Carla Romualdo Uma história de amor
(Fotografia de autor desconhecido)
Conheci-os na enfermaria e, no que a estas linhas diz respeito, decidi chamar-lhes Maria e António. Ela já fez 80 anos, a ele falta-lhe pouco para lá chegar. São casados há muito tempo, tanto que ela já não recorda a vida sem ele. Ele deixou de saber como se chama, onde está, quem ela é, e passa boa parte do dia agitado, a tentar mover os dedos crispados pela artrose e a murmurar palavras ininteligíveis, e foi isso que me chamou a atenção, ainda antes de conhecê-la a ela. Tantas horas passadas a tentar falar, um tão grande esforço para articular palavras, que poderá ter ele para dizer-nos? Importar-lhe-á se conseguimos decifrá-las ou não? Sorrio-lhe, fraco consolo, sou tão desconhecida para ele como aqueles com quem passou a vida, não entendi uma palavra de todas as que ele pronunciou, e duvido que ele veja esse sorriso do lado de lá da névoa que lhe cobriu os olhos.
Só mais tarde a conheci a ela, uma mulher de passos inseguros, parece hesitar antes de pousar cada pé no chão. É bonita, tem um olhar inteligente e essa avidez de conversa de quem passa os dias só. Vivem um com o outro, sem filhos, e é ela quem trata dele, com a ajuda de uma cuidadora do centro de dia local.
Observo a destreza com que ela o cuida. Os complicados procedimentos para alimentá-lo pela sonda, os cuidados de higiene, o esmero irrepreensível dos pijamas que lhe traz de casa. As enfermeiras ensinam-na com paciência, lamentando ter de ensiná-la, lamentando ter de pedir-lhe o que não deveria ser-lhe exigido, mas ela não se queixa e presta atenção ao que lhe explicam. Dentro de dias, estará de novo sozinha e será ela a responsável, mais uma vez. Mas pelo menos, diz ela, pelo menos já não tem de fechar a porta à chave para que ele não fuja de casa, e di-lo como se fosse uma dádiva pela qual deve estar grata.
Há dias, ouvi uma conversa entre ela e as enfermeiras. Passar tempo numa enfermaria, ainda que nos curtos períodos de visita, é uma forma de vida comunitária, não podemos deixar de ouvir conversas que não nos dizem respeito, ficamos a conhecer os problemas dos outros, metemos inevitavelmente conversa, às tantas damos por nós a interessar-nos como se os conhecêssemos de há muito. As enfermeiras disseram-lhe que a situação dele era estável, a Maria perguntou se ele ia melhorar. Elas não podiam afirmá-lo. Mas a Maria assentiu com a cabeça e afirmou “Oxalá que sim, que melhore.”
E parecia tão sincera no que dizia, nenhuma sombra de hipocrisia, não o dizia por ser isso o que dela se esperava, mas porque era isso que sentia deveras. Oxalá que ele melhore. E não pude deixar de olhar de novo para ele, a respirar com oxigénio, preso à cama, despojado da sua memória, incapaz de alimentar-se, um terrível peso para uma mulher que em breve, se não já, precisaria que a cuidassem a ela. Não era evidente para quem os via que ela estaria melhor sem ele? Que era uma injustiça deixá-la sozinha com ele, que um país decente teria mais, muito mais a oferecer a dois velhos sozinhos que uma visita fugaz de alguém que tem a seu cargo dezenas de casos semelhantes? Quem poderia culpá-la se ela lhe desejasse a morte? Mas ei-la a regressar para o pé dele, e a aconchegar-lhe a colcha, e a recolocar-lhe uma farripa de cabelo grisalho que lhe tombara sobre a testa, com a mesma paciência de sempre, a mesma resignação, como tantas outras mulheres que dedicaram a vida a maridos que às vezes eram admiráveis e outras vezes uns canalhas, mas jamais deixaram de tê-las a seu lado.
Os consultórios, os hospitais estão cheios de mulheres assim, a empurrar as cadeiras de rodas deles, a tirar das malas os resultados das análises que eles teriam perdido, o cartão de diabético, as caixas de comprimidos, a alisar-lhes as calças, a censurar a nódoa que eles deixaram cair sobre o pulôver, e nada revolve mais as tripas do que ouvir os gritos e grosserias que alguns ainda lhes dedicam, às suas escravas devotadas. E há nelas paciência, resignação, e ainda espaço para um gesto amoroso, um aconchegar do casaco, um alisar do cabelo para que eles estejam mais bonitos quando entrarem no consultório, uma inesgotável capacidade de cuidar, seja ela reconhecida e retribuída ou não.
Quero acreditar que o António não era assim, que foi um homem atento e recíproco, e não serei eu a perguntar-lhe nada a ela sobre isso, por respeito mas também para não ter de ouvir o que não quero e lamentar ainda mais a sorte dela, tão lúcida e paciente, tão inteira na sua missão. Talvez ela o queira manter mais tempo por cá pela companhia que ele ainda lhe faz, porque com ele ao lado ela sempre pode fingir que ele a escuta e que a entende, e até pode distrair-se e fazer-lhe uma pergunta, para logo abanar a cabeça, que disparate, que cabeça a minha, a fazer-lhe perguntas, coitadinho. Ou talvez seja amor, talvez não imagine a vida sem ele, ainda que aquele já não seja exactamente o homem que existiu e ali tenha ficado apenas um corpo exausto, sem memória. Mas ele é ainda o mesmo, ou o que dele resta fora da memória dela, e é por isso que ela prefere que ele fique, como puder, ainda que sem autonomia, ainda que sem consciência, que da parte dela não haverá lugar a queixumes. É amor e numa das suas formas mais nobres e dilacerantes. E basta um dia em que o António lhe aperte a mão, como às vezes ainda faz, para que ela sinta que tão grande esforço vale a pena.
Agora despeço-me da Maria com dois beijinhos. Se calhar, ainda lhe peço o número de telefone antes que uma de nós vá embora.
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