Buscamos trazer à tona um debate ausente ou muito pouco discutido atualmente no cenário historiográfico português: os movimentos de operárias. Especificamente, falamos sobre as operárias da empresa têxtil Sogantal, durante o período revolucionário português.
De facto, a prática real nas formações políticas ou associativas, no movimento sindical e social em geral, não reconhece um aspecto que exige um combate específico: a dominação masculina que determina uma organização da divisão do trabalho de tipo patriarcal em que “a mulher é proletária do proletário”. Esta condição, em vez de se diluir pelo ingresso maciço da mulher no mercado laboral, faz com que as mulheres ganhem menos que os homens e há quem ache natural e suportável.
A sistemática desvalorização do trabalho feminino e a segregação da mulher no mercado de trabalho e na sociedade marca a vida das trabalhadoras desde a nascença, por essa “herança” do género a que pertencem. Não sendo inata, a subalternização é imposta socialmente e reforçada ao longo da vida activa, condicionando a sua posição nas posteriores soluções de sobrevivência, seja no plano material, seja no plano da consciência
O processo de luta da Sogantal foi um rasgão luminoso no véu normal da opressão feminina e um sinal de partida para outras lutas do mesmo jaez, que ousaram a ocupação, a greve, a autogestão e o combate pelo reconhecimento de direitos.
Historicamente, a parcela mais esclarecida da sociedade está posta diante de alternativas decisivas: ou acolhe activamente as aspirações específicas do género; ou mantém-se insensível, ou próximo disso, entregando assim a massa das mulheres mais combativas à tutela dos movimentos radicais e populistas. Os dois caminhos estão em aberto.
O caso Sogantal abre-nos um fértil caminho para compreensão desta dualidade.
Desde logo, destacamos que em Portugal, as organizações autónomas baseadas em comissões de trabalhadores atingiram uma grande extensão da sociedade, colocando em causa o próprio paradigma ideológico do sistema capitalista.
Desde logo, destacamos que em Portugal, as organizações autónomas baseadas em comissões de trabalhadores atingiram uma grande extensão da sociedade, colocando em causa o próprio paradigma ideológico do sistema capitalista.
Logo nos primeiros dias e semanas após o 25 de Abril, o movimento social operário atingiu grandes dimensões e teve características espontâneas – como espontâneas devemos entender que as decisões de entrar em greve, ocupar as instalações, fazer os seus comunicados de luta e, nos diversos casos que atingiram maior radicalidade, vedar a entrada dos patrões nas instalações industriais, entrar em autogestão, foram decisões tomadas pelos/as trabalhadores/as, legitimadas em democráticas assembleias gerais em cada fábrica.
Porém, as ações autónomas dos trabalhadores não se restringiram aos seus locais de trabalho. Além do espaço de luta da fábrica, os movimentos sociais populares experimentaram uma criatividade social inovadora. Assistiu-se ao nascimento de formas de organização popular inéditas: sindicatos, comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados, de mulheres, de pais, de saneamento de fascistas, comissões contra a guerra colonial, etc. As mulheres exigiram aos patrões o termo ao assédio sexual e, dentro das fábricas, creches para os filhos e salas de aleitamento. As mulheres e crianças que moravam em barracas ocuparam casas abandonadas, formaram-se clínicas populares, “comissões de melhoramentos”, fundaram-se creches populares, abriram-se cursos de alfabetização nos bairros pobres, os camponeses do Alentejo e Ribatejo tomaram conta dos latifúndios e, enquanto puderam, controlaram os salários e a produção agrícola. Buscava-se todo o tipo de soluções autónomas no domínio da produção, habitação, saúde, educação, da atividade cultural e da vida comunitária.
Os anos de 74 e 75 foram amplamente vivenciados por experiências de controle operário. No princípio do mês de agosto de 1975, calculava-se que aproximadamente 380 fábricas estavam em autogestão por todo o país.
Depois do 25 de Abril, a fixação de um salário mínimo nacional, o fortalecimento da classe trabalhadora nas lutas contra o patronato, o clima de contestação social generalizado e a incapacidade dos Governos Provisórios em dar respostas à situação, acelerou a crise económica de muitas empresas, somado, claro à crise de 1973.
