AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro


Bernardo Joffily

14 f1
Princípios publica nesta edição o segundo artigo da série de textos sobre a Revolução Russa, que completará 100 anos em 2017. Escrita pelo jornalista Bernardo Joffily, a série de textos procura contribuir com o debate sobre o significado e as lições deste que foi um dos principais acontecimentos da história contemporânea. No artigo desta edição, ainda focado no período anterior à grande Revolução de Outubro, Joffily aborda importantes episódios que, a partir da eclosão da primeira guerra mundial, contribuíram para fortalecer o movimento revolucionário na Rússia

Grande Guerra, traição social-democrata, Revolução de Fevereiro, sovietes

A Grande Guerra de 1914-1918 (só mais tarde batizada de Primeira Guerra Mundial) envolveu 60 milhões de soldados, dos quais 14 milhões russos. Esmerou-se em inovações mortíferas da indústria bélica – a aviação de combate, os tanques e, claro, as armas químicas, artefatos de destruição em massa banidos como crimes de guerra pelo Protocolo de Genebra (1925). Seus horrores inspiraram o romance-testemunho-denúncia Nada de novo no front, do ex-combatente alemão Erich Maria Remarque (1898-1970) – que em 1933 teria seus livros queimados pelo Terceiro Reich.

A carnificina custou perto de 10 milhões de vidas – um terço delas no Império Russo. E foi a responsável direta pelas duas revoluções russas de 1917, a de Fevereiro e a de Outubro.

Entre as baixas fatais da Grande Guerra está a Internacional Operária (ou Internacional Socialista, ou Segunda Internacional). A associação operária marxista fora fundada no Congresso de Paris, em 1889, por delegados de vinte países, numa iniciativa de Friedrich Engels. Morreu em 1916, trucidada ingloriamente nas trincheiras.
14 f2 
Esplendor e miséria da Segunda Internacional

A Segunda Internacional fora o berço dos partidos operários de massas e, em grande medida, formatara o paradigma dos partidos políticos da modernidade. Forjara marcos de dimensões históricas como o 1º de Maio – como Dia Internacional de Luta da Classe Trabalhadora – e do 8 de Março – Dia Internacional da Mulher. Fincara na arena política do planeta a bandeira vermelha da classe trabalhadora e do marxismo (já que a Primeira Internacional, liderada por Karl Marx em 1864-1872, fora apenas um ensaio pioneiro).

Mas a Internacional Socialista fora se deixando acomodar pelo período de paz e normalidade institucional em que vivia e progredia. Desde a Guerra Franco-Alemã de 1870 (que aliás servira de estopim à Comuna de Paris) a Europa não conhecia conflitos bélicos, confinados na periferia colonial e semicolonial. O capitalismo vivia uma fase de orgulhosa expansão, e com ele crescia a classe operária. As eleições se sucediam ordeiramente e a cada uma delas subia a votação nos partidos operários social--democratas filiados à Internacional.

Nessa quadra relativamente pacífica, fora prosperando também o oportunismo nas filas marxistas. Entrara em cena o revisionismo– tendência a renegar a essência revolucionária do marxismo, mantendo-o apenas formalmente. A revolução ia se esvanecendo como uma piedosa utopia, ou o resultado de uma paulatina marcha de eleição em eleição. O social-democrata alemão Eduard Bernstein (1850-1932), fundador do “socialismo evolucionista” e decano dos revisionistas, pregava que “o movimento é tudo, o objetivo final, nada”.

14 f3Bancarrota da Segunda Internacional

Com seu paroxismo de horrores, infâmia, cobiça, e hipocrisia, a Grande Guerra trocou a fase de desenvolvimento pacífico por outra, adversa para as crenças gradualistas. Abria-se uma crise revolucionária. Soava a hora da verdade para a consistência revolucionária dos social-democratas.

A guerra não foi algo inesperado. Havia anos seu odor empestava o ambiente. E era público o compromisso antibelicista da Segunda Internacional. Já em 1910, uma resolução do seu Congresso de Copenhague obrigava os socialistas a votarem nos parlamentos contra os créditos de guerra. No Congresso da Basileia, durante a guerra dos Bálcãs (1912, um prenúncio da conflagração mundial), a Internacional proclamou que os operários de todos os países consideravam um crime atirar uns contra os outros para aumentar os lucros dos capitalistas.

