HIPPIE HIPPIE, URRA
Perguntou-me a minha filha se eu fui hippie ou yuppie.
A pergunta não faz sentido, embora se deva dar o desconto por ser feita por uma garota de 22 anos. Primeiro, porque não se trata de uma disjunção. Não se pode ter sido hippie OU yuppie, pois não são realidades sociais concomitantes. Hippies é coisa dos anos 60, yuppies, dos anos 80. Segundo, porque feita assim a pergunta dá a ideia de que só existem essas duas possibilidades. Por fim, mas não menos importante, porque não faz sentido falar de um movimento hippie em Portugal.
Portugal não teve anos 60. Portugal era o TV Rural, as picarias, as festas da aldeia, o Roberto Carlos, o Nelson Ned e o Gianni Morandi, o Benfica-Sporting, as casas de pasto, os salões de bilhar, o natal dos hospitais mais o festival da canção, os emigrantes, os magalas e as sopeiras. Mais do que o trio sex, drugs and rock and roll, Portugal era o Trio Harmonia. Mais do que o duo Sonny & Cher era o Duo António Calvário & Madalena Iglésias. Claro que havia urbanas festas de garagem alimentadas com Doors, Stones e Janis Joplin e condimentadas com uns charros apesar dos avisos de Droga, Loucura e Morte pelas paredes de Lisboa. Como havia jovens de classe média que iam a Londres ou Paris. Mas isso era para quem tinha dinheiro para comprar discos, dar-se ao luxo de passar fome no estrangeiro, ser filho de alguém que tivesse uma vivenda com garagem e andasse no liceu, coisa nada fácil naquele tempo. Ah, e nos anos 60 eu era uma criança.
Mas mesmo em Inglaterra, EUA ou França, o que foram os anos 60? Ok, foram muita coisa. Longe, porém, de se poderem reduzir a um filme chamado Woodstock, meia-dúzia de fotografias com valor iconográfico, a umas canções subversivas e às recordações de uns velhotes que falam hoje do seu tempo como se eles e o seu tempo fossem um centro. A não ser que se trate de um centro de reabilitação.
Mas se a pergunta da minha filha merece desconto, imperdoável foi a estupidez da resposta do pai: hippie. Ou seja, a criatura que acabou de escrever toda esta lengalenga é precisamente a mesma que respondeu isso mesmo: hippie.
A frequência dos meus episódios de estupidez é preocupante. Isso, todavia, não refreia o meu desejo de tentar perceber a sua origem. Quer dizer: sou estúpido mas gosto de ter a consciência de que sou estúpido e de saber por que sou estúpido. Esta vez não foi excepção. A minha filha fez-me uma pergunta. Uma pergunta errada e mal formulada. Uma pergunta com duas gavetas: a gaveta dos hippies e a gaveta dos yuppies. Ora, eu nunca fui um hippie, aliás, nem poderia tê-lo sido. Porém, o que se passou na minha cabeça para ter dado uma resposta arrastada pelo nível falacioso da pergunta?
Em primeiro lugar, uma necessidade de objectividade, funcionalidade e objectividade que ocorre habitualmente ao nível da comunicação. Por exemplo, quando na rua nos dizem "Olá, estás bom?", nós respondemos "Tudo bem, e tu?" E o outro responde "Tudo bem também", e seguimos viagem. Ninguém vai fazer entrar em pormenores nem é esse o objectivo da pergunta. Claro que perguntarem-nos se somos A ou B não é o mesmo do que um cumprimento. É mais complexo. Só que mal a minha filha fez a pergunta, de imediato percebi que estava a ser mentalmente orientada por um estereótipo e que apenas queria arrumar-me numa das duas gavetas. E eu quis ser eficaz, tendo para isso sacrificado a complexidade que a pergunta exigia.
Agora, e em segundo lugar, por que razão disse eu ter sido um hippie apesar de nunca o ser? Porque, num processo mental de uma rapidez absolutamente fulgurante, associei meia dúzia de referências alojadas num cantinho do meu cérebro cuja textura é mais imaginária do que racional. Foi assim uma resposta feita de músicas que ouvi, ideias que tive, roupas que vesti, cabelo e barba comprida que usei, coisas que fiz, ou que nunca fiz mas desejei fazer.
