As características geográficas do Baixo Alentejo e o facto do rio nunca ter constituído um obstáculo intransponível forçaram a instalação de fortins no seu leito para dificultar a passagem do inimigo, há 360 anos.
Vistos à distância, os fortins do Guadiana que faziam parte de uma primeira linha defensiva construída no leito do rio, entre 1640 e 1668, durante a Guerra da Restauração, para impedir as “entradas” (surtidas) em território nacional do invasor castelhano, assemelham-se a barcos ancorados. Esquecidas, estas testemunhas silenciosas de quatro séculos da História do país ali persistem, a esboroar-se.
Para descrever o que a silhueta dos fortins transmite, o historiador Leonel Borrela, que há cerca de duas décadas se dedica à investigação deste património militar, recorreu à terminologia náutica: “São construções solidamente 'ancoradas' sobre o afloramento rochoso na margem direita do rio, com a 'proa' virada para montante resistindo e cortando as águas que se escoam pelos lados de 'estibordo', o do curso normal do rio, e de 'bombordo', e com a popa virada para jusante”.
O fortim do Vau de D. Isabel, em Quintos, é o maior e o mais espectacular de todos os existentes no rio Guadiana e o que se encontra melhor conservado de um conjunto de cinco cujos vestígios chegaram aos dias de hoje. Tem cerca de 22 metros de comprimento por 8 metros de largura e 6 metros de altura. É uma curiosa estrutura defensiva, sem portas nem janelas. A sua construção “recorreu a materiais como rochas vulcânicas e sedimentares da região, calhaus e tijolo, argamassados com cal e areia, testados ao longo de séculos nos moinhos de água”, descreve o historiador, admitindo que a função militar deste e dos outros fortins se estendeu “às lutas entre liberais e absolutistas”.
O seu estado de conservação, observou o PÚBLICO, é razoável, mas a abóbada construída em tijolo já aluiu em grande parte. O interior está coberto de materiais resultantes do desmoronamento de elementos do próprio fortim. Arbustos e ervas daninhas há muito que tomaram conta da pequena fortaleza. Está rodeada de troneiras (aberturas na grossa parede de pedra), a partir das quais se vigiava e defendia uma das principais passagens a vau do rio e se fazia o disparo com armas de fogo. São patentes as “fissuras, infiltrações, tijolo à vista já sem reboco” que podem vir a precipitar o “desmoronamento eminente”, alerta Leonel Borrela.
Mas há um pormenor que pode vir a contribuir para a sua preservação, mesmo que não planeado. É que a barragem do Alqueva “domou”, embora não tenha vencido, um rio que ao longo de milhares de anos se revelou tempestuoso e imprevisível. Agora, a albufeira tenta regularizar e manter um caudal constante, o que evitou que os fortins continuassem a suportar as fúrias do mais irregular rio da Península Ibérica. A construção da grande barragem melhorou ainda a qualidade das águas, que agora seguem límpidas, contornando os fortins sem afrontar os seus alicerces. Desapareceu a imagem das águas eutrofizadas, recorrentes nos anos críticos de seca.
Observa-se, a partir da sua localização espacial, um pormenor que, do ponto de vista militar, poderá estar relacionado com a estratégia seguida para cobrir com eficácia aquele ponto do território: as encostas e cabeços que acompanham o curso do rio naquele local, que antecipa o “grand canyon” português no vale do Guadiana, não têm praticamente arvoredo ou outro tipo de obstáculos visuais que impeçam a identificação rápida de quem se aproxima do local vigiado pelo fortim. Leonel Borrela admite que a configuração do relevo é demonstrativa do tipo de “ocupação consentida” nessas áreas ao longo dos anos por razões que revelam o receio de “entradas” vindas do país vizinho e a necessidade em defender as culturas de cereais e os rebanhos de ovinos e bovinos em território português dos roubos constantes perpetrados pelos invasores espanhóis.
Durante os períodos das enchentes do Guadiana, os fortins ficavam, por vezes, submersos, mas, nessas alturas, ninguém podia atravessar o rio a vau por causa da violência da corrente. Quando isto acontecia, a natureza impedia as “entradas” dos castelhanos tornando os fortins temporariamente dispensáveis.
A historiadora Emília Salvado Borges descreve no seu livro A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo (1640-1668), recentemente editado, o contexto militar em que se concluiu pela necessidade de construir uma linha de fortins no rio Guadiana, precisamente onde a fronteira se revelava mais vulnerável à penetração dos castelhanos.
1 comentário:
Emilia Salvado Borges não refere no seu estudo,como lhe competia, os meus artigos sobre a fortificação do rio Guadiana durante a Guerra da Restauração, publicados entre 1996 e 2001 no jornal Diário do Alentejo. Ninguém, nas Forças Armadas conhecia tal linha defensiva, nem nunca tinham sido identificados, como tal, quaisquer fortins. Realizei a primeira exposição pública deste estudo no Regimento de Infantaria 1 de Beja e proferi várias palestras sobre o tema. Já é hábito de alguns académicos o menosprezo pelos estudiosos locais e, depois, dá imenso trabalho consultar os periódicos ou falar com quem conhece o meio cultural da região. Enfim... LBorrela
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