Mas quando o conflito mundial eclodiu, os social-democratas em sua grande maioria esqueceram o compromisso internacionalista. Com muito raras e honrosas exceções, mais do que depressa votaram os créditos de guerra e se juntaram à “sua” burguesia no esforço bélico.

Essa atitude foi um golpe de morte na Segunda Internacional. Para começar, ela quebrava a espinha da unidade dos partidos filiados, que passaram exatamente a atirar uns contra os outros, pela “causa” das “pátrias” da Tríplice Entente (Inglaterra, França, Rússia) ou dos Impérios Centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Turquia). Além disso, ela contradizia princípios solenemente proclamados e gerou na associação uma barafunda de contradições.

Uma ala direita aderiu abertamente ao “social-chauvinismo” (o termo deriva de Nicolas Chauvin, figura lendária na França do século 19, símbolo burlesco de um ultranacionalismo cego e xenófobo); outra, inclusive Karl Kautsky (1854-1938), líder da poderosa cidadela social-democrata alemã, tentou equilibrar-se numa posição centrista; não votou nos créditos de guerra, nem contra, preferindo a abstenção.

A atitude dos bolcheviques: “Guerra à guerra”!

Os bolcheviques russos foram a principal exceção (junto com os deputados socialistas da Sérvia, os búlgaros “estreitos”, opostos aos “amplos”, e um único deputado da numerosa bancada social-democrata alemã, Karl Liebknecht [1971-1919]), combatendo com firmeza a guerra que acusavam de imperialista de rapina. No início, não foi fácil: a histeria “patriótica” embriagou parte da classe trabalhadora, que nos primeiros dias, participou de manifestações pela guerra. Agitadores que o Partido enviou ao front, para denunciar a guerra, chegaram a ser linchados por massas de soldados que viam neles traidores a soldo dos “bárbaros prussianos”.

Mesmo assim o Partido Bolchevique empunhou sem vacilações a bandeira da luta contra a guerra. Ele lançou as palavras de ordem de “transformar a guerra imperialista em guerra civil” e “pela derrota do próprio governo na guerra imperialista”. Sua bancada na Duma (Parlamento) se opôs aos créditos de guerra e por isso foi deportada para a Sibéria. O Partido organizou o boicote operário aos “Comitês da Indústria de Guerra”, pregou a confraternização entre os combatentes das trincheiras e criou células bolcheviques entre soldados e marinheiros, inclusive no poderoso complexo fortificado de Kronstadt que guarnecia Petrogrado.

Lênin desenvolveu do exílio gigantesco trabalho para fundamentar a linha bolchevique. Datam dessa época obras como A bancarrota da Segunda Internacional, O socialismo e a guerra e O imperialismo, fase suprema do capitalismo. Esta última, em especial, desvenda os mecanismos econômicos que engendraram a guerra, com a passagem do sistema burguês ao estágio dos grandes monopólios financeiros em luta pela partilha do mundo.

A Revolução de Fevereiro derruba o czarismo

O ardor patrioteiro arrefeceu em todos os países à medida que a guerra exibia seus horrores e sua real natureza. Na Rússia a desilusão foi especialmente forte, devido ao trabalho bolchevique, mas também às sucessivas derrotas militares do czarismo frente à Alemanha, que ocupou a Polônia e parte do Báltico. Enquanto os bens de consumo escasseavam, até na capital e em Moscou, a família imperial permanecia sob influência do sinistro monge Grigori Rasputin (1869-1916); o ministro da Guerra Vladimir Sukhomlinov era preso por espionagem pró-alemã; e a burguesia conspirava para substituir o czar por seu irmão caçula Miguel Romanov.

A ebulição revolucionária retornou, tal como em 1905, mas com três marcantes diferenças. Os bolcheviques já contavam com um partido próprio, livres da incômoda coabitação com os mencheviques. O czarismo fora isolado, encurralado, desmoralizado. E não era só a Rússia que se convulsionava, a guerra derrubaria igualmente os Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano.

