórios mais abandonados do país, num lugar onde o povo se habituou a ver toda a gente sair, está então a acontecer este fenómeno. As aldeias encheram-se de crianças, começou a funcionar a única escola de currículo inglês do interior português, há novos negócios a nascer por causa da invasão forasteira. No jardim central da vila, onde os velhotes se juntam para jogar cartas e ver passar os dias, há um cumprimento novo para quando aparece alguém desconhecido. Chega-se e logo atira um octogenário: "Good morning."

Fugir do brexit

Sophia está preocupada com a saída do Reino Unido da União Europeia. "Acho que é por isso que está toda a gente a vir para aqui. Quando aqui cheguei era a única inglesa, agora quase todos os meus vizinhos aqui em volta são de lá. Ninguém sabe muito bem o que vai mudar exatamente, por isso há muita gente a antecipar as mudanças." Querem ter o seu pedaço de terra na Europa antes que deixem de ser europeus, explica.

Foi também por isso que Peter e Dawn Siedle, de 50 anos, vieram para este pedaço do interior português em julho. Ele é engenheiro informático, dava aulas de 3D na Universidade de Middlesbrough. Ela teve uma longa carreira como enfermeira de saúde mental. São profundamente tecnológicos - falam por computador todos os dias com a família, devoram livros no Kindle, ele continua a desenhar os seus projetos a partir da Quinta da Borboleta, um belíssimo pedaço de terreno à beira da Aldeia do Bispo, onde metade da população vem de fora.

"Eu próprio concordo que a burocracia e a corrupção em Bruxelas são uma treta", explica o homem, que nos últimos dias tem andado ocupado a construir uma vedação para as galinhas. "Mas o que me fez sair em última instância foi o que o brexit extremou. Hoje é uma afronta ser inglês."

Diz-se patriota e explica como isso é diferente de ser nacionalista. "Mas os escoceses odeiam-nos, os galeses odeiam-nos, os irlandeses odeiam-nos. Caramba, a Europa toda odeia-nos. E aqui encontrámos um lugar onde as pessoas nos apreciam, onde sentimos que estão agradecidos por estarmos a limpar o mato que crescia descontroladamente, por estarmos a comprar os produtos deles, por ocuparmos terra vazia." E é precisamente por este ser o fim do mundo, por ser "onde judas perdeu as botas", como diz com um sotaque carregado, que se sente tão bem aqui.

Há festa na aldeia

É hora de recreio na Escola Internacional de Penamacor e há miúdos de cabeças loiras a correr por toda a parte. Aqui funcionou durante meio século o Externato de Nossa Senhora do Incenso, mas a instituição fechou portas no final dos anos 1990. Já não havia crianças para ocupar aqueles 960 metros quadrados de espaço.

Em setembro de 2017, abriu aqui a primeira escola de currículo inglês do interior do país. "São 33 crianças de 17 nacionalidades", diz Paul Large, diretor do estabelecimento. "Só temos aulas para os mais pequenos, aquilo que vocês aqui chamam de primeiro ciclo. Mas o objetivo é ir alargando até ao ensino pré-universitário. Estamos a crescer de dia para dia e no próximo ano letivo contamos duplicar o número de alunos."

Paul diz que a própria escola está a convocar mais gente para Penamacor. "Há famílias que estão a mudar-se para Penamacor porque têm esta oferta aqui. Isto também ajuda a explicar esta invasão britânica." As aulas decorrem todas em inglês. "Usamos um modelo de ensino alternativo que está em grande expansão em Inglaterra, o Expression Education Alternative." São os miúdos que escolhem o que querem aprender. De manhã aprendem inglês, português e matemática, à tarde desenvolvem os seus projetos - que podem ir de estudos de direitos humanos ao funcionamento dos vulcões.

A Jessy, o Felix e o Tomás estão a fazer um tabuleiro de Monopólio com equações matemáticas. As casas coloridas são tão mais caras quanto mais difícil for o problema. Propriedades que envolvam contas de somar saem baratas, mas as de dividir são mais caras do que um apartamento no centro de Lisboa. Os dois primeiros são ingleses, o último é português. Para lançar um desafio têm de saber resolvê-lo, aquele jogo não é só um jogo, é uma aprendizagem inteira.

Também há três dezenas de crianças estrangeiras a frequentar o ensino português, e isso permite nalguns casos abrir duas turmas para o mesmo ano, coisa de que não se falava em Penamacor há décadas. No centro de saúde, o enfermeiro-chefe Vítor Fernandes explica assim o impacto da chegada da miudagem: "Até aqui, éramos quase uma unidade paliativa. Atendíamos quase exclusivamente velhotes que precisam de cuidados continuados. E agora já temos outra vez crianças, já podemos fazer campanhas de prevenção, de vacinação, ensinar hábitos saudáveis. E é para isto que realmente servimos."

Depois das aulas, às quintas-feiras, abre a escola de futebol no estádio municipal. O treinador dos iniciados chama-se Andrew Smith, é um australiano licenciado em Educação Física, que foi durante muitos anos internacional de hóquei no campo. Quando se mudou para a Ásia, tornou-se treinador profissional, e foi mesmo o selecionador de Hong Kong.

Agora está aqui, a ensinar técnicas aos miúdos de 11, 12 anos. "Há aqui meia dúzia de rapazes com muito talento. Mas o diretor do clube diz-me que não dá para fazer equipas com crianças acima dos 15 porque vão-se embora daqui. Então estou a começar a trazer para os treinos os miúdos da comunidade estrangeira, porque estes vão ficar cá esses anos." De Penamacor, um destes dias, pode aparecer um novo Ronaldo. Ou um novo Beckham.

