Engels - Um salário justo por um dia de trabalho justo
Um salário justo por um dia de trabalho justo
Friederich Engels (1) - 1881
Friederich Engels (1) - 1881
"A justiça da economia política, na medida em que esta traduz verdadeiramente as leis que regem a atual sociedade, é uma justiça para um só lado – o lado do capital. Que o velho mote seja pois enterrado para sempre e substituído por outro: A apropriação dos meios de trabalho – matérias-primas, fábricas e maquinaria – pelos próprios trabalhadores."
Este foi o lema do movimento operário inglês nos últimos 50 anos. Prestou bons serviços no período de crescimento dos sindicatos, depois da revogação, em 1824, da infame lei sobre o direito de associação 2; prestou ainda melhores serviços durante o glorioso movimento cartista 3, quando os operários ingleses encabeçavam a marcha da classe operária europeia. Mas os tempos mudam, e muitas coisas que eram desejáveis e úteis há 50 anos ou mesmo há 30 anos, estão agora obsoletas e seriam completamente desadequadas. Será o caso desta antiga e consagrada palavra de ordem?
Um salário justo para um dia de trabalho justo? Mas o que é um salário justo, e o que é um dia de trabalho justo? De que forma são determinados pelas leis, sob as quais a sociedade moderna existe e se desenvolve? Para responder a esta pergunta, não podemos apelar à ciência da moral ou ao direito e à equidade, nem mesmo a qualquer sentimento de humanidade, de justiça, ou até de caridade. O que é justo do ponto de vista da moral ou mesmo do direito, pode estar longe ser justo do ponto vista social. A justiça ou injustiça social só podem ser determinadas por uma única ciência: a ciência que lida com os factos materiais da produção e da distribuição – a ciência da economia política.
Mas o que é que a economia política designa como salário justo e dia trabalho justo?Simplesmente o montante do salário e a duração e intensidade do dia trabalho que são determinados pela concorrência entre empresários e operários no mercado livre. E o que representam quando estes os determinam?
O salário justo por um dia de trabalho, em condições normais, é a soma que o operário precisa para adquirir os meios de subsistência necessários à manutenção da sua força de trabalho e sustento da sua família, de acordo com os padrões de vida do seu posto e do respectivo país. O nível efectivo dos salários, consoante as flutuações do mercado, pode por vezes estar acima e por vezes abaixo desse montante; mas, em condições justas, o seu montante deve ser a média de todas as oscilações.
Um dia justo de trabalho é aquele cuja duração e intensidade esgota completamente a força de trabalho do operário, sem afectar a sua capacidade de realizar a mesma quantidade de trabalho no outro dia e seguintes.
Assim, a transacção pode ser descrita do seguinte modo: o operário dá ao capitalista toda a sua força de trabalho de um dia; ou seja, tudo o que pode dar sem tornar impossível a repetição contínua da transacção. Em troca recebe a estrita quantidade de meios de subsistência, e não mais, necessários para repetir todos os dias o mesmo contrato. O operário dá o máximo e o capitalista dá o mínimo que a natureza da negociação permitir. É um tipo muito peculiar de justiça.
Mas analisemos o assunto com um pouco mais de profundidade. Uma vez que, segundo os economistas, o salário e a jornada de trabalho são fixados pela concorrência, o sentido de justiça exigiria que ambas as partes estivessem em pé de igualdade à partida. Mas não é o caso. Se o capitalista não chegar a acordo com o trabalhador, tem condições para esperar, vivendo do seu capital. O trabalhador não o pode fazer. Só pode viver do salário, e por conseguinte precisa de aceitar trabalho quando, onde e nos termos em que conseguir obtê-lo. O trabalhador não está à partida em pé de igualdade. A fome coloca-o numa terrível situação de desvantagem. No entanto, de acordo com a economia política da classe capitalista, isto é o cúmulo da justiça.
Mas tal é ainda uma mera ninharia. A introdução da força mecânica e da maquinaria em novos ramos e o alargamento e aperfeiçoamento da maquinaria em ramos que já a utilizavam continuam a privar de trabalho cada vez mais «braços»; e isto decorre num ritmo bem mais rápido do aquele com que os «braços» excedentários são absorvidos e encontram emprego nas fábricas do país. Estes «braços» excedentários formam um verdadeiro exército industrial de reserva para uso do capital. Se o negócio está mal podem morrer de fome, ter de mendigar, roubar ou ir para casas de trabalho 4 [workhouses]; se o negócio vai bem estão ali à mão, prontos para aumentar a produção. E enquanto o último homem, mulher e criança deste exército de reserva não tiverem encontrado trabalho – o que só acontece nos períodos de frenética sobreprodução –, até essa altura, a sua concorrência manterá os salários baixos e a sua simples existência reforça o poder do capital na sua luta contra o trabalho. Na corrida com o capital, o trabalho não está só em desvantagem, tem de arrastar uma bala de canhão agrilhoada ao pé. No entanto, de acordo com a economia política capitalista, isto é justo.
Mas perguntemo-nos, de que fundo o capital paga estes salários tão justos? Do capital, pois claro. Mas o capital não produz valor. O trabalho, além da terra, é a única fonte de riqueza; o capital em si não é mais do que a acumulação do produto do trabalho. Então os salários do trabalho são pagos a partir do produto do trabalho, e o trabalhador é pago com o produto do seu próprio trabalho. Segundo o que podemos chamar comumente justiça, o salário do operário deveria corresponder ao produto do seu trabalho. Mas segundo a economia política isso não seria justo. Pelo contrário, o produto do trabalho do operário vai para o capitalista, e o trabalhador recebe dele não mais do que o estritamente necessário para subsistir. Deste modo, o resultado desta invulgarmente «justa» prova de competição é que o produto do labor daqueles que trabalham se acumula inevitavelmente nas mãos daqueles que não trabalham, e transforma-se nas suas mãos na mais poderosa arma para escravizar precisamente aqueles que o produziram.
Um salário justo para um dia de trabalho justo! Muito se poderia dizer também sobre o dia de trabalho justo, cuja justiça é perfeitamente equivalente à do salário. Mas teremos de deixar isso para outra ocasião. Do que foi dito é bastante claro que o velho lema já teve os seus dias, e dificilmente se adequará ao nosso tempo. A justiça da economia política, na medida em que esta traduz verdadeiramente as leis que regem a actual sociedade, é uma justiça para um só lado – o lado do capital. Que o velho mote seja pois enterrado para sempre e substituído por outro: A apropriação dos meios de trabalho – matérias-primas, fábricas e maquinaria – pelos próprios trabalhadores.
Notas:
1 Sob o título «O Sistema de Trabalho Assalariado» Engels publicou onze artigos no jornal londrino The Labour Standard, em 1881. O presente texto foi escrito em 1 e 2 de Maio e publicado como editorial no primeiro número daquele diário, em 7 de Maio de 1881. (N. Ed.)
2 Em 12 de Junho de 1824, sob a pressão das massas, o Parlamento revogou a proibição dos sindicatos, aprovada em Julho de 1799 (An Act to prevent unlawful Combinations of Workmen). No entanto, em 1825, foi aprovada uma nova lei que impôs grandes restrições à actividade dos sindicatos . Simples acções junto dos operários para que aderissem aos sindicatos e participassem nas greves eram consideradas como «coacção» e «violência», e punidas como «crimes». (N. Ed.)
3 O cartismo foi um movimento social da classe operária inglesa nos anos 30 e 40 do século XIX, cujo nome teve origem numa petição (People's Charter). Neste documento, enviado ao parlamento em 1838, entre outras medidas, exigia-se o sufrágio universal, proporcional e secreto, e a possibilidade de eleger operários para o parlamento. (N. Ed.)
4 Em 1834, a burguesia inglesa decidiu alterar a lei sobre os pobres (Poor Law Amendment Act), pondo fim aos vários esquemas de assistência aos desempregados e indigentes. É então decretado o seu internamento obrigatório em casas de trabalho (workhouses), sob regime prisional, sujeitos a trabalhos forçados e condições desumanas. Engels, no seu livro A Situação da Classe Operária em Inglaterra (1845), acusa «os comissários malthusianos» (responsáveis pelo projecto da nova lei) de tratarem a pobreza «como um crime»: «Persuadidos, como Malthus e outros defensores da livre concorrência, de que o ideal é que cada um cuide de si mesmo, aplicando-se consequentemente o laissez-faire, eles gostariam de revogar, pura e simplesmente, as leis sobre os pobres. Contudo, carentes da coragem e da autoridade necessárias para tanto, propuseram uma nova lei tão malthusiana quanto possível, mas ainda mais bárbara que o laissez-faire – porque, se este é meramente passivo, a nova legislação é activamente interventora. Observamos que Malthus faz da pobreza, ou mais exactamente do desemprego que se manifesta nos "excedentes", um crime que a sociedade deve punir com a morte pela fome». (A Situação da Classe Operária em Inglaterra, ed. Boitempo, São Paulo, 2008, p. 317). O sistema das casas de trabalho foi formalmente abolido em 1930, com a sua reconversão em instituições de assistência pública. Todavia, é só em 1948 que estas instituições são de facto eliminadas com a aprovação da lei (National Assistance Act) que cria uma rede de protecção social (social safety net). (N. Ed.)
Fonte: Pelo Socialismo
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