Na noite de Santo António, uma vendedeira de sardinhas assadas e bebidas coadjuvantes gritou, arfante de entusiasmo: "Que venha a crise! Que venha o FMI!" O negócio estava a render, Alfama abarrotava de gente, hora e meia para se arranjar lugar sentado. A afirmação da vendedeira não se desentendia com a realidade. Era, afinal, a imagem devolvida de um país a que não falta estilo popular mas carece de razão soberana.
Portugal está a meio caminho entre a realidade e a ficção. Sempre assim foi. A própria construção da nossa identidade é um milagre quase perfeito. Leia-se José Mattoso e António Borges Coelho. Mas Portugal, apesar de tudo, ilumina-se com o seu próprio brilho, recusa enclausurar-se em si mesmo, e detém um panteísmo específico que o tem levado a realizar o imponderável e o impensável.
O Algarve esteve cheiinho como um ovo de galinha de campo. Durante quatro dias o povo removeu sombras e incertezas e sublinhou o dito: perdido por cem, perdido por mil. Claro que, nestes extremos, há um esteticismo desesperado que deixa os sábios estrangeiros muito pasmados. A razão parece-me simples: não somos como eles. E ainda bem. Quem nos dirige e em nós tem mandado não nos sabe dirigir nem mandar. António Barreto, no discurso do 10 de Junho, falou, um pouco emocionado e levemente lírico, nesse "eu" interior. Criticou os que produzem a indiferença, e que a política, assim entendida e praticada, conduz à pior das dissoluções: a moral. Um texto escrito num idioma de lei e destinado, pelo dia e pelo fasto, a despertar as comoções de quem o ouvisse. Qualquer comparação com a redacção de terceira classe, dificultosamente escrita e penosamente lida pelo dr. Cavaco, é pura indigência mental.
Estamos à beira de coisas terríveis? Todos os dizem. E a massa informativa que recebemos a cada instante não é de molde a criar evasivas, mas torna ilusória qualquer esperança de se fazer uma escolha com base racional. Como disse a vendedeira de Alfama, se isto é a crise, então onde está a crise? Mas ela existe, e não é fluida nem abstracta. A nossa rejeição instintiva da crise é tudo o que nos resta como afirmação de independência e de decência pessoal. Há algo de ingénuo e de muito digno nesta resistência às evidências. Claro que há. É uma característica que nos diz respeito, que nos formou e nos tem ajudado a viver, por vezes no pior dos opróbrios.
As coisas têm passado depressa demais. Anos e léguas não nos deixam reflectir sobre o que nos vai acontecendo, e, até, "legitimam" a brutalidade de muitas decisões tomadas por quem tende a medir o homem com uma bitola comum. Estou a falar da troica e dos constrangimentos que impõe aos povos. Este poder absurdo e quase absoluto não é limitado por nenhuma lei nem por qualquer obrigação moral.
Portugal está a meio caminho entre a realidade e a ficção. Sempre assim foi. A própria construção da nossa identidade é um milagre quase perfeito. Leia-se José Mattoso e António Borges Coelho. Mas Portugal, apesar de tudo, ilumina-se com o seu próprio brilho, recusa enclausurar-se em si mesmo, e detém um panteísmo específico que o tem levado a realizar o imponderável e o impensável.
O Algarve esteve cheiinho como um ovo de galinha de campo. Durante quatro dias o povo removeu sombras e incertezas e sublinhou o dito: perdido por cem, perdido por mil. Claro que, nestes extremos, há um esteticismo desesperado que deixa os sábios estrangeiros muito pasmados. A razão parece-me simples: não somos como eles. E ainda bem. Quem nos dirige e em nós tem mandado não nos sabe dirigir nem mandar. António Barreto, no discurso do 10 de Junho, falou, um pouco emocionado e levemente lírico, nesse "eu" interior. Criticou os que produzem a indiferença, e que a política, assim entendida e praticada, conduz à pior das dissoluções: a moral. Um texto escrito num idioma de lei e destinado, pelo dia e pelo fasto, a despertar as comoções de quem o ouvisse. Qualquer comparação com a redacção de terceira classe, dificultosamente escrita e penosamente lida pelo dr. Cavaco, é pura indigência mental.
Estamos à beira de coisas terríveis? Todos os dizem. E a massa informativa que recebemos a cada instante não é de molde a criar evasivas, mas torna ilusória qualquer esperança de se fazer uma escolha com base racional. Como disse a vendedeira de Alfama, se isto é a crise, então onde está a crise? Mas ela existe, e não é fluida nem abstracta. A nossa rejeição instintiva da crise é tudo o que nos resta como afirmação de independência e de decência pessoal. Há algo de ingénuo e de muito digno nesta resistência às evidências. Claro que há. É uma característica que nos diz respeito, que nos formou e nos tem ajudado a viver, por vezes no pior dos opróbrios.
As coisas têm passado depressa demais. Anos e léguas não nos deixam reflectir sobre o que nos vai acontecendo, e, até, "legitimam" a brutalidade de muitas decisões tomadas por quem tende a medir o homem com uma bitola comum. Estou a falar da troica e dos constrangimentos que impõe aos povos. Este poder absurdo e quase absoluto não é limitado por nenhuma lei nem por qualquer obrigação moral.
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