(Daniel Oliveira, in Expresso Diário,11/09/2019)
Li coisas extraordinárias por aí. Pessoas que explicavam que não havia qualquer problema com a evaporação porque, como tinham aprendido na primária, a água regressa. De onde deverão concluir que desperdiçar água não é um problema porque, de uma forma ou de outra, ela voltará para nós. Ignorarão que o problema não é se ela volta, é se volta quando e onde precisamos dela. E é por isso mesmo que nós fazemos essa coisa estranha de a armazenar.
As barragens servem para armazenar água para consumo, incluindo na agricultura, e para reserva em tempo de seca. E servem para produzir energia elétrica renovável. A frase de Catarina Martins concentra-se na primeira função, que será, para Portugal, crescentemente relevante. E, de facto, as barragens são uma má forma de armazenar água, sobretudo para tempo de seca. E serão, com o aumento da temperatura e, portanto, da evaporação, e períodos de seca prolongados, cada vez menos eficazes. Por isso, colocando fora deste texto o impacto ambiental das barragens e a qualidade da água, a questão é saber se a evaporação é ou não um problema no que respeita à função de armazenamento de água das barragens. Os comentários da Catarina Martins estão não só em linha com as previsões climatéricas e suas consequências, como em linha com as preocupações da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que tem tentado contabilizar as perdas de água por evaporação através do programa AQUASTAT. Aliás, a EDP anunciou recentemente que vai instalar mais de 10 mil painéis fotovoltaicos no Alqueva para ter rendimento energético e contribuir para diminuir a evaporação de água das albufeiras.
Dados da FAO mostram que a água que se perde por evaporação de barragens é mais de metade daquilo que os municípios consomem. Na Austrália, as estimativas são que a perda de água por evaporação em barragem representem 40% da sua capacidade de armazenamento. Um problema que vai agravar-se com a subida de temperatura associada às alterações climáticas, incluindo em Portugal, onde consumimos anualmente 40% das suas reservas (acompanhado por 44 países no mundo) e vivemos numa situação de risco elevado de escassez de água. A Europa retira menos água para a agricultura do que África, porque tem mais precipitação. Mas Portugal foge ao padrão europeu, utilizando cerca de 70% da água na agricultura. Um problema relevante quando é o terceiro país europeu com maior risco de desertificação.
O “Público” foi ouvir o engenheiro florestal e professor do Instituto Superior de Agronomia, Francisco Gomes da Silva. Não negando o facto indesmentível de ser maior a evaporação nas barragens, disse que era preferível do que a água se perder no mar. Na realidade, é indispensável que os oceanos continuem a ser alimentados com água doce, caso contrário enfrentaríamos problemas ambientais de extrema gravidade. Mas adiante. Não sei se é relevante este técnico ser ex-secretário de Estado de Passos Coelho, mas é seguramente relevante que seja diretor da empresa Agroges, que faz aconselhamento em projetos agrícolas para grandes empresas como a Monsanto. Tem interesse económico na cultura de regadio. Se forem ao site da empresa verão como o regadio e as barragens são absolutamente centrais para o seu trabalho.
As barragens servem para armazenar água para consumo e reserva em tempo de seca; e para produzir energia elétrica renovável. A afirmação da líder do BE concentra-se na primeira função. E, de facto, as barragens são, como mostra a FAO, uma má forma de armazenar água para tempo de seca por causa do efeito de evaporação
Por isso, não mentindo no que disse, o ex-governante esqueceu o essencial. É claro que água dos rios se perde para o mar. É claro que armazenamos água para garantir necessidades de consumo em tempo de seca. E é claro que a água que se evapora regressa, como sempre que a desperdiçamos. Mas se parte significativa do que armazenamos se evapora, estamos a ser pouco eficientes a armazenar água onde precisamos dela. Por isso, o debate não é se as barragens são melhores do que os rios, é se cumprem bem a sua função de armazenamento. E não só não o cumprem a 100%, como vão cumprir cada vez menos, com a subida da temperatura. Acho que toda a gente compreende que armazenar a água da chuva é melhor do que não o fazer. E que toda a gente percebe que se a armazenarmos numa poça ao ar livre em pleno agosto não estaremos a ser muito inteligentes. A questão é, portanto, como a armazenamos.
A afirmação de Catarina Martins, que não caiu do céu como a chuva, leva a um debate que não é novo. Será que devemos apostar em grandes barragens como a única forma de armazenar água para a agricultura e para o consumo? Ou será que devemos começar a promover sistemas de armazenamento de menor escala – cisternas e poços – alimentados também com a coleta de água das chuvas, em vez de pôr todas as cartas em armazenamento de larga escala, como as barragens? As perguntas são legítimas, merecem debate e não são razão para qualquer galhofa.
Ser crítico do plano nacional de barragens – em que Catarina Martins é acompanhada pela generalidade das organizações ambientalistas – não significa abandonar todas as barragens e toda a política de regadio, significa descentralizar as reservas (como vai ter de acontecer para a produção de eletricidade), captando água localmente e incentivando nas áreas em risco de desertificação, e apostar nas culturas de sequeiro. A intervenção mais urgente na gestão da água nem sequer é na oferta, é na procura. E também nisso que alguns projetos agrícolas, representados pelo senhor Francisco Gomes da Silva, são desastrosos. Não ignorando que, para além da rápida evaporação, há muitos problemas relacionados com as barragens, como a salinização dos solos ou o arranque de árvores e perda de terra arável. Estou a léguas de ser um especialista e não tenho sequer uma opinião sobre o assunto. O que me interessa é sublinhar como uma frase que poderia merecer um debate interessante – o “Público” tentou, apesar de não concordar com a conclusão – se transformou em motivo de conversa fácil e risinho desinformado.
A reação a uma frase que não sendo absolutamente rigorosa nos termos é totalmente acertada no seu conteúdo fundamental corresponde à “cultura Twitter”, onde tudo se transforma numa anedota. Corresponde ao triunfo da simplificação política, onde o senso-comum (como é que a evaporação de água pode ser um problema?) esmaga sem dó nem piedade a enunciação de problemas reais. Tudo é ridículo, tudo é risível, tudo se pode resumir em 280 caracteres. Assim se vai evaporando a política.
estatuadesal.com
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