O ano de 1917 começou com uma greve de um terço dos operários de Moscou. Em 18 de fevereiro cruzaram os braços os operários da colossal usina Putilov, em Petrogrado.

Dia 23 (8 de março no calendário gregoriano), as operárias da capital, sob liderança bolchevique, saíram à rua contra a fome, a guerra e o czarismo, e com apoio de uma greve na cidade. A greve geral foi ganhando contornos de insurreição, operários tomavam para si as armas da polícia. No dia 25 uma Companhia militar em Pavlovsk abriu fogo, não contra os grevistas mas para defendê-los da cavalaria que os atacava.

No dia 27 os soldados sublevados saltaram de 10 mil para 60 mil. Os presos políticos foram libertados, generais e ministros czaristas presos. A revolução dominou por completo Petrogrado. Uma multidão invadiu a sede da Duma; à tarde, uma assembleia criou o Soviete de Operários e Soldados. O czar tentou fugir da capital, mas seu trem foi forçado a retroceder; ele abdicou e a seguir foi preso.

A dualidade de poderes

A Revolução de Fevereiro foi fulminante rapidez e pouco cruenta, mas criou uma situação dúbia e instável. Havia uma dualidade de poderes, um original e confuso entrelaçamento. De um lado, estava o Governo Provisório, poder da burguesia e dos latifundiários aburguesados, encabeçado pelo príncipe George Lvov (1861-1925) e, após julho, pelo deputado social-revolucionário de direita Alexander Kerensky (1881-1970). Do lado oposto estavam os Sovietes de Operários e Soldados, que se propagaram por todo o país e eram ao mesmo tempo um instrumento da revolução e um órgão de poder, uma ditadura do proletariado e dos camponeses.

Essa oposição, por sua vez, também continha dubiedades. O Soviete de Petrogrado avalisou o Governo Provisório, pois no início era dominado por social-revolucionários e mencheviques – os bolcheviques tinham apenas dois de seus 14 dirigentes. O bolchevismo também era minoritário no Soviete de Moscou, prevalecendo apenas em uma ou outra cidade menor, como Ivanovo-Vosnessensk e Krasnoiarsk. O Partido Bolchevique era ainda um partido de quadros, com 40 mil a 45 mil membros.

A Revolução desbaratou o aparato repressivo czarista e garantiu, pela primeira vez na Rússia, ampla liberdade de imprensa, reunião, manifestação e organização. Em cinco dias, o Pravdavoltou a circular. Os perseguidos pela autocracia voltaram a Petersburgo e à ação política aberta. Josef Stálin (1879-1953), Jakob Sverdlov (1885-1919) e Lev Kamenev (1883-1936) deixaram o degredo na Sibéria, Leon Trótsky (1879-1940) e Nicolai Bukharin (1888-1938), o exílio em Nova Iorque. Lênin, e vinte outros exilados russos na Suíça, após complicadas negociações com Berlim, regressaram no “trem blindado” alemão, com um único vagão e status extraterritorial – o que valeu-lhe não poucas acusações de “agente do kaiser”.

“Teses de Abril”: “Cinzenta é a teoria, meu amigo”...

O “trem blindado” chegou na Estação Finlândia de Petrogrado quase meia noite de 3 (15) de abril, mas milhares de operários e soldados o esperavam. Falando de cima de um carro blinado, Lênin fez seu primeiro discurso após o longo exílio. E surpreendeu a todos ao terminar com um “Viva a revolução socialista!”.

Até ali era consenso que a revolução na Rússia tinha caráter não socialista, mas democrático-burguês, visando ao fim da autocracia, à república, à entrega da terra aos camponeses, à jornada de oito horas. Lênin argumentou que a Revolução de Fevereiro já cumprira essa etapa, ainda que de modo precário e incompleto. Tratava-se agora de seguir adiante, com os operários e camponeses pobres, por uma república dos Sovietes.

