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quarta-feira, 6 de novembro de 2019

ENTREVISTA COM MARIA JOÃO - "Não sou totalmente branca e isso criava incómodo. Eu era diferente"



www.noticiasaominuto.com 



As raízes moçambicanas, da parte da mãe, que hoje tanto a orgulham, foram na infância um dos principais motivos de diferença. Sentia que era diferente, mas não queria ser. O cabelo encrespado e a figura gordinha deram lugar ao bullying, mas o papel de vítima foi recusado e a resposta dada em doses descontroladas de rebeldia.

Foi expulsa de colégios e fez disparates sem fim até que uma arte marcial, o Aikido, conseguiu dar-lhe um caminho.

A música chegou mais tarde e atropelou por completo a possibilidade de ser psicóloga ou advogada. Uma paixão que veio de mãos dadas com o jazz e que faz dela uma cantora que se considera "atleta de alta competição". 
Foi no papel de embaixadora da iniciativa Jazz Moments, que decorre até ao dia de novembro no NorteShopping e visa proporcionar uma série de espetáculos musicais a quem visita o centro comercial, que Maria João aceitou conversar com o Notícias ao Minuto. E foi precisamente por aí que decidimos começar esta conversa.

O Jazz Moments é um evento que oferece concertos gratuitos com as grandes referências do jazz nacional dentro de um centro comercial, neste caso o NorteShopping. O que a levou a aceitar ser embaixadora deste projeto?
A ideia de ter música no meio de um shopping, feita por músicos ao vivo. Pequenos lugares com música. Acho isto uma ideia magnífica e por isso aceitei ser embaixadora.
Um centro comercial tem os requisitos certos para um concerto?
Pode ter, depende. Estes espaços que tenho visto, são espaços criados de propósito com todas as condições sonoras e com todas as condições de conforto até para quem assiste. Agora, claro que terá sempre um pouco de ruído à volta. Não há como evitar, mas acho uma ótima ideia. Uma ótima ideia e num meio tão inesperado, as pessoas vêm fazer qualquer compra ou vêm jantar e de repente têm um concerto gratuito para assistirem.
Acha que em Portugal há abertura por parte do público para este tipo de iniciativas?
Acho que sim. Só que não têm existido ainda. Se fizerem mais as pessoas vão aderir mais. Convenhamos, é muito surpreendente e uma boa coisa. Vou jantar e, de repente, tenho ali um pequeno concerto.

Aí foi mesmo tiro e queda… foi um amor, um amor até morrer. Foi isso que eu pensei: vou fazer isto até morrer

E paixão pelo jazz, há em Portugal?
Há muitos anos que existe esta paixão e cada vez mais o mercado está melhor, tem mais oferta de concertos, há mais possibilidades, as pessoas estão mais informadas e mais habituadas a este género aventureiro de música, que exige também atenção, conhecimento e imaginação de quem assiste. Existem mais concertos, mais possibilidades de o público assistir e mais concertos para nós artistas também. Claro que é sempre uma música que ainda tem estigma de ser considerada difícil, elitista. Não acho nada disso, acho é que é uma música que exige do espectador. Também podem estar lá e não usarem a sua cabeça, a sua imaginação, estarem apenas a ouvir, mas para verdadeiramente usufruirmos desta música temos de participar também como público. Temos de usar a nossa cabeça, a nossa imaginação. Temos de estar ali a tentar entender, a tentar gostar muito e a participar dessa forma.
E a Maria João, como é que se apaixonou por este estilo musical? 
A seguir ao CascaisJazz. Eu era miúda... bom, já era mais velhinha na realidade. Consegui convencer a minha mãe a deixar-me ir e lá fui. Fui e fiquei absolutamente apaixonada. Eu não percebia nada, mas lembro-me de estar estarrecida a olhar a e a ouvir aquela música aventureira incrível, que eu nunca tinha ouvido, e lembro-me de estar a amar aquilo. E foi assim que eu criei a curiosidade e o amor. Um dia um vizinho disse-me: “Porque é que tu não vais para a escola de Jazz do Hot Clube de Portugal [Escola de Jazz Luiz Villas-Boas]?”. E fui assim do nada, caída do céu, por acaso, e aí foi mesmo tiro e queda… foi um amor, um amor até morrer.

