PRELIMINARES DO SING SING
Depois de pintar a cara de amarelo, a mão de um colega desenha o entorno dos olhos deste jovem dançarino.
Estamos em Wabag, capital da província de Enga, em PNG. Essa região é uma das mais altas do país, cercada de montanhas e bem isolada de tudo. Para chegar, sacolejamos várias horas por uma estrada de terra. O corpo ficou moído e a bunda amassada. A razão de nossa ida a esse paradeiro tão longínquo foi assistir a um sing-sing.
Sing-sing (canta-canta) é uma palavra no idioma local tok pijin que define as grandes reuniões tribais celebradas com danças e cantos. O sing-sing sempre aconteceu em diferentes vilarejos isolados. Mas, a partir da década de 50, o festival passou a servir como um exercício de integração nacional.
Em vez das tribos se encontrarem para resolver diferenças de fronteiras agrícolas e, consequentemente, entrarem em confronto, o sing-sing pretendeu ser uma “competição” cultural. Aquele grupo que estivesse mais pintado e melhor decorado – e que fizesse a melhor apresentação – ganharia um prêmio. Mas como as guerras tribais estão no DNA dos povos de PNG, os primeiros resultados acabaram gerando confusão. Os que não haviam vencido, inconformados com a decisão do jurado, passaram ao confronto, aproveitando que já estavam armados com lanças e machados. Conclusão: hoje, ninguém mais ganha prêmio.
No dia seguinte, acordo cedo. Todos os grupos que vieram a Enga para participar do sing-sing estão hospedados em diferentes casas, distribuídas pelo próprio vilarejo. Seguindo as dicas da criançada na rua (e um pouco de intuição) descubro onde alguns grupos estão hospedados. Chego quando um grupo de homens dá início aos preliminares. Esse é um dos momentos mais fascinantes do sing-sing.
Nenhum dançarino viaja para um sing-sing sem seu espelho.
Convidado a entrar no quintal de uma casa, sigo as diferentes etapas de preparação. Tudo começa com a pintura da cara. Os instrumentos principais são um pauzinho que serve de pincel e um pequeno espelho para acompanhar a maquiagem. O trabalho é demorado. Não precisa ter pressa. Ainda falta muito para a festa começar. O rosto é coberto de tinta amarela. Algumas vezes é tinta a óleo mesmo. Outras vezes, é a mistura de um pó corante com óleo de cozinha.
Esse grupo masculino vem de Tari. Eles fazem parte da tribo Huli, a maior da província das Montanhas do Sul. A marca registrada deles é a face amarela. A segunda cor é a vermelha: é usada para o contorno dos olhos e o dorso do nariz. Depois disso, é a hora de arrumar o penteado. Uma espécie de chapéu, confeccionado com cabelo humano, recebe plumas, penachos e decorações florais. Para terminar, é a vez de pintar a barba. O processo leva de uma a duas horas. Um dos principais atributos dos guerreiros de PNG é a vaidade!
Rosto pintado, cabeça decorada e plumas na peruca. Agora é a vez dos finalmentes: pintar a barba.
OS HOMENS DE BARRO DE POGLA
E hoje, onde estão os temíveis homens de barro?
Os membros do vilarejo Komunive (a 30 minutos de estrada de Goroka, na província das Montanhas Orientais), afirmam que apenas eles têm o direito de encenar a epopéia de seus ancestrais. Todos os outros são “impostores”, segundo Okoroho, o chefe tribal de Komunive.
A primeira vez que os habitantes de Komunive mostraram sua história dos homens de barro foi na Feira de Agricultura de Goroka em 1957. O público local, acostumado apenas com danças, teria ficado assustadíssimo com os fantasmas de barro. O espetáculo não era para turistas: o país ainda estava sob mando australiano na ocasião e os estrangeiros evitavam a região das montanhas, devido às conhecidas guerras tribais.
Com o passar das décadas, a lenda dos homens de barro passou a ser propagada na região das montanhas e outras comunidades também quiseram incluí-la em seus repertórios culturais. Foi o caso do grupo de Pogla que veio a Paiakona para participar de um pequeno sing-sing. Eles trouxeram cerca de 20 máscaras de mud men.
