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sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

A História Controversa do Passaporte


O conceito de uma norma de passaporte mundial é relativamente novo, criado após a I Guerra Mundial.

Em fotografias a preto e branco e filmes antigos de bobina, emerge uma imagem clássica dos EUA no virar do século passado: uma afluência constante de imigrantes, a maioria dos quais destinada a passar por Ellis Island. Aqui, eram sujeitos a uma verificação superficial de doenças, interrogados e, na maioria dos casos, eram autorizados a prosseguir a sua viagem. Tal era fácil de fazer sem uma norma global de identificação de documentos. Atualmente, à medida que a política de imigração assume um lugar de destaque a nível mundial, é difícil imaginar como é que se passou sem a existência de documentos.
Com os seus microchips e hologramas, fotografias biométricas e códigos de barras, os passaportes atuais parecem extraordinárias proezas da tecnologia moderna, sobretudo se considerarmos que a sua origem remonta à era bíblica. Há séculos atrás, o salvo-conduto era concebido para permitir ao inimigo uma "passagem de entrada e saída de um reino para as suas negociações", explica o historiador Martin Lloyd em The Passport: The History of Man’s Most Travelled Document. Tal era pouco mais do que um apelo escrito que funcionava como uma espécie de acordo de cavalheiros: onde dois soberanos reconheciam a autoridade um do outro e o ultrapassar de uma fronteira não iria causar uma guerra.

“Para além de um mercado negro de passaportes roubados e falsificados, alguns países abriram voluntariamente as suas fronteiras a quem apresentar a proposta mais elevada”

Obviamente, não é muito fácil aplicar regras quando não existe nenhum acordo em vigor. Tudo mudou em 1920, quando o conceito de uma norma mundial de passaporte surgiu após a I Guerra Mundial, promovido pela Liga das Nações, um organismo encarregue da árdua tarefa de manter a paz. Um ano mais tarde, talvez reconhecendo uma oportunidade política, os EUA aprovaram a Lei da Quota de Emergência de 1921 e, mais tarde, a Lei da Imigração de 1924 limitando a entrada de imigrantes. A emergência? Demasiados recém-chegados oriundos de países considerados uma ameaça ao "ideal da hegemonia norte-americana". Como identificar o país de origem de um imigrante? Através de um passaporte recentemente emitido, obviamente.
Os filhos de imigrantes detidos ou que estão a aguardar a sua vez agitam bandeiras norte-americanas num terraço em Ellis Island, por volta de 1900.
Idealizado por uma organização centrada no Ocidente que tentava dominar o mundo pós-guerra, o passaporte estava quase destinado a ser um objeto de liberdade para os privilegiados e um fardo para os outros. “Um passaporte é um tipo de escudo: quando se é cidadão de uma democracia rica”, explica Atossa Araxia Abrahamian, autora de of The Cosmopolites: The Coming of the Global Citizen. Cidadã suíça, nascida no Canadá e filha de pais iranianos, Abrahamian questiona-se sobre a construção de cidadania: "Não tenho uma ligação particularmente emocional com nenhum dos meus passaportes. Vejo-os como acidentes de nascimento e não identificaria nenhuma nacionalidade se não tivesse de fazê-lo."
Tal como Abrahamian, os críticos da resolução de 1920 argumentavam que não se tratava de criar uma sociedade mais democrática de viajantes mundiais mas sim da questão do controlo, mesmo dentro das fronteiras do próprio país. No início do séc. XX, as mulheres norte-americanas casadas correspondiam literalmente a uma nota de rodapé nos passaportes dos seus maridos, tal como informa o guia  Atlas Obscura. Não conseguiam passar a fronteira sozinhas, apesar dos homens casados terem total liberdade de circulação.
Uma família de imigrantes transporta a sua bagagem por Ellis Island, por volta de 1905.
Algumas nações previram as implicações negativas do passaporte e pronunciaram-se contra o que consideravam ser um domínio ocidental, explica Mark Salter em Rights of Passage: The Passport in International Relations. "Apesar de muitos países terem desejado eliminar o passaporte, porque alguns países não iriam desistir da ideia, de facto, nenhum país podia dar-se ao luxo de desistir do passaporte." Este impasse, em conjunto com uma grande dose de angústia existencial, iria fazer aparições sorrateiras e discretas na literatura de viagem do séc. XX, em obras de Paul Bowles e Joan Didion. Aparentemente, ninguém gostava muito da ideia de ser catalogado, embalado e desumanizado nas páginas de um passaporte, mas ninguém conseguia circular sem um.
Nos últimos anos, os passaportes defrontaram-se com uma crise de identidade distinta do séc. XXI, tendo-se tornado num bem muito procurado, como o imobiliário ou as obras de arte. Para além de um mercado negro de passaportes roubados e falsificados, alguns países abriram voluntariamente as suas fronteiras a quem apresentar a proposta mais elevada. "Quando descobri, durante a minha pesquisa, que existia todo um mercado legal para passaportes, confirmei a minha sensação de que a cidadania era uma coisa totalmente arbitrária", refere Abrahamian. Por exemplo, países como Malta e Chipre vendem essencialmente cidadania — Malta por um valor superior a 1 milhão de dólares e Chipre por investimentos significativos.
Para além do 1%, uma paisagem global inconstante de novos estados, fronteiras variáveis e políticas étnicas discriminatórias vieram reforçar ainda mais a condição de apátridas: os que não pertencem a uma nacionalidade de qualquer país. Pelo menos 10 milhões de pessoas no mundo inteiro são apátridas, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Estas pessoas veem frequentemente ser-lhes negado o acesso a passaportes e, consequentemente à liberdade de circulação. Estes extremos ilustram, uma vez mais, o quão pouco transparentes são as nossas noções de cidadania.
Atualmente, as estatísticas do Departamento de Estado dos EUA reportam a emissão de 18,6 milhões de passaportes em 2016 – o número anual mais elevado registado. A popular ferramenta de pesquisa on-line Passport Index oferece formas de comparar passaportes através de ferramentas interativas que fazem lembrar quadros de pontuação de ligas de futebol de fantasia. Revistas como a Travel & Leisure divulgam ansiosa e anualmente os vencedores dos "melhores" e "piores" rankings de passaportes. À medida que outras nações se juntam à nova administração dos EUA considerando o conceito de fronteiras fechadas, vale a pena voltar a pensar sobre a arbitrariedade essencial do passaporte.
Consoante o nosso país de origem, um passaporte pode conceder-nos enormes privilégios ou enormes preocupações. Pode significar um abrigo ou um fardo a carregar. O passaporte não vai desaparecer mas as precauções cuidadosamente pensadas com o objetivo de moldá-lo durante um período de décadas num documento quase perfeito devem agora evoluir à medida que o nosso mundo muda. Como será o seu aspeto no futuro?

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