Diante da perspectiva da perda de trabalho, os/as trabalhadores/as por toda a parte passam a se organizar em “comissões de trabalhadores”, instituições através das quais se implementaria a tomada da produção. Os casos de autogestão foram mais frequentes no sector têxtil e metalúrgica, onde também as experiências de autonomia nas formas administrativas atingiram maior radicalidade. Isso porque as pequenas empresas tiveram desmoronada a estrutura que permitia aos seus proprietários garantir lucros fáceis com base numa mão-de-obra sem direitos e paga miseravelmente, como foi o caso da Sogantal, Charminha e tantas outras empresas.
Falemos da Sogantal mas não só: As ocupações de casas em Lisboa ou as comissões de moradores espalhadas pelo país tiveram como protagonistas maioritariamente as mulheres, protagonismo este conectado com a carência de muitos bens e serviços. Além disso, em consequência da mobilização de soldados para a guerra colonial, na década de 60 tinha-se assistido à entrada de cerca de um milhão de mulheres no mercado de trabalho assalariado.
Contrariando o slogan do Estado Novo “a mulher para o lar”, deu-se uma reviravolta da mulher na luta pela moradia e pelas condições de seus lares e família. Na região de Lisboa, 18 mil pessoas moravam em barracas ou em casas partilhadas, 82% destas casas não possuíam casa de banho, 71% não tinha água canalizada e 62%5 da população não tinha electricidade. Muitas mulheres analfabetas participaram de cursos de alfabetização geridos colectivamente nestes espaços, lembrando que 38% das mulheres no país naquela altura eram analfabetas.
Ressaltamos brevemente alguns casos emblemáticos: na Timex, em Maio de 74, duas mil trabalhadoras ocupam a empresa por aumento de salários, saneamento dos chefes, salário igual trabalho igual; na Cintideal fazem greve por 10 dias, também em maio, por diversas reivindicações, mas sobretudo contra o controle às idas à casa de banho. Na Standard Elétrica, em 24 de maio ocupam a fábrica enquanto no mesmo mês as operárias da Messa iniciam uma greve que durará 12 dias com ocupação das instalações e reivindicam o trabalho igual salário igual. Ainda durante o mês de Maio, 800 operárias ocupam a Melka e fazem greve por melhores salários; na Fábrica Simões conseguem suas reivindicações após dias de luta enquanto na Philips uma greve que irá durar oito dias.
No sector das conserveiras, mais de 10 mil mulheres envolvem-se em greves, manifestações e retenção das conservas dentro de determinadas fábricas. No Montijo, onde as lutas espalharam-se nos mais diversos setores, além da Sogantal, as operárias da camisaria Mafalda sequestram o patrão estadunidense, que se recusava a pagar os salários e ameaçava fechar a empresa.
Com a intervenção de um funcionário da embaixada dos EUA, os pagamentos são realizados, há a promessa do não encerramento da fábrica e o patrão é liberado. As operárias da Applied Magnetics, com cerca de 600 trabalhadoras que, após o despedimento de 116 trabalhadoras, fazem cotas para assegurar seus salários e entram e paralisações até que as mesmas são readmitidas.
Muitas outras empresas maioritariamente de mulheres, mas não só, reivindicam o aumento de salários, salário mínimo, trabalho igual salário igual, abolição dos privilégios e gratificações além de reivindicações mais qualitativas, como condições nos locais de trabalho, reconhecimento dos órgãos representativos como as Comissões de Trabalhadores, 40 horas semanais, abertura de creches, infantários e salas de amamentação no local de trabalho. Muitas destas reivindicações são pautas directas de mulheres, o que pode indicar uma fértil consciência de luta.
A Sogantal, composta por 48 operárias entre 13 e 25 anos foi a primeira empresa ocupada e a entrar em autogestão. No dia 20 de maio de 1974, estas mulheres apresentam um caderno reivindicativo à administração patronal em que se pedia um aumento de 1250 escudos, um mês de férias e o 13º mês. Mesmo com o aumento que pediam, os seus salários, que até então não passavam de 1600 por mês, não atingiriam os 3300, valor do salário mínimo decretado no mesmo mês.
Os franceses, donos da fábrica, recusaram as reivindicações alegando que, do contrário, a empresa iria à falência. Como resposta, as operárias entraram em baixa de produção, ocupando a fábrica e os escritórios. Em 30 de maio, os patrões declaram que a fábrica fecharia e que os salários não mais seriam pagos, já que as trabalhadoras não haviam produzido o suficiente.
