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terça-feira, 25 de outubro de 2016

AS DUAS MÃES DE LEONARDO




             Faço fé no que li de Siegmund Freud. Um estudo sobre o divino renascentista incluído numa obra chamada Textos Essenciais Sobre Literatura, Arte e Psicanálise.
         Leonardo nasceu em Abril de 1462, exactamente em Vinci, perto de Florença, como filho ilegítimo de Ser Piero da Vinci, notário, homem de teres e haveres, e de Caterina, presumível rapariga do povo, admissível pobre e indefesa rapariga do campo.
         Deve ter-se dado o caso (relativamente comum) de um homem de meios de fortuna e ares de grande senhor mais ou menos nobre, ter abusado de uma rapariga de mais modesta extracção, exposta ao prestígio social do seu sedutor. Não sabemos. 


         
          Ser Piero casar-se-ia mais do que uma vez e estaria ausente da vida do filho nos primeiros anos da vida deste, o que levaria Leonardo a passar sem o apoio do pai aquela complicada fase dos primeiros anos da infância. E se Leonardo não contou, nos primeiros anos de vida, com a presença do pai, também, visto de outra maneira, não se sujeitou à intimidação autoritária que pode representar para a criança essa presença. O que não quer dizer que Leonardo, na juventude, não viesse de algum modo a tomar o pai como paradigma de conduta social, encontrando na protecção mecenática do duque de Milão, Ludovico Sforza, uma espécie de substituto da figura paterna – o que, por sinal, coincidiria com um período criativo bastante fecundo.

         O pai, Ser Piero, viria entretanto a casar com uma dama nobre. Mona Albiera (e ao que parece no próprio ano do nascimento de Leonardo) não resultando filhos desse casamento. E talvez por assim ter acontecido, Leonardo, aos cinco anos de idade, ingressa na casa do pai, ou, mais propriamente, na do avô paterno, permanecendo sob a influência de Mona Albiera, quer vem a ser a sua segunda mãe.
         Leonardo sairá de casa de seu pai com indeterminada idade, quando é a altura de entrar para a oficina de Andrea del Verrochio, com o objectivo de aprender o duro ofício de génio da pintura.
        Da primeira, e real, e legítima mãe, Caterina, opinam alguns investigadores (Freud fala de um russo chamado Mereschkovski), que terá mais tarde casado com outro homem, podendo não ter voltado a aparecer na vida do grande artista seu filho; ou podendo tê-lo feito em 1493, quando de uma visita a Milão, tinha Leonardo passado já dos quarenta de idade. E ainda, e segundo opiniões abalizadas, em Milão pode Caterina ter adoecido, ou pode ter mesmo morrido, levando um funeral de estadão integralmente pago pelo seu legítimo e afamado filho.
        

        Ficou para a posteridade um intrigante apontamento redigido pelo punho do próprio Leonardo, e que reza assim: parece que já há muito esteve determinado que me ocupasse de modo aprofundado dos abutres, pois me vem à recordação algo acontecido muito cedo,  quando ainda era criança de berço: um abutre passou junto de mim, abriu-me a boca com a cauda e roçou-a várias vezes contra os meus lábios.
         E a este apontamento vai Freud prestar grande atenção  no seu estudo.