Ele desenvolveu a ideia nas famosas Teses de abril, escritas ainda no trem e apresentadas horas após chegada. “A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na passagem da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o necessário grau de consciência e organização, à sua segunda etapa, que colocará o poder nas mãos do proletariado e dos camponeses mais pobres”, diz o texto. E contestou os que se apegavam à visão anterior com versos do Fausto de Goethe (1808): “Cinzenta é a teoria, meu amigo, mas eternamente verde a árvore da vida”.

As Teses analisam a dualidade de poderes. Rejeitam “qualquer apoio ao Governo Provisório”. Mas não pregam sua derrubada imediata, e sim um trabalho “paciente, sistemático, tenaz”, “enquanto estivermos em minoria”. E lançam já a célebre palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes!”. Propõem ainda a mudança do nome do Partido, de Bolchevique para Comunista, e a fundação de uma nova Internacional, comunista.

As massas aderem às palavras de ordem bolcheviques

Nessa linha, o Partido lançou-se à conquista da maioria nos Sovietes, nos sindicatos e comissões de fábrica. O Governo Provisório, uma coalizão de partidos burgueses com os social-revolucionários e mencheviques, não se atrevia a efetivar as transformações exigidas pela Revolução. Em vez de tirar a Rússia da guerra, lançou em 18 de junho (1º de julho) nova ofensiva militar, que terminou em novo fracasso. Nesse mesmo dia, 400 mil trabalhadores marchavam em Petersburgo sob as palavras de ordem bolcheviques, “Abaixo a guerra!”, “Abaixo os 10 ministros capitalistas!” e “Todo Poder aos Sovietes!”.

Em julho o governo desferiu uma ofensiva repressiva. Lênin chegou a ter decretada sua prisão por “alta traição”; teve que cair em rigorosa clandestinidade, oculto numa choça na Finlândia (na época parte da Rússia). Ali escreveu o livro O Estado e a revolução – apaixonada e meticulosa defesa do conceito marxista da ditadura do proletariado, “cem vezes mais democrática que a mais democrática democracia burguesa”, com base nas lições da Comuna de Paris e prenunciando a república soviética em gestação.

Em julho agosto reuniu-se o 6º Congresso do Partido Bolchevique – na clandestinidade e sem Lênin, por razões de segurança. Os filiados já somavam 240 mil. A influência de massas crescia. Na avaliação do informe político, apresentado por Stálin, “o período pacífico da revolução terminou; começou o período não pacífico, um período de choques e explosões”. O 6º Congresso admitiu o pedido de ingresso no Partido de Trotsky e do pequeno grupo independente onde ele se abrigara, os Mejraiontsi, um e outro oriundos de uma posição centrista na polêmica bolcheviques x mencheviques.

Fracassa a Kornilovada, bolchevismo conquista os Sovietes

Em 25 de agosto sobreveio a Kornilovada: o general cossaco Lavr Kornilov (1870-1918), recém-promovido por Kerensky a comandante-em-chefe do exército russo, marchou sobre a capital com os cavalarianos da “Divisão Selvagem”, decidido a “acabar com os Sovietes” e “salvar a pátria” com uma ditadura militar. Era também um ultimato ao Governo Provisório, que, após muitos titubeios, buscou apoio dos bolcheviques.

Os bolcheviques chamaram à resistência armada. Em poucos dias, multiplicaram-se os efetivos da Guarda Vermelha, milícia operária ativa desde Fevereiro. Unidades revolucionárias do Exército e da Marinha acorreram para defender a capital junto com os operários. Em cinco dias a Kornilovada chegou a um retumbante fracasso. Os soldados cossacos a abandonaram. Kornilov foi preso, com 7 mil correligionários, antes de disparar um só tiro. Os bolcheviques, triunfantes, deixaram a clandestinidade imposta em julho.

No dia seguinte ao fim da Kornilovada, o Soviete de Petrogrado passou-se para as posições bolcheviques. Seus dirigentes mencheviques e social-democratas abandonaram os postos e uma direção bolchevique presidida por Trotsky assumiu. Dias depois o Soviete de Moscou seguiu o mesmo caminho. Estava preparada a cena para o Outubro vermelho.

revistaprincipios.com.br

Sem comentários: