Uma vez por mês vão às reuniões de psicoterapia de pais em luto, onde aprendem estratégias, como esta das frases-cliché, para tentarem gerir o que lhes aconteceu desde que há um ano perderam Catarina, uma das seis jovens que foi levada pelo mar na praia do Meco. Todos os dias descobrem o que conseguem e ainda não conseguem fazer. Mesmo tendo os dois perdido a mesma filha, cada um encontrou a sua maneira de viver estes meses.
Catarina Soares morreu há um ano, o cão que nos salta para cima à entrada do apartamento onde os seus pais vivem, no Barreiro, tem 11 meses da idade. Parece que o cachorro Texas está sempre a importunar os pais de Catarina — protestam quando o barulho dos seus latidos se sobrepõe à conversa, ordenam que se sente quando ele se põe a correr de um lado para o outro da sala ou lhes salta para cima, quando abocanha a bota preta de Fernanda, enquanto ela está a falar da filha, ela diz-lhe “não quero beijinhos”, tentando retomar a frase onde a deixou. “Não sejas mal educadinho”. “Tu és chato, tu és mesmo chato”, interrompe o pai.
O pai de Catarina tem de ir passear o cachorro à rua três vezes por dia, antes de ir para o banco onde trabalha, à tarde e depois à noite. Tudo é dito como se fosse uma obrigação mas Texas é como as frases com que aprenderam a defender-se das perguntas dos outros, tem uma função, cria distracções, preenche silêncios. “Ele é a minha sombra”, admite o pai. Foi o filho quem lhes ofereceu o cão cerca de um mês depois de a irmã ter morrido, talvez adivinhando o uso que viria a ter. Chegou-lhes a casa pequeno, “era uma coisa felpuda assim” e António faz o gesto que dá conta dessa pequenez, que contrasta com o tamanho actual do pastor alemão que torna a sala de estar mais pequena com as suas passadas. “É uma companhia, é um escape”.
Para Fernanda ir passear o Texas à rua seria impossível, porque isso significaria que teria de sair pela porta do prédio onde vivem e percorrer a pé as ruas em volta com o cão pela trela e ela não conseguiria passar pelo Espaço Jota, o café onde filha ia estudar, pela zona da Avenida da Praia, onde ela costumava passear, pela esplanada do parque onde às vezes ia tomar café. Desde que Catarina morreu que Fernanda não consegue sair de casa pela porta principal. O que faz é apanhar o elevador no andar onde vivem, descer à garagem na subcave, entrar para dentro do carro, ligar a ignição, pressionar o telecomando que lhe abre automaticamente a porta da garagem e conduzir o mais depressa possível para longe de todo aquele circuito familiar que é o seu bairro, foge das recordações de Catarina ao máximo de velocidade possível dentro das localidades. Todas as suas saídas a pé têm de ser fora daquele perímetro de memórias.
É então António quem faz as compras ali em volta, quem responde como pode às perguntas que conhecidos lhe continuam a fazer, aos “tudo bem?” e aos “como vai andando”. Ele consegue andar perto dos sítios de Catarina, mas, ao contrário da mulher, ainda lhe é impossível entrar no quarto da filha. Nunca o fez. Fernanda entra todos os dias. Às vezes, quando não encontra a mulher pela casa já sabe que está lá dentro. Não a incomoda. Fica à espera que saia. Já sabe o que lá está a fazer. Aprenderam “a não criticar o que o outro faz”.
Todos os dias, de manhã ou à noite, Fernanda percorre as roupas do armário da filha para escolher o que ela, “que é vaidosa”, vestiria no dia seguinte. A escolha é feita consoante o estado do tempo, se está frio ou o calor, e consoante as ocasiões, como é sexta-feira e vem ai o fim-de-semana opta por “uma roupa mais airosa”. “Amanhã não lhe vou por gabardina, já sei que não vai chover. Vou-lhe por um cachecol, uma roupinha quente”. O conjunto escolhido fica parado em cima da cadeira do quarto, como se ela fosse vesti-lo no dia seguinte. Sucessivamente. Há um cheiro que as roupas dela continuam a exalar que a conforta. De tanto emagrecer, passou a conseguir vestir-lhe as blusas e às vezes transporta essa fragrância com ela, quando vai dar as suas aulas de Economia à escola secundária onde trabalha.
A par das rotinas que foram criando há imprevistos emocionais. Catarina sabia que quando havia um doce em casa era certo que o irmão o comia antes de ela chegar, tinha sido sempre assim, desde pequenos, “as grandes guerras eram por guloseimas”. Por isso, Catarina habituou-se a escondê-las em sítios estratégicos onde imaginava que o irmão não chegaria. É por isso que, de vez em quando, Fernanda encontra uma tablete de chocolate escondida numa estante, no fundo de um armário. Não a tira do sítio. Fica no local onde a filha deixou o doce. Como tudo o resto. Ainda é demasiado cedo para pensar em deslocar objectos, mais ainda em dar coisas que lhe pertenciam.
Fernanda admite que se não fossem as circunstâncias da morte da filha, talvez não estivesse ainda neste “estado de meio-luto”, como lhe chama. Quando vão às reuniões de psicoterapia de pais em luto, que juntam seis ou sete casais que perderam filhos, sentem-se lá bem, porque parece que “falamos todos a mesma linguagem”. Mas, ao mesmo tempo, é como se não falassem. “Nós não sabemos o que se passou, eles falam de uma forma diferente da nossa”, complementa António. Os outros pais sabem que fim tiveram os filhos, um suicídio, uma doença, um acidente de mota, foram encontrar naquele grupo um casal que perdeu os dois filhos num acidente de automóvel e que é da mesma localidade onde os jovens da Universidade Lusófona estavam a passar o fim-de-semana, Aiana de Cima. Para todos eles houve uma morte com explicação. Eles andam há um ano tentar saber o que chamam de “a verdade”. Vivem nesta “ânsia por um fim. A gente tem de descobrir”, diz António.
Além das reuniões com outros pais em luto, há outra ocasião em que António e Fernanda se sentem quase como numa “comunidade”. “Estamos todos no mesmo barco”. É quando se reúnem com os pais daqueles seis filhos que morreram, no escritório do advogado que os está a representar, e onde decidem em conjunto que passo jurídico tomar a seguir, sentem “união”. Ali não há desacordo e “todos nós falamos dos nossos filhos”. Saem daquelas reuniões, que costumam ser à segunda-feira às 18h00, “com alento”, descreve o pai.
Em cima da mesa da sala de estar do casal está um dossier cor-de-rosa onde Fernanda guarda as peças do processo judicial, ao lado, num caderno de argolas, toma as suas notas. Só sobre o despacho de arquivamento Fernanda tirou 20 páginas de “observações”. Não é preciso ser jurista para que muito do que ali se escreve cause perplexidades e dúvidas, diz. “Como é que se pode chama a rastejar ‘um acto de camaradagem’?”.
Os pais defendem que a morte dos seus filhos podia ter sido evitada, que tudo aconteceu mais cedo do que contou o dux e que este simulou o seu pré-afogamento. Defendem que é ele o responsável por ter exposto os colegas a uma situação de perigo. O dux, João Gouveia, explicou a sua sobrevivência pela "sorte" mas principalmente por ter despido o traje académico, que lhe atrapalhava os movimentos, por ter experiência de bodyboard. Contou que esteve em situação de pré-afogamento e que pediu logo ajuda.
Muitas das noites em que não consegue dormir Fernanda passa-as em maratonas de leituras e apontamentos. São noites “a juntar as peças do puzzle. Está tudo ligado. Sei o processo de trás para a frente”. É quase só Fernanda quem fala. Está a tomar antidepressivos e comprimidos para dormir, mas é também “a adrenalina” do processo que a move. Em Agosto foi o despacho de arquivamento por ausência de indícios de crime, em Outubro a reabertura do processo (de instrução). A última diligência passou por pedir o afastamento do juiz por alegada falta de imparcialidade, que o Tribunal da Relação de Évora entretanto recusou.
Há quase um ano que Fernanda e António vivem com intensidade todas as diligências do processo judicial. Há sempre coisas a fazer para descobrir “a verdade”. Ainda no sábado passado rumaram ao Meco para, pelos seus próprios olhos, “terem uma noção da visibilidade de uma noite de lua cheia”, como naquela noite.
Fernanda conta que talvez a maior quebra emocional deste ano tenha mesmo sido a 15 de Setembro, quando entregaram o pedido de reabertura do processo. “Isto alimentava-me. Eu canalizo grande parte do meu esforço nesta missão”. A partir dessa data não havia mais despachos a estudar, apontamentos a tirar. Só podia “esperar, só esperar”. E sem nada de judicial que a alimentasse foi-se abaixo.
Porque não há nada mais que a empurre. Os projectos em família eram a quatro e havia sempre um. Uma viagem. “Quisemos dar mundo aos nossos filhos”. Fizeram snorkeling na Grande Barreira de Coral, na Austrália, conduziram até Las Vegas, foram ver ao vivo as paisagens do Senhor dos Anéis, na Nova Zelândia, percorreram a Europa de carro, conheceram o deserto. Como é agora? “Sabe quando estamos constipados e tudo sabe ao mesmo. A minha vida é assim, tudo me sabe ao mesmo”.
É ao final de dia que se sente mais a ausência, porque é quando Catarina estava mais presente. É fim de tarde e Fernanda atende o telefone. “Sim filho. Diz, amor”. É o filho Nuno ao telefone, a dizer que está naquele momento a sair da faculdade, tem mais dois anos e meio do que tinha Catarina, que morreu com 22 anos. Informa regularmente os pais das suas movimentações ao longo do dia, para não os preocupar. Recusam-se a dizer que Nuno agora "é filho único".
À volta de Fernanda e António há pessoas que se aproximaram deles depois da morte da filha e solidariedade vinda de sítios inesperados mas também há pessoas que se afastaram das suas vidas. Uns por desconforto, “não sabem o que nos hão-de dizer”, outros “porque nós somos a prova de que isto não é ficção, pode-se mesmo perder um filho”. Sentem que há pais que passaram a ter medo deles.
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