A vida que mexe

No centro de Penamacor há uma mercearia gourmet que teve de se adaptar à chegada dos forasteiros. "Sabe o que eles mais compram?", pergunta Érica Bargão, que ocupa o espaço atrás do balcão desde que a loja abriu, há três anos. "Rações para cães. Aqui, nós damos aos animais os restos da comida, mas eles preferem assim. Então tivemos de reforçar as encomendas. Disso, do chá, do bacon. E depois começámos a introduzir produtos novos que não se usavam aqui, como a aveia e as lentilhas."

Esta loja abriu na altura em que começaram a chegar os primeiros estrangeiros, e Érica sabe que foi esse ímpeto que chegou de fora que está a tornar o negócio rentável. Mas um pouco por toda a vila veem-se sinais de alívio económico. Há quatro meses abriu portas a Quintamacor, primeira imobiliária de sempre a assentar arraiais nesta terra. O dono chama-se Jamie Molloy, 38 anos, é irlandês e foi um dos primeiros estrangeiros a desaguar na vila. "Na minha outra vida eu era engenheiro, responsável pela segurança de uma exploração de gás na Austrália. Um dia, fartei-me e abri um bar em Melbourne, mas acabei por falir e voltar para a Europa. Dublin era para mim uma ideia insuportável, por isso vim para o sul."

A escolha de Penamacor não foi afetiva, foi prática. "Vim aqui parar há cinco anos porque me falaram que aqui havia terra mesmo barata. Comprei uma quinta e comecei a dizer a alguns amigos, sobretudo ingleses, que havia aqui oportunidades fantásticas. E alguns fizeram-se ao caminho."

Há três anos vendeu a quinta a um casal inglês, comprou outra. E foi nessa altura que criou um site para vender propriedades. "Entretanto decidi oficializar as coisas e criar uma agência. Na semana passada fiz a venda número cem. Tudo quintas, e tudo a estrangeiros." Hoje, por exemplo, Jamie faz uma incursão à Aldeia de João Pires e fecha negócio com um velhote para a compra de um terreno.

O irlandês também tem um bar, o JCJ, que serve de ponto de encontro à comunidade estrangeira. Serve hambúrgueres de vaca, frango ou vegetarianos e enche ao fim da tarde como se fosse um pub inglês. "Agora acabei de comprar uma loja e vou abrir uma lavandaria. A maior parte dos estrangeiros vivem em quintas que funcionam com energia solar e não conseguem energia suficiente para uma máquina de lavar roupa."

O presidente da Câmara de Penamacor está tão contente com a invasão britânica que quer tornar bilingues todas as placas sinaléticas do concelho. "Além disso, estamos prestes a abrir concurso para a abertura de um centro tecnológico. Basicamente, vamos ter salas com internet com fibra, para que seja possível trabalhar nesta terra com internet a alta velocidade."

Os cafés das aldeias, que antes fechavam ao pôr do Sol, estão agora cheios até a noite ir avançada. Aqui, serve-se um bule de chá preto com duas saquetas, porque os novos vizinhos gostam da bebida forte, e com umas gotas de leite. E nessas duas saquetas, nessas gotas de leite que se acrescenta ao chá, percebe-se um mundo novo inteiro. Em Penamacor, sem que ninguém desse por nada, estava a acontecer uma revolução.

A estrela de cinema que se mudou para Penamacor

Foram 18 meses de filmagens e agora é tempo de descanso. Oreo, o guaxinim que serviu de modelo a Rocket Racoon, está a gozar a reforma na quinta Layla, perto da Aldeia de João Pires, em Penamacor. A personagem é uma das protagonistas de Guardiões da Galáxia, a saga da Marvel que se tornou o 80.º filme mais lucrativo a história do cinema.

Sally e John Bent compraram esta propriedade em julho e querem torná-la um santuário de animais exóticos em fim de carreira. "Em Inglaterra temos uma companhia chamada Oreo and Friends, que fornece animais para o cinema, festas, visitas a escolas e hospitais. Mas ele é a estrela da companhia", diz Sally enquanto o animal lhe trepa pelo pescoço. Na Beira Baixa têm dois guaxinins, um casal de tatus, uma família de suricatas, sete cães, uma doninha e para a semana chegam vários esquilos voadores.

E não é injusto dizer que foi Oreo a pagar pelo novo lar. Sally não diz o cachê, mas explica que o trabalho foi duro. "Havia 200 desenhadores e testavam todos os movimentos e reações: quando ouvia um barulho familiar, quando ouvia um barulho estranho, quando se molhava." Na estreia em Londres, Oreo desfilou pela passadeira vermelha e teve direito à sua própria suite de hotel. "Agora fazemos visitas com ele às crianças da região e será sempre tudo de forma gratuita. Queremos devolver à comunidade a boa forma como nos estão a acolher."

Ricardo J. Rodrigues | Diário de Notícias

Imagens1 - "A maioria dos novos ingleses que chegam querem antecipar-se ao brexit", diz Sophia. E em Portugal há terra barata / © GERARDO SANTOS/Global Imagens; 2 - Peter e Dawn são profundamente tecnológicos. De uma quinta em Penamacor, estão ligados ao planeta. Trabalham e comunicam a partir daqui / © GERARDO SANTOS/Global Imagens


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