Foi isso que eu pensei: vou fazer isto até morrer.
Pensei em ter uma quinta em África, em criar animais ou plantações, pensei em ser advogada ou psicóloga

Foi assim também que surgiu a vontade de começar a cantar?
Sim, aliás, a vontade de começar a cantar e este género de música aconteceu tudo ao mesmo tempo. Não foi tipo: eu cantarolava, já fazia coisas, e depois gostei do jazz. Foi tudo ao mesmo tempo.
A Maria João começou a cantar por volta dos 26 anos, até aí qual era o plano?
Eu tinha muitos planos… e nenhuns, na realidade. Pensei em ter uma quinta em África, em criar animais ou plantações, pensei em ser advogada ou psicóloga. Sempre pratiquei artes marciais, praticava Aikido e queria dar aulas, e dava aulas de natação. Estava muito ligada ao desporto. Já viu a quantidade de coisas? Cada uma para seu lado [risos].
E com tantos planos, por que razão acabou por não seguir nenhum?
Porque… por causa da música. Quer dizer o Aikido resultou, porque eu pratiquei e ainda continuo a praticar. O desporto mantém-se como rotina diária, mas as outras coisas foram completamente passadas por cima como um trator pela música. De repente, era aquilo, era mesmo aquilo que eu tinha habilidade para fazer e tinha amor. Pronto, e as outras coisas acabaram por ficar para trás.

Esta sorte inacreditável que eu tive de encontrar uma pessoa tão excecional como esta moldou tudo. Muitas vezes penso que ele me salvou

O desporto acabou por conseguir acalmar um bocadinho o 'furacão' que estava dentro de si?
Sim [risos]. Deu disciplina, o desporto é uma coisa fantástica. Eu sempre dei [o desporto] também ao meu filho, por exemplo, e foi e tem sido fantástico para ele. Passou completamente ao lado de drogas, álcool, tabaco. Todas essas coisas ele passou ao lado por causa do desporto de alta competição que tem estado a fazer. O desporto é magnifico porque nos traz espírito de sacrifício, disciplina, ambição e isso é fundamental. É fundamental para mim pelo menos, enquanto ser humano e como música.
O Aikido, essa arte marcial que já nos disse que ainda pratica, o que teve de tão especial na sua vida para que fale dela com tanto carinho?
Eu acho que foi o encontro com um mestre absolutamente magnífico, Georges Stobbaerts, que era um mestre belga que também tinha estado em Marrocos e depois veio para Portugal. Esta sorte inacreditável que eu tive de encontrar uma pessoa tão excecional como esta moldou tudo, acabou por condicionar tudo. Muitas vezes penso que ele me salvou, o ensinamento dele, muito harmonioso e saudável. Aliás, foi por causa do que eu aprendi com o meu mestre que eu pude ser cantora. Eu não tive aulas de canto propriamente, não tive professores de canto, eu tive o meu mestre que me ensinou coisas básicas para um cantor. Nem eu sabia que iria ser cantora, mas quando chegou a hipótese de ser já tinha tudo o que é preciso em termos de corpo, de conhecimento do corpo e do que é preciso para cantar.