Conversei com Rapkil Kuipa, chefe do Centro Cultural Pogla. Ele conta que o grupo foi criado em 1970 e todos os membros continuam exercendo sua principal função: são agricultores. Uma vez por semana eles organizam uma apresentação. Com o dinheiro arrecadado, eles conseguiram construir uma pousada de sete quartos, que gera fundos adicionais e ajuda a trazer alguns turistas adicionais ao local. “Nossa cultura é forte e vai se manter intacta, pois nossas crianças estão envolvidas”, diz Kuipa. Se depender de sua prole, não há dúvida. Kuipa tem cinco esposas e um total de dez filhos. Todos fazem parte do centro cultural.
Resolvemos acompanhar os homens de barro até o vale do rio Waip, para fotografá-los no mato, em seu estado natural.
Se existem 820 idiomas em Papua Nova Guiné é porque a diversidade cultural é imensa. Isso faz com que as tradições sejam riquíssimas. Mas essas diferenças entre povos e clãs também provocaram – e ainda provocam – grandes conflitos. Ou seja, guerras tribais em PNG ainda são um esporte popular!
Há muitas e muitas décadas (talvez até séculos), uma tribo poderosa das montanhas de Goroka invadiu as terras de uma outra. Ateou fogo nas casas de palha, matou os homens que tentaram se defender e raptou as mulheres mais jovens. Os que sobreviveram, tiveram que fugir e mergulhar nas águas barrentas do rio Asaro.
A lenda conta que os sobreviventes, depois do terrível incidente, se reagruparam. Notaram que quase todos tinham uma coloração esbranquiçada: o barro da água do rio havia secado sobre a pele, dando uma tonalidade meio fantasmagórica. Como o grupo era pequeno, eles precisavam encontrar uma estratégia para vencer o inimigo – mais armado e em maior número. A lama seca tinha lhes dado uma idéia.
Apelaram, assim, para o medo que todos nós temos – e principalmente os habitantes das montanhas de PNG – de fantasmas e maus espíritos. Sobre uma estrutura de gravetos e bambu, como se fosse uma enorme cabeça, eles moldaram, com o barro do rio, terríveis caras de fantasmas. As máscaras tinham bocas deformadas, orelhas imensas e narizes como se fossem focinhos de porco. Deixaram apenas dois espaços em frente aos olhos para que eles pudessem ver onde estavam. Em seguida, o corpo foi todo untado do mesmo barro, do pescoço aos pés. E, como prolongação dos dedos, cortaram longos pedaços de bambus que encaixaram em cada um dos dez dedos das mãos.
Os homens de barro criaram uma tática de guerrilha, usando o temor dos maus espíritos.
Um par de noites mais tarde, os sobreviventes, camuflados como fantasmas, chegaram ao vilarejo inimigo. Todos dormiam profundamente. Quando o dia começou apenas a clarear, os atacantes deram o sinal e começaram a bater violentamente seus dedos de bambus, uns contra os outros. O barulho aterrorizante fez com que os homens da tribo acordassem e dessem de cara com um grupo de fantasmas. O pavor tomou conta de cada um e todos fugiram, deixando seus pertences. Conta a lenda que as mulheres que haviam sido raptadas regressaram ao ouvir algumas palavras em seu próprio idioma, incompreensíveis para os adversários.
Esse episódio de bravura e estratégia passou a ser um símbolo da cultura de PNG e os homens de barro – ou mud men no idioma local e em inglês – tornaram-se heróis.
MUMU (3): SAUNA DE PORCO
MUMU (3): SAUNA DE PORCO
Os porcos, depois de abatidos, são levados para perto do fogo. É preciso queimar seus pelos e limpar a pele dos animais. Depois de defumado rapidamente, o porco é deitado em uma cama de folhas de bananeira e é “operado” – é assim que eles chamam o processo de retirar os intestinos. Com facas de bambu afiadas, o animal é cortado pelos mais experientes. Os jovens, de olho, aprendem.
Sobre o buraco quadrado aberto que vai servir de forno subterrâneo, outros homens deitam longos pedaços de lenha, lado a lado, como se estivessem preparando um estrado. Gravetos são colocados embaixo da madeira enfileirada e o fogo começa a arder. Uma fumaça branca e densa toma conta do ambiente.