Diante a posição patronal, as operárias decidem vender os fatos de treino prontos para manterem seus salários. A seguir os patrões abandonam a empresa e, diante a iminente perda dos seus postos de trabalho, as operárias resolvem manter por si próprias o funcionamento da empresa e a produzir a sua subsistência de forma autogestionária.
No jornal nº 1 da Sogantal, as operárias contam um pouco da sua luta: “A Sogantal, como todas as empresas de capital estrangeiro, instalou-se em Portugal para aproveitar as condições altamente lucrativas que a exploração dos trabalhadores portugueses oferecia. E isto devido aos salários de miséria que podia pagar, devido também à ‘docilidade’ dos trabalhadores garantida que, começando no local de trabalho se estendia até a bem conhecida acção das várias polícias (…) Num momento em que as trabalhadoras tomam consciência dos seus problemas e dão mostras de ter capacidade e iniciativa para lutarem pelos seus interesses, o patronato pretende encerrar as instalações em Portugal. Portanto, nós trabalhadoras da Sogantal não podemos tolerar essa situação; não podemos ser despedidas e lançadas na miséria só porque alguns capitalistas franceses que nos exploram desenfreadamente, não querem agora satisfazer as nossas justas reivindicações (…) Afirmamos a nossa disposição de lutar até o final e não hesitarmos em adoptar as formas de luta que melhor servirem os nossos interesses de trabalhadoras.”
As operárias decidiram que a Assembleia Geral era o órgão soberano de decisão onde se discutiam os problemas da vida quotidiana e as soluções que eram necessárias pôr em prática. Já na primeira assembleia geral depois que a fábrica foi ocupada, as trabalhadoras decidem tomar em mãos a organização da sua luta e da sua vida em função da nova realidade. O gerente e uma encarregada são postos a correr. Outra encarregada aceitou ficar na fábrica, mas ocupando uma função igual e recebendo o mesmo salário que as restantes operárias.
A partir daí, as operárias passaram a tratar dos assuntos antes dominados pelo gerente e pelo director da fábrica: Nós tomamos conta da contabilidade. Algumas de nós têm o curso comercial completo ou quase e há outras pessoas que estão dispostas a ajudar-nos. Também na assembleia geral era eleita a comissão de trabalhadoras, revogável a qualquer momento e que contou com uma rotatividade nos exercícios das funções, com vistas a evitar sua burocratização.
A decisão de tomar a fábrica e autogerir a produção era demasiadamente perigosa pois atingia em cheio o ‘inviolável’ direito da propriedade privada. Por isso, a reacção dos patrões franceses vem logo em 24 de agosto quando decidem invadir a empresa e tirar de lá as máquinas e os 31.000 fatos de treino para levarem tudo para a França.
Em relatos nos arquivos do Ministério das Finanças mas também em entrevistas, está documentado que o patrão contratou um grupo de 14 mercenários franceses que assaltaram a fábrica de madrugada, armados de pistolas, granadas, matracas, gases lacrimogéneos e cães, sequestraram o guarda e iniciaram um processo de desmonte de maquinaria e inventariado. A população do bairro próximo da fábrica cercou as instalações, travou-se luta e houve um incêndio. A GNR e o COPCON acabaram por retirar a salvo os sabotadores.
As investidas violentas nas fábricas em que os/as trabalhadores/as optam pela ocupação e autogestão foi constante, tendo os/as trabalhadores/as resistido em ocupações noite e dia e sempre buscando o apoio da população e de outras fábricas vizinhas. Ainda é possível percebermos que não é apenas a consciência revolucionária, ante a exploração do seu trabalho, que se realiza com o quotidiano da luta autónoma.
As operárias da Sogantal não apenas entram em ruptura com a hierarquia do sistema capitalista, quando rompem a barreira do trabalho manual e intelectual, mas também rompem dia-a-dia com os valores opressivos que fazem parte da ideologia desse sistema.
Numa coletânea de depoimentos organizada por Francisco Martins RODRIGUES, “O Futuro era Agora”, a respeito do movimento popular do 25 de Abril, José Maria Ferreira, relata sua aproximação com a Sogantal, onde diz: “Casos semelhantes estavam a dar-se noutras empresas mas aqui a ocupação assumiu radicalidade invulgar: supressão das cadências e dos horários obrigatórios; abolição das hierarquias; igualização dos salários; rotação das tarefas, inclusive de direcção; e, mais subversivo ainda, encetar a venda directa da produção. Tudo isto teve uma outra consequência da maior importância: as mulheres começaram a libertar-se do marido e da família, dos valores patriarcais vigentes (1994:46)”. Uma dela disse recentemente, recordando esse tempo: “Foi maravilhoso! Tudo passou a ser diferente: todas nós, casadas ou solteiras, começámos a usar calças, andávamos sozinhas de noite, fumávamos, tínhamos opiniões, discutíamos umas com as outras sobre as novas condições de vida.”