         Acontece que nos escritos sagrados do velho Egipto cabia ao abutre a representação da figura da mãe – venerava-se uma deusa-mãe de cabeça de abutre, cujo nome seria mut
         Mas, quase com toda a certeza, Leonardo desconhecia tal simbolismo, quanto mais não fosse porque esse simbolismo só viria a ser estabelecido trezentos anos mais tarde por Champollion, depois de estudada a significação dos hieróglifos, como toda a gente sabe.
         Símbolo da maternidade era então o abutre quando no antigo Egipto se entendia que os abutres só tinham um sexo, o feminino, e não os havia machos. E o que corria nesse Egipto mítico, e se transformaria em lenda, era que os abutres, todos eles fêmeas, se detinham por uns  momentos nas alturas do seu vôo, suspendendo-o e colocando-se em postura propícia ao receber nos órgãos reprodutores a carícia e a força e o espírito do vento que os fecundava.
         O tópico da unissexualidade do abutre seria evidentemente desmitificado, muito embora, e sempre segundo Freud, as instâncias da igreja católica tenham podido apropriar-se do mito como sugestão da probabilidade de uma fecundação natural, uma fecundação pro artes da natureza bravía, conotando-a com o caso da própria Virgem Maria, a mulher que como os abutres da idade provecta da Humanidade poderia ter sido fecundada sem o contacto pecaminoso com o macho-homem, e apenas por meios tão naturais como o vento.
         E fosse por via do convívio com os padres da igreja o caso é que Leonardo se sentiu tocado pela beleza poética do mito do abutre egípcio, fantasiando a partir daí alguma ténue recordação que lhe sobraria da primeiríssima infância.
         A simbologia do abutre, porém, ia mais longe. A deusa-mãe com cabeça de abutre representavam-na os egípcios muitas das vezes como um falo: um corpo feminino, dotado de peitos femininos, mas também dotado de um membro viril. Donde se segue a ambiguidade das pistas maternais e simultaneamente masculinas e viris na fantasia concebida pelo privilegiado espírito de Leonardo.
         Leonardo era alto, bem feito de corpo, com um belíssimo rosto, e fisicamente forte, bem falante, simpático, amante da música e da boa companhia. Na sua maneira de ser, no entanto, tendia à indolência, à indiferença. Não era menino para conflitos. Não queria chatices com ninguém. Ah, e também não comia carne; e comprava pássaros no mercado (pássaros vivos, bem entendido) só para ter o prazer de os devolver ao vôo. à liberdade. Não, não achava bem que se dizimassem animais só para se lhes comer a carne.
     Leonardo costumava acompanhar criminosos ao local da execução, só para lhes registar as expressões do rosto perante a iminência da morte.

         E também abominava a guerra. O que pelo é curioso, uma vez que tal abominação não o impediu de ser engenheiro militar chefe de César Bórgia, para quem inventou algumas bem mortíferas máquinas de combate.
         Diz-se que rejeitava a sexualidade.
     Mas Freud refere expressamente a probabilidade de ter existido uma relação sexual entre Leonardo e os discípulos – os quais, como era normal na época, conviviam estreitamente com o mestre. 

                                                     
        E Freud ainda admite que o facto de da oficina e do magistério de Leonardo não ter saído nenhum pintor de génio poderá ser explicável se se presume que ele privilegiava para a condição de alunos seus rapazes bonitos, de bons dotes físicos, em lugar de alguns outros, porventura feiosos, mas de talento mais prometedor.

                                                          


         Na conformidade de ser provável que Leonardo denotasse tendências pederásticas, e depois da sua descrição do episódio do abutre, levanta-se a questão de saber se essa fantasia do abutre não estabelecerá, de certa forma, uma relação causal entre a vida de Leonardo criança com sua mãe e a homossexualidade posteriormente verificada – mesmo que idealizada, ou sublimada. Com alicerce na sua experiência clínica, Freud assevera-nos que tal relação causal seria possível, e até mesmo necessária.


         Caterina podia compensar o seu menino pela ternura e pelas carícias, em vista da falta do pai, colocando esse menino no próprio lugar do pai e desvirilizando-o pela precocidade da experiência erótica das carícias, dos beijos.
        O amor pela progenitora dificilmente acompanhava a evolução consciente do indivíduo, sendo por isso mesmo objecto de recalcamento. E dar-se-ia igualmente uma regressão para o auto-erotismo: os rapazinhos que Leonardo ia conhecendo seriam a configuração da sua própria pessoa, da sua própria imagem de criança e de adolescente, que ele amava como a própria mãe o amou em pequenino, um narcizinho enamorado da própria imagem…
            Levado do diabo este Freud…
         E outra coisa ainda: quando se apaixona por rapazes, o que faz é fugir de outras mulheres, as mulheres que o fariam infiel à imagem de sua mãe.


         Nos anos tenros da vida faltou a Leonardo o pai. Leonardo sentir-se-ia por isso mesmo como filho do abutre. Leonardo era uma criança ilegítima. Leonardo estava sózinho com sua mãe, como se esta tivesse sido fecundada pelo vento do deserto, pobre e abandonada, prodigalizando mimos à adorável criança que o vento lhe fizera gerar nas entranhas.
         Mas Mona Albiera, a mulher legítima de Ser Piero Vinci, não tinha, não teve, filhos. E, contra o que é habitual, aos cinco anos de idade, Leonardo, o ilegítimo, vai para casa de seu pai e para a companhia de uma madrasta , a mulher que é esposa legítima do pai e que ainda espera ter filhos próprios.