Um monte de pedras é depositado sobre as madeiras que queimam. As melhores pedras são as roliças, de rio. Variam de dimensão: podem ser do tamanho de uma laranja ou de um mamão papaia.
Enquanto as pedras não esquentam, um dos chefes da comunidade arruma as posições de cada uma, com seu próprio pé, sem se queimar.
Agora passo a entender o segredo do mumu: as pedras. São elas que vão manter o calor constante, cozinhar tudo que for colocado junto a elas. Depois de 20 minutos, toda a madeira é consumida pelo fogo. Vira carvão. E as pedras, que estavam em cima da madeira, vão caindo, ardentes, no fundo do buraco, quente como um inferno.
Mas nem todas as pedras ficam lá dentro. Com a ajuda de uma forquilha, algumas pedras são retiradas do buraco e amontoadas do lado de fora. Chegam as folhas de bananeiras. Várias camadas delas precisam cobrir as pedras e o carvão que ficaram na parte inferior do buraco. As mulheres aparecem com cestos cheios de bananas verdes descascadas e depositam o conteúdo na pequena cratera. Outros cestos – desta vez, de kau-kau (batata doce) – também são despejados no forno. Os flancos dos porcos cortados também entram no arranjo. Pelo menos 20 homens trabalham e todos parecem saber exatamente o que deve ser feito. Mais bananas, mais kau-kaus e mais folhas verdes – e o buraco vai se enchendo. No final, entram as duas cabeças dos porcos. Somente os focinhos aparecem, rodeado de verduras e outros verdes.
Buraco cheio de comida: cabeças de porcos, bananas e kau-kaus.
É hora de tapar o buraco. Várias camadas de folhas de bananeira envolvem a comida que já começou a ser cozinhada pelo calor intenso do carvão e das pedras quentes, que ficaram embaixo. Sobre as últimas folhas, o resto das pedras quentes – aquelas que tinham sido retiradas e estavam aguardando sua entrada no cenário. O pacote todo é então recoberto com uma camada final de terra. Nem uma fumacinha consegue sair. Todo o vapor fica preso dentro dessa enorme panela de pressão! Tempo de cozimento: de 2 a 3 horas.
MUMU (2): AMIGO DO PORCO
MUMU (2): AMIGO DO PORCO
O porco foi domesticado pelos habitantes de PNG há alguns milhares de anos. Ele ainda tem feições de porco selvagem, com pelos mais compridos, um focinho mais forte e, quando adulto, duas enormes presas. Nas montanhas, ele é o animal que possui o maior valor intrínseco. Comparando peso por peso, ele vale bem mais do que uma vaca. Toda família – aliás, todo indivíduo – precisa possuir um ou vários porcos. Eles são sempre muito bem cuidados.
Quando o porco é pequeno ele ainda ganha um colo do dono.
O número de porcos que uma pessoa tem também mostra seu status. Espera-se que o chefe de uma comunidade possua algumas dezenas de porcos. O porco também significa liquidez financeira, pois existe um grande movimento de compra, venda e troca.
Mas o porco também é a principal fonte de proteína dos locais. Por isso, quando um animal é abatido, ele precisa ser comido por muita gente. (Nessa região de PNG não existem geladeiras.) Um porco médio custa entre 700 e 900 kinas (entre 600 e 800 reais) e pode alimentar 20 ou mais pessoas.
A técnica para matar um porco continua a mesma há alguns milênios: a borduna. Os pés do animal são amarrados numa estaca, para limitar seus movimentos. Em volta dele, estão os homens da tribo. Um deles – pode ser o dono do porco ou o mais forte – está com a pesada arma de madeira nas mãos. Ele precisa desferir um golpe certeiro na testa ou no crânio do animal, para que este sofra o menos possível.
Um golpe certeiro.
Assisti ao extermínio de quatro porcos. Confesso que não é uma cena agradável. Preferi ver o drama através da lente fotográfica. Era como se eu estivesse me escondendo atrás da câmera. Em uma das situações , o golpe de borduna não foi fatal e o bicho desandou a berrar. “El Matador” redobrou suas forças e suas pauladas. Uma delas acertou o focinho do animal. Jorrou sangue para todo lado. Quando notei havia enormes gotas vermelhas na câmera, na lente, na calça, na minha camisa e até no tênis. Meu estômago deu um nó e eu não comi nada naquele dia.
