A virtude, o vício e a solidariedade (em versão europeísta-da-esquerda-à-direita)
por João Ferreira
Mereceu referência oportuna nesta coluna, na semana passada, o apoio que recolheu uma resolução aprovada na última sessão plenária do Parlamento Europeu, sobre a «viabilidade da introdução de obrigações de estabilidade»(1). PSD, CDS, PS e BE (este último, votando contra os demais partidos do Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica, a que pertence) juntaram os seus votos para aprovar uma resolução cujo conteúdo fala por si. Pelo muito que nos diz o resultado desta votação, vale a pena voltarmos ao assunto.
"Sublinhe-se e repita-se: sim, tudo o que acima foi referido – e outras pérolas que lamentavelmente aqui não cabem, como mais uma ajudinha aos bancos (ponto 4), coitados, vítimas dos estados (ponto 15) – foi votado favoravelmente por PSD, CDS, PS... e BE ! "
Convém esclarecer que as «obrigações de estabilidade» (designação sugestiva) são uma variante daquilo a que se chamou «euro-obrigações» ou, na expressão anglo-saxónica, mais vulgarizada, «eurobonds». Mais concretamente, trata-se da variante proposta pela Comissão Europeia para agradar à Sra. Merkel, que de nem querer ouvir falar no assunto passou a admiti-lo cautelosamente, desde que sejam cumpridas, está claro, algumas condições. É disso que se ocupa, em parte, esta resolução.
Para além de reconhecer os «esforços consideráveis» desenvolvidos no combate à crise, graças à «ajuda» da UE e à denodada acção dos estados-membros (ponto 1), particularmente «em matéria de consolidação orçamental e reforma estrutural» (ponto 7), a resolução diz que é preciso mais e exorta estes últimos a «continuarem a respeitar os compromissos e os acordos» neste domínio (ponto 7).
Parece, assim, que quem publicamente se afirmou arrependido por não receber a troika ocupante, em 2011, se arrependeu agora também das críticas feitas ao programa dessa mesma troika. Mas há mais...
A resolução faz, reconheça-se, uma referência à «necessidade urgente» de medidas que elevem os níveis de emprego (ponto 9). Uma singela referência, mas um sinal bem vivo da «consciência social» que consabidamente impregna a social-democracia europeia. Ou talvez a moeda de troca para que as fileiras lusitanas do «europeísmo de esquerda» dessem o seu apoio à resolução. Mas porque troca é troca, há um preço a pagar: a rigorosa «disciplina orçamental» e «financeira», pois claro (pontos 11, 18, 28, 39, 42, 48 e anexo); a «consolidação orçamental», ora nem mais (pontos 5, 7, 8, 18 e anexo); o «ajustamento», que Passos e Gaspar se afadigam a promover (ponto 28 e anexo); e as «reformas estruturais» (pontos 2, 5 e 23), incluindo uma «agenda vinculativa de reformas», devidamente policiadas pela Comissão Europeia (anexo).
O fervor dos neófitos da «austeridade» não se fica por aqui: há ainda o apoio à exigência de incondicional cumprimento do Pacto de Estabilidade, penalizando os faltosos (pontos 17, 28, 31, 33 e anexo). Mas tudo isto por uma boa razão: «prevenir o risco moral» (expressão tão do agrado da chanceler alemã) em que incorrem os meridionais malandros que se querem deitar à sombra da virtuosa dívida setentrional (pontos 3, 9, 39, 47, 48 e anexo).
Merkel |
Mas, talvez por este «risco moral» não poder ser inteiramente acautelado, apesar das rigorosas condições aceites pelos apoiantes da resolução, o texto aprovado considera que, na emissão futura de «dívida europeia», não será avisado considerar como único cenário o estabelecimento de uma taxa de juro única para todos os países. Assim, continua a resolução, sobram duas opções: ou o estabelecimento de uma taxa de juro diferenciada (que distinga as virtudes do centro dos vícios da periferia), ou uma taxa de juro única, «associada a um sistema de compensação», segundo o qual «os estados-membros com notações mais baixas compensem financeiramente os estados-membros com melhores notações» (ponto 37). A solidariedade comove. De uma assentada, cauciona-se o papel das famigeradas agências de notação e consagra-se o processo de extorsão de recursos da periferia, montado a partir da especulação sobre as respectivas dívidas soberanas. Quer dizer, a dívida passaria agora a ser «europeia», conquanto cada um pague a sua parte ou indemnize os parceiros. Haja inventividade e até já se podem escolher diferentes formas para se ser roubado!
Renegociações é que não! A resolução deixa claro: «os estados-membros são obrigados a reembolsar a sua dívida na íntegra» (ponto 21).
Sublinhe-se e repita-se: sim, tudo o que acima foi referido – e outras pérolas que lamentavelmente aqui não cabem, como mais uma ajudinha aos bancos (ponto 4), coitados, vítimas dos estados (ponto 15) – foi votado favoravelmente por PSD, CDS, PS... e BE!
Renegociações é que não! A resolução deixa claro: «os estados-membros são obrigados a reembolsar a sua dívida na íntegra» (ponto 21).
Sublinhe-se e repita-se: sim, tudo o que acima foi referido – e outras pérolas que lamentavelmente aqui não cabem, como mais uma ajudinha aos bancos (ponto 4), coitados, vítimas dos estados (ponto 15) – foi votado favoravelmente por PSD, CDS, PS... e BE!
(1)Vale a pena ler a resolução, aqui:
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