Por quase um século, elas se prostituíram em ruas de grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Nova York. Judias, nascidas no Leste Europeu e conhecidas como "polacas", essas prostitutas eram pobres, quase sempre analfabetas e sem dote para um bom casamento. Saíram de seus países ameaçadas por ondas de anti-semitismo, sem perspectivas, e acabaram recrutadas por cafetões - muitos também judeus. A história, que acaba de ser contada no livro Bertha, Sophia e Rachel, de Isabel Vincent, é estudada há anos pela historiadora Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e autora de Baile de Máscaras. Segundo ela, o relato mais antigo da trajetória delas por aqui fala da chegada, em 1867, de 104 "meretrizes estrangeiras" ao porto do Rio - dessas, 67 ficaram e 37 seguiram para Argentina. "No período, o mercado brasileiro era propício à prostituição, com a população masculina bem maior que a feminina", diz Beatriz. Na virada para o século 20, o chamado tráfico de escravas brancas virou debate mundial. O declínio ocorreu nos anos 1940. Judeus haviam sido exterminados pelo nazismo no Leste Europeu e os que sobreviveram eram imigrantes com outro perfil, o de refugiados. No Brasil, as zonas do meretrício do Mangue e da Lapa, no Rio, e do Bom Retiro, em São Paulo, foram extintas nessa época. A história delas por aqui foi esquecida.
Primeiro porque não tinham sucessoras. Depois porque sempre foram discriminadas - inclusive pela sociedade judaica brasileira da época, que não permitia a elas nem um enterro digno. A maior parte das polacas está enterrada em cemitérios construídos por associações que fundaram no Brasil, como o Cemitério Israelita de Inhaúma, no Rio.
Expressões usadas pelas polacas judias deram origem a palavras hoje muito populares no Brasil. Quando suspeitavam que um cliente tinha doença venérea, diziam ein krenke("doença", em iídiche), que acabou se transformando em "encrenca". E, quando a polícia dava incertas nos bordéis, elas gritavam sacana ("polícia") - que virou "sacanagem". Mal vistas na sociedade, as polacas não freqüentavam os mesmos lugares que seus conterrâneos e eram segregadas até no cemitério. Sem falar o novo idioma e vivendo no submundo de um país estrangeiro, restou a elas se fecharem em entidades próprias para manter sua cultura. No Brasil, a primeira foi a Associação Beneficente Funerária Israelita(ABFRI), no Rio, em 1906. Objetivos: criar uma sinagoga, adquirir um cemitério, dar educação aos filhos das associadas e prestar assistência a doentes e idosos. "Era uma prova de que as polacas estavam aqui há algum tempo, já tinham família e se preocupavam com a velhice", aponta Beatriz Kushnir, que pesquisou documentos de associações do Rio, São Paulo, Santos, Buenos Aires e Nova York. O zelo pela tradição é traço comum. Contratavam cantores para conduzir os serviços religiosos em suas sinagogas e seguiam os feriados judaicos. Entre elas, falavam em iídiche (mistura de hebraico e alemão, falada por judeus da Europa Oriental).
A associação deixou de existir em 1968, por falta de recursos. As sócias ainda vivas estavam doentes ou muito idosas. As atas de reuniões obtidas por Beatriz revelam que, em seus 62 anos de existência, a entidade teve 1030 membros. As polacas de São Paulo fundaram a Sociedade Religiosa e Beneficente Israelita(SFRBI) em 1924 e, quatro anos depois, inauguraram o Cemitério Chora Menino, no Butantã. Segundo o Departamento de Cemitérios da Prefeitura, até 1971 ocorreram ali 233 enterros, mas o número de integrantes da associação sepultados lá deve ser bem maior. Na pesquisa, a historiadora encontrou o nome de 255 sócios da SFRBI.
De origem humilde, as polacas trabalhavam quase sempre no baixo meretrício - locais de prostituição freqüentados por quem tinha poucos recursos. Nos cabarés e bordéis de luxo, a soberania era das francesas, que exerciam na época grande fascínio no imaginário masculino. Atentas a esse fato, algumas judias aprendiam palavras em francês para tentar melhorar de vida.
Motorista de lotação e sambista, o cantor Moreira da Silva namorou por 18 anos uma polaca: a russa Estera Gladkowicer, que chegou ao Brasil com 20 anos em 1927, foi dona de bordel no Mangue e se matou em 68, ingerindo barbitúricos. Para ela, Moreira compôs Judia Rara:
"A rosa não se compara / A essa judia rara / Criada no meu país / Rosa de amor sem espinhos / Diz que são meus seus carinhos / E eu sou um homem feliz".
As polacas também estão presentes na letra de Mestre-Sala dos Mares, homenagem de João Bosco e Aldir Blanc a João Cândido, o Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata (1910):
"Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas, jovens polacas e por batalhões de mulatas".
Outra referência é o poema Balada do Mangue, de Vinícius de Moraes, publicado em 1946:
"Glabras, glúteas caftinas/Embebidas em jasmim/Jogando cantos felizes/Em perspectivas sem fim./Cantais maternais hienas/Canções de caftinizar/Gordas polacas serenas/Sempre prestes a chorar".
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