MUMU (1): COZINHA COMUNITÁRIA
O mumu, uma refeição comunitária, é uma tradição que existe em outras ilhas vizinhas do Pacífico, como Samoa, Tonga e Salomões. Em PNG, devido à importância que o porco tem na sociedade, o mumu é uma marca registrada dos povos das montanhas. Aqui, as ocasiões mais importantes são sempre celebradas com um mumu.
Qualquer que seja a razão ou o tamanho da festa, não se faz mais nada no dia – apenas preparar o mumu e comer!
Uma comunidade pode organizar um mumu para a festa nacional da independência, do Natal, de um aniversário importante e até mesmo na ocasião de um funeral. Um mumu pode acontecer também para marcar a inauguração de uma escola, de uma igreja (católica ou protestante) e até de uma estrada.
Existem vários tipos de mumus. O mais simples é para a família, também chamado de “seco”, quando não há um porco, mas apenas batata doce, banana, vegetais e folhas verdes. Já os mumus de grandes celebrações envolvem todo o vilarejo. Cada família pode ser solicitada a contribuir com um porco para a celebração. No final, o banquete pode ter 50, 70 ou até 100 porcos!
Participei de três mumus nessa viagem à PNG e passei a entender melhor o ritual. Homens e mulheres do vilarejo têm papéis bem diferentes. As mulheres – de avós a meninas, passando pelas recém-casadas – sentam-se juntas no chão para preparar tubérculos e vegetais. Usam pedaços de bambu, afiados como facas, para descascar os alimentos.
Grupo de mulheres preparam os alimentos que farão parte do mumu.
Enquanto isso, os homens cavam um buraco grande no solo, de 50 centímetros de profundidade. Na maioria dos casos, esse buraco já existe, mas é preciso limpá-lo e dar uma acertada. Depois, vão buscar lenha e juntar um monte de pedras. O que é singular no mumu é a maneira que os ingredientes são cozidos: tudo dentro da terra
FACÕES EXÓTICOS
Já deu para notar que Papua Nova Guiné (PNG) é um lugar diferente. Alguns chamariam de país com tradições exóticas, cheio de gente e animais exóticos. Mas isso seria um erro grosseiro! Não que PNG não tenha costumes bem distintos dos nossos. Mas suas tradições, suas pessoas e seus animais não são exóticos. São de lá mesmo!
Exótico é tudo aquilo que não é indígena, que é estrangeiro. Já vi jornalista nos Estados Unidos – e trabalhando em ONG ambiental – fazendo essa confusão e chamando plantas endêmicas – que só existem em um determinado lugar – também de exóticas…
Voltando às tradições autóctones, além do machado, os homens de PNG adoram um facão. Não há dúvida – pelo menos para quem anda no mato – que o facão é um utensílio muito útil. Abre caminho, corta galhos, serve como martelo e é usado para descascar qualquer coisa.
Reparo que em PNG quase todos os facões são iguais. Certa vez, peço emprestado um para cortar um galho que atrapalhava uma foto. Antes de devolvê-lo ao dono, meus olhos inspecionam o cabo e a lâmina. Qual não é minha surpresa ao ler um nome familiar: TRAMONTINA! Acompanhado de um segundo nome: BRASIL (com S mesmo). Sim, aquele facão – como todos os outros facões que vi em PNG – é um produto importado do Brasil!
Mostro para o dono do facão as letrinhas gravadas na lâmina e depois aponto o dedo para mim mesmo, querendo dizer – em linguagem gestual – que eu e o facão viemos do mesmo lugar. Repito o gesto várias vezes, rindo como se fosse um tolo. Meu interlocutor não fala nenhuma palavra de inglês e nem sabe ler. Não entende o que quero dizer e começa a me olhar com certa estranheza. Com medo de que eu diga em seguida que o facão não é dele e é meu, ele retira o facão das minhas mãos. E vira as costas. Mas antes de ele ir embora, consigo fotografar a figura.
Um homem da região de Mount Hagen com seu facão Tramontina, brasileiro. No caso, o facão é exótico!
colunas.revistaepoca.globo.com
Sem comentários:
Enviar um comentário