         Mona Albiera foi também de uma ternura muito grande na relação com o pequeno enteado. Um enteado que por causa desses afectos da madrasta também se teria dado a rivalizar com o pai. Escapado à intimidação da figura paterna nos primeiros anos de vida, Leonardo, na análise freudiana da sua evolução pessoal, dá indícios ao longo da vida madura de uma grande independência e de uma audácia acutilante, em particular no que tem a ver com as investigações científicas que empreende. O que significaria a ausência de condicionamentos psíquicos; ou  ausência de necessidade de se apoiar numa autoridade ou numa figura tutelar interiorizada, coisa normal na maior parte das crianças.
         Mas aquele que cria a suas próprias obras artísticas e científicas também é pai. E Leonardo pintava, esculpia, concebia e criava as  suas obras, mas… mas nem sempre as acabava. Quer dizer, com as suas obras, dadas ou não por concluídas, não se preocupava grande coisa após a criação, o ímpeto primeiro da criação, tal como o pai havia feito com ele nos primeiros anos.
         Ser amamentado e ser intensamente beijado pela mãe; ter tido a intima experiência, a experiência perturbante e criativa do abutre que roçou várias vezes a cauda contra os meus lábios, enfim, tudo isto realça a emergência fortíssima de uma relação erótica entre mãe e filho, e retendo-se a simbologia da actividade da mãe (ou seja, do abutre), com o sublinhado posto na zona da boca: o ser amamentado; o ser repetida e longamente beijado.
            (Este Freud…)

         Bem, mas tudo isto, por força, haveria de ter expressão nas obras artísticas maiores de Leonardo.  E dessas, aquela que primeiramente nos ilumina a larga pantalha da memória é o sorriso universal, prenhe de enigmas, irónico, redondo, todo ele sugestões, e longo, e subtil, e sensual: Mona Lisa, claro. Mona Lisa del Giocondo, quer dizer, senhora dona Lisa, mulher de Giocondo, isto é, do florentino Francesco Giocondo, e por isso chamada La Gioconda.


         Mona Lisa del Giocondo, que Leonardo, já cinquentão, leva quatro anos a pintar, e que pode ser o ápice estético de uma encruzilhada psíquica do artista. Um sorriso: Mona Lisa é um sorriso; um sorriso onde os estetas apanham em flagrante a dualidade, a reserva, a sedução, a ternura, a sensualidade. Leonardo declarou sempre esse quadro como inacabado e levou-o consigo quando emigrou para França, a expensas de Francisco I, acabando por ser o mesmo Francisco I a ficar-lhe com a tela e a pô-la no Louvre. Onde ainda hoje está, como se sabe.
                    
         Possivelmente, as belas cabeças leonardinas de criança não reproduziriam mais do que a época ideal da infância do próprio pintor. Mas entretanto, as mulheres que na obra de Leonardo, de quadro para quadro, sorriem esse sorriso repercutido e algo estilhaçado entre diversos sentimentos sobrepostos e passível de infinitas decomposições, remetem admissivelmente para Caterina, a sua primeira e verdadeira mãe. Um sorriso de mãe; um sorriso de mulher de que Leonardo nunca se teria libertado. Uma regressão do artista, que só lhe beneficiou a arte pela activação de um psiquismo, exteriorizável na confecção de sorrisos radiantes e misteriosos de mulher, evocativos de uma calma régia e poética que haveria no íntimo do sorriso da mãe tal como ele o recorda.