Não sou inteiramente branca, a minha mãe é de Moçambique, e isso criava incómodo

Quando nos diz que o seu mestre a salvou está a referir-se ao quê exatamente?
Eu estava ali calhadinha para o disparate [risos]. Sempre estive calhadinha para o disparate, a fazer toda a espécie de coisas. Era muito curiosa e também sempre fui uma criança hiperativa, uma adolescente hiperativa. O que aconteceu com a prática de Aikido, e com o conhecimento deste mestre e do que ele ensinava, foi canalizar bem a energia completamente descontrolada que eu tinha. Ele canalizou isso para boas coisas, para opções saudáveis, para que eu não fosse aquele disparate a disparar para todo o lado.
Era mesmo hiperatividade ou uma grande vontade de ser diferente?
Não. Não tinha vontade de ser diferente, eu era diferente. Era uma criança e era uma miúda diferente pelas minhas características, pela minha personalidade. Era um pouco diferente das outras crianças e isso criava algum desequilíbrio em mim, e como tinha um excesso de energia aquilo só podia dar asneira… e deu muitas vezes [risos]. Depois a minha mãe, já em desespero de causa, acabou por me levar ao meu mestre de Aikido, ao centro dele, ao Budokan Portugal, e a partir daí foi uma coisa incrível. Passei a estar melhor comigo mesma e a poder canalizar a minha energia de forma boa e para um lugar com direção
Aos 63 anos já consegue perceber o que motivava toda essa rebeldia?
Uma curiosidade, tinha muita curiosidade por muitas coisas. Não sou inteiramente branca, a minha mãe é de Moçambique, e isso cria sempre algum incómodo, ou criava naquela altura. Uma miúda que fosse misturada, que tivesse o meu cabelo e ainda por cima era gordinha. Isso criava algum… não era incómodo, era alguma chatice mesmo com as outras pessoas, com os outros miúdos. Eu não queria ser diferente, eu era diferente. Quando os miúdos são pequenos eles querem ser iguais, iguais uns aos outros, misturarem-se uns com os outros, e essa diferença causava-me tristeza às vezes, revoltava-me e fazia coisas. Mas nunca fui vítima, na realidade. Claro que sofri um pouquinho de bullying, um pouquinho é favor, mas nunca fui vítima. Já nessa altura passei a resolver a coisa à minha maneira… levavam, apanhavam eles também. Venham-me cá chatear a ver se não levam, era mais assim [risos]. Custava-me, foi uma coisa dolorosa e sofredora.

Os cantores são atletas de alta competição

Quando era expulsa dos colégios que frequentava, algo que chegou a acontecer mais do que uma vez, não tinha medo de dessa forma não corresponder às expectativas dos seus pais?
O tempo todo! Sabia que não correspondia, que não era mesmo aquilo que eles estavam à espera de mim e que quereriam para uma filha. Apesar de terem todo o amor do mundo por mim, não era bem aquilo que eles quereriam e que esperavam. Claro que sofria com isso também, mas era assim. Com o tempo, pelos vistos, essa diferença acabou por se revelar um motivo de orgulho para eles e foi uma boa coisa.
Acha que na música ainda consegue fazer notar essa diferença, essas suas características, mas agora como um aspeto positivo?
Sempre. Nunca fui uma cantora muito mainstream, sempre tive a minha maneira de fazer as coisas e de querer fazer e sempre tive muita ambição, sou muito ambiciosa. Ambiciosa com a música, com a arte que há na música e, portanto, é o que sou. Sou assim desta maneira e vai tudo atrás. Quero mostrar a música desta forma e isto é o que é importante para mim.

É duro, é uma profissão que lida diariamente, ou todas as vezes que cantamos, com a rejeição e aprovação das outras pessoas

É também por isso que diz que enquanto cantora se sente uma atleta de alta competição?
É assim que eu me sinto, exatamente. E somos, os cantores são atletas de alta competição. Nós usamos o nosso corpo por inteiro, não são só as cordas vocais e a região da garganta, não é nada disso. É tudo! Tudo é o nosso instrumento, por isso nós somos atletas de alta competição. Cantar não é uma coisa confortável, não é fácil, é uma coisa de esforço. Mas é um esforço magnífico, claro. Claro que somos atletas de alta competição, sem dúvida.
Alguma vez achou que poderia mesmo chegar a ser cantora e a viver da música?
Nunca. Só quando comecei a cantar. Quando comecei a cantar descobri que poderia viver daquilo, que queria viver daquilo e que ia viver daquilo assim ou assado. Ser músico não é fácil, sabe?
Ia perguntar-lhe precisamente isso, se depois de tomada essa decisão o caminho se avizinhou fácil.
Não, não. Na altura em que eu comecei a cantar foi fácil porque me abriram muitas portas, também não havia muitas cantoras. Mas a luta por ser músico todos os anos da nossa vida não é fácil. É duro, é uma profissão que lida diariamente, ou todas as vezes que cantamos, com a rejeição e aprovação das outras pessoas in your face [na tua cara]. É uma profissão duríssima, mas eu não escolheria outra.
A Maria João fez uma digressão no início da sua carreira, em 1986, pela Alemanha. Esta experiência durou ainda bastante tempo, o que trouxe de diferente ao seu percurso?
Foi a primeira grande tournée que eu fiz, foram muitos concertos. Nós aqui o que fazíamos enquanto músicos era muito pouco, não havia um círculo de lugares para cantarmos. De repente ir para um país estranho fazer 26 concertos num mês e uma semana foi incrível. Depois de fazer aquela tournée eu sabia que podia fazer tudo na música. Posso ir a todo o lugar, posso fazer tudo porque estou pronta e é isso que eu quero.