Daí eu ouvir a pergunta e responder com a mesma espontânea naturalidade se me perguntassem se sou do Benfica ou do Sporting, se gosto mais de Bergman ou de George Lucas, se prefiro ir à National Gallery ou ao Madame Tussaud, se gosto mais de um dia de Outono ou de um dia escaldante de Verão, se prefiro jaquizinhos fritos com arroz de tomate ou uma pizza congelada, se gosto mais de azul ou de verde alface.
O que é assustador não é a minha estupidez ao dar uma resposta errada ou falsa à minha filha. Eu sou eu, e a minha estupidez só por si não trará grande mal ao mundo. Assustador é poder chegar a perceber que grande parte dos pensamentos mais comuns dos seres humanos se baseiam neste tipo de processos mentais básicos, espontâneos, quase involuntários. Muitas vezes com consequências que podem ser más. Noutros, podendo mesmo ser tenebrosas.
Mas se a pergunta da minha filha merece desconto, imperdoável foi a estupidez da resposta do pai: hippie. Ou seja, a criatura que acabou de escrever toda esta lengalenga é precisamente a mesma que respondeu isso mesmo: hippie.
A frequência dos meus episódios de estupidez é preocupante. Isso, todavia, não refreia o meu desejo de tentar perceber a sua origem. Quer dizer: sou estúpido mas gosto de ter a consciência de que sou estúpido e de saber por que sou estúpido. Esta vez não foi excepção. A minha filha fez-me uma pergunta. Uma pergunta errada e mal formulada. Uma pergunta com duas gavetas: a gaveta dos hippies e a gaveta dos yuppies. Ora, eu nunca fui um hippie, aliás, nem poderia tê-lo sido. Porém, o que se passou na minha cabeça para ter dado uma resposta arrastada pelo nível falacioso da pergunta?
Em primeiro lugar, uma necessidade de objectividade, funcionalidade e objectividade que ocorre habitualmente ao nível da comunicação. Por exemplo, quando na rua nos dizem "Olá, estás bom?", nós respondemos "Tudo bem, e tu?" E o outro responde "Tudo bem também", e seguimos viagem. Ninguém vai fazer entrar em pormenores nem é esse o objectivo da pergunta. Claro que perguntarem-nos se somos A ou B não é o mesmo do que um cumprimento. É mais complexo. Só que mal a minha filha fez a pergunta, de imediato percebi que estava a ser mentalmente orientada por um estereótipo e que apenas queria arrumar-me numa das duas gavetas. E eu quis ser eficaz, tendo para isso sacrificado a complexidade que a pergunta exigia.
Agora, e em segundo lugar, por que razão disse eu ter sido um hippie apesar de nunca o ser? Porque, num processo mental de uma rapidez absolutamente fulgurante, associei meia dúzia de referências alojadas num cantinho do meu cérebro cuja textura é mais imaginária do que racional. Foi assim uma resposta feita de músicas que ouvi, ideias que tive, roupas que vesti, cabelo e barba comprida que usei, coisas que fiz, ou que nunca fiz mas desejei fazer.
Daí eu ouvir a pergunta e responder com a mesma espontânea naturalidade se me perguntassem se sou do Benfica ou do Sporting, se gosto mais de Bergman ou de George Lucas, se prefiro ir à National Gallery ou ao Madame Tussaud, se gosto mais de um dia de Outono ou de um dia escaldante de Verão, se prefiro jaquizinhos fritos com arroz de tomate ou uma pizza congelada, se gosto mais de azul ou de verde alface.
O que é assustador não é a minha estupidez ao dar uma resposta errada ou falsa à minha filha. Eu sou eu, e a minha estupidez só por si não trará grande mal ao mundo. Assustador é poder chegar a perceber que grande parte dos pensamentos mais comuns dos seres humanos se baseiam neste tipo de processos mentais básicos, espontâneos, quase involuntários. Muitas vezes com consequências que podem ser más. Noutros, podendo mesmo ser tenebrosas.
ponteirosparados.blogspot.pt
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