         Cronologicamente próxima da criação do retrato de Mona Lisa del Giocondo está a realização do quadro chamado Sant’Ana a Três. Aparecem Santa Ana, a filha e o neto. Melhor explicado: Santa Ana, Maria e o Menino Jesus. E nesse quadro o sorriso leonardino resplandece também no rosto das duas mulheres, menos inquietante embora, mais sereno e beatífico.
         Maria aparece sentada no regaço de sua mãe, inclinada para a frente, estendendo os braços para o Menino, que brinca com um carneirinho – o que dá aliás uma composição de grupo que nos pode parecer pouco natural.
         Na maneira de ver de Freud, o quadro Sant’Ana a Três pode ser uma síntese da infância de Leonardo, e assim pela reavaliação artística das tensões afectivas que lhe preencheram essa parte da vida. Porque, também é preciso dizê-lo, em casa do pai, a partir dos cinco anos, para além da ternurenta madrasta, Albiera, Leonardo foi acolhido pelos carinhos de Mona Lucia, sua avó, mãe de Ser Piero, seu pai – e é pelo menos engraçado verificar a similitude de sonoridade entre o nome da avó, Mona Lucia e o da mulher do florentino Del Giocondo, Mona Lisa – ainda que o “mona” sirva para as duas, porque quer dizer “senhora”.
         Acalentado pelas meiguices da mãe emprestada e da avó verdadeira, Leonardo teria sido objecto de uma super-protecção feminina, coberto de mimos, o menino na mão das bruxas, como se costuma dizer. E o que impressiona mais no quadro Sant’Ana a Três é que as duas mulheres, Santa Ana e Maria, não parecem nada mãe e filha. Santa Ana e Maria são-nos apresentadas como duas mulheres bastante jovens e bastante bonitas, como se Leonardo emprestasse ao Menino Jesus a auto-biográfica circunstância de ter sido educado, mimado, acarinhado e beijado por duas mães em vez de uma só. E dessas duas mães do Menino (ou de Leonardo) uma estende-lhe os braços, enquanto outra se deixa estar, contemplativa, rosto ornado de beato e maternal sorriso, num plano mais afastado do objecto dos seus afectos.
         No palpite de Freud, a figura que representa Santa Ana, e que se coloca no plano mais afastado, corresponderia à figura de Caterina, a primeiríssima mãe, a verdadeira. Caterina que teria recuado para o segundo plano do universo do filho ainda em tenra idade deste, suplantada pela outra, mais rica, nobre,ansiosa por conquistar o afecto  daquele coraçãozinho infantil e apropriar-se dele como o filho que não podia ter.
         E ainda no palpite de Freud, o sorriso que o artista desenha nessa figura atribuível a Caterina teria por finalidade disfarçar os traços amargos da inveja que a pobre camponesa seduzida pelo notário de Vinci sentiria por ter sido obrigada a ceder o filho a uma rival de extracção social superior à sua – obrigada a ceder o próprio filho, depois de lhe ter cedido o homem, note-se.
         E o magistral espantoso do quadro é que as duas figuras de mulher se fundem uma na outra na baralhação das pregas da roupa. Não há limites evidentes para cada uma delas do busto para baixo. É como se, para o artista, tudo fosse o afloramento de um sonho de recortes imprecisos, sem se saber onde começa Ana e onde acaba Caterina, confluindo ambas numa só forma, num só volume figurativo, as duas mães do pintor, dois bustos nascidos do mesmo tronco, duas almas encandeadas pelo pequeno sol que Leonardo era nas suas vidas.
         Mais perturbante, talvez, pode resultar a descoberta  de um crítico chamado Oscar Pfister ao estudar no Louvre o quadro Sant’Ana a Três. De acordo com Pfister – e com o aditamento que em 1919 Freud fez ao estudo original sobre Leonardo, datado do outono de 1909 – as roupas da  figura de Maria, em primeiro plano, estão escandidas de tal forma que configuram o contorno de um abutre, símbolo da maternidade, a cabeça, a curva no torso, na cintura, a linha que se lança na direcção do regaço.
         Claro está que só visto.
         E diz-nos Freud que Leonardo continuou a ser toda a vida, e em múltiplos sentidos, uma criatura infantil; continuou a brincar e a entreter-se com aparentes futilidades, o que fez dele, tantas vezes, um ser incompreensível aos contemporâneos. Freud diz-nos também que esse prolongamento da infância e dos seus jogos e mitologias é apanágio dos grandes espíritos.
       Sim, isso e mais a projecção que  no trabalho criador Leonardo fez da sua vida privada e familiar, da sua infância tremeluzente entre a consciência e a semi-consciência, e que aos cinquenta anos se resolve na feitura de obras de arte. 
E pergunta-se se não será esse o núcleo da energia criadora que está na orígem de toda a grande arte e a toda a originalidade de um génio…


A infância. A infância. O homem nunca chega a crescer muito, quer-me parecer. Ou não será o enigma da arte, a originalidade, o génio criador, irrepetíveis e incomparáveis porque irrepetíveis e incomparáveis são as nebulosas experiências íntimas de cada um, e que o maior génio será aquele que melhor e mais frequentemente convoca à consciência esses mistérios passados e esses factos irrepetíveis, e incompreensíveis,  jogando com eles da mesma maneira como no passado jogava os seus jogos infantis – e também misteriosos?
Pergunto eu.
Bom, mas também já houve quem dissesse que a Humanidade não era mais do que uma perversão da natureza.

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