O meu país, este aqui, não é apenas fado. Não é apenas as músicas reconhecíveis à primeira como portuguesas, é tudo

Seguiu-se uma digressão com a pianista japonesa Aki Takase. Diz que esta parceira a ajudou a encontrar o seu estilo musical e liberdade para fazer diferente. Que liberdade é esta?
É fazermos o que amamos, chegamos lá e fazemos aquilo que gostamos, a música que amamos à nossa maneira, isso é uma liberdade absolutamente única. Posso fazer tudo, posso fazer tudo o que quiser, não estou condicionada com nada. Posso tentar tudo, posso experimentar tudo e isso é precioso.
Acha que durante todos os estes anos de carreira em que cantou e continua a cantar fora de Portugal consegue levar o nosso país além fronteiras?
Claro que sim, todas as vezes que canto fora de Portugal eu levo o meu país… os meus países, Portugal e Moçambique. Levo sempre, está colado à minha pele, ao meu ADN. É o que eu sou, portanto, vai tudo comigo.

Nós somos também um país multicultural e eu acho que sou embaixadora dessa multiculturalidade

E acha que os seus países também estão representados na maneira como canta?
Sim, claro. O meu país, este aqui, não é apenas fado. Não é apenas as músicas reconhecíveis à primeira como portuguesas, é tudo. O meu país é tudo, são todas as músicas, todos os artistas, todas as formas de expressão. É assim que eu o vejo, pelo menos.
Portugal é mais do que o fado quando falamos de música?
Portugal sempre foi mais do que o fado! O fado é uma parte única, que nos representa muito bem, mas não é só isso que nos representa. Nós temos um passado além fronteiras. Não é? Estivemos em todo o lado, nós somos também um país multicultural e acho que eu sou embaixadora dessa multiculturalidade. Pelo menos sinto-me assim e levo o meu país. Levo este Portugal, por exemplo, outros levam outro. Eu sinto que levo comigo os artistas todos.
Qual o segredo para tantos anos de sucesso com o duo com Mário Laginha?
Era nós termos alguma coisa a dizer. Nós realmente tínhamos coisas para dizer musicalmente, então fomos crescendo dessa maneira e fazendo música de acordo com a experiência que íamos tendo. Valeu, valeu até essa altura. Só vale a pena as pessoas continuarem juntas quando têm alguma coisa para dizer juntas, foi isso que aconteceu connosco. Tínhamos coisas para dizer e dissemos.
A Maria João faz agora parte de um projeto de música eletrónica.
Está a sair. Vai sair o single em novembro, o primeiro single, e vai sair o disco no início do próximo ano.
Gosta de música eletrónica?
Gosto, adoro. Participei há uns anos num projeto e fiquei completamente apaixonada pela eletrónica. 
Trabalhar num estilo musical diferente daquele em que habitualmente a vemos traduz uma necessidade de se reinventar?
Sim. Eu acho que é o dever de todo o artista esticar, arriscar o tempo todo, experimentar, fazer coisas diferentes. Umas podem não dar certo, outras darão melhor. É bom nós aprendermos com os erros, criarmos coisas com os erros. Mas eu sinto essa necessidade e corro esse risco, que se calhar nem toda gente quer correr. Eu compreendo, mas a minha escolha é esta. Tentar coisas novas e reinventar-me sempre. 
Falemos do futuro. Que projetos tem mais a caminho?
Este disco que vai sair: 'Maria João Ogre Electric', que é um disco que também comemora os 10 anos do 'Ogre', este grupo é composto pelo João Farinha, pelo André Nascimento e agora também com um baterista de hip hop alemão.  Estou muito feliz com isso, muito mesmo!
E espetáculos?
Vamos ter para o próximo ano. Vamos ter espectáculos aqui [em Portugal], em outros países da Europa e no Brasil.
O que é que ainda lhe falta fazer?
Não faço ideia, vou fazendo aos bocadinhos. Agora tenho este disco incrível que eu quero fazer, tenho os meus parceiros com quem quero cantar. Quero viver a fazer isto, isto são os meus planos e os outros vão aparecendo.




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