Os valores patriarcais foram desafiados. As jovens trabalhadoras aprenderam a falar nas assembleias e a dar opiniões, a fazer as contas da empresa, a participar nos piquetes de vigilância nocturna, a deslocar-se pelo país fora para vender os fatos de treino. Houve naturalmente conflitos familiares e mesmo divórcios.
Também o processo laboral sofreu uma reviravolta: foram suprimidas as cadências e horários obrigatórios, aboliram-se as hierarquias, os salários tornaram-se iguais; introduziu-se a rotatividade das tarefas, inclusive da direcção; decidiu-se a venda directa da produção à população em geral.
As operárias mantiveram a sua luta autogestionária, enfrentando crises na empresa em 1975 (um número de operárias abandonam a luta), mas conseguiram resistir até 1976, quando o sindicato dos têxteis e o PS tomaram o controle da sua luta e posterior encerramento da fábrica.
Em 1985, viriam os patrões franceses a receberem uma indemnização de 40 milhões de escudos, uma inversão e derrocada total da luta revolucionária.
Nas entrevistas publicadas pelo jornal Combate com operárias da Sogantal, vemos uma preocupação constante das trabalhadoras com o isolamento da sua luta, e das lutas em geral. Redigiram manifestos em apoio a outras empresas, buscando sempre acompanhar o processo de lutas que se desenvolvia naquele momento. Numa mesa redonda organizada pelo jornal, pôs-se em contato a Sogantal com uma outra empresa têxtil em que as operárias também vinham se movimentando, a Charminha.
Nessa ocasião, as operárias dessa última empresa percebem, a partir da discussão com as operárias da Sogantal, que continuavam a ser exploradas pela Comissão Administrativa da empresa.
A Charminha estava em autogestão e, foi através do contato tido com a Sogantal que as operárias compreenderam o carácter reaccionário da Comissão eleita e substituíram-na por outra. Essa empresa, situada na Pontinha, ficou sem salários e com um cheque sem fundos em mãos após o dono fugir para o exterior.
No decurso da luta da Sogantal e de centenas de outras empresas, algumas dificuldades são compartilhadas: contratempos no fornecimento de matérias-primas e escoamento dos produtos; dificuldades em manter a produção aumentam com o boicote dos fornecedores capitalistas, dos bancos e instituições governamentais e a ausência de capitais para a aquisição das matérias-primas necessárias.
É ai que os/as trabalhadores/as são forçados a recorrer em vão aos órgãos do poder para conseguirem fundos de investimento. A problemática da necessidade de investimento e do escoamento da produção condicionam e limitam as lutas autogestionárias, estão na origem das derrotas do movimento operário.
A autogestão, por si só, não deu conta de responder às demandas de uma nova estruturação de uma sociedade não capitalista, funcionando como bolsas de resistência. Para Phil Mailer, enquanto permanecesse o regime capitalista, tudo isto não passava de autogestão da sua própria exploração: não se abolia a troca da força de trabalho por salários.
O fortalecimento da identidade colectiva fez com que os/as trabalhadores/as, reunidos/as nos organismos colectivos, identificassem-se pelos interesses comuns e pela solidariedade recíproca, rompendo com o individualismo e a hierarquia.
Em Portugal, não foram poucos os esforços dos trabalhadores em estabelecer a ligação entre as empresas autogeridas e entre essas e as unidades colectivas de produção da Reforma Agrária e ainda com as comissões de moradores dos bairros populares. A urgência da unificação era sentida pelos trabalhadores, como está expresso no informativo da Sogantal:
Camaradas, não podemos permitir que tentem isolar as lutas destas e de outras lutas. Os nossos problemas são os mesmos de todos os trabalhadores. Só unidos e organizados os resolveremos. Porém, apesar dos esforços dos/as trabalhadores/as em estabelecer a ligação entre as empresas autogeridas e entre essas e as comissões de trabalhadores e moradores, culminando na constituição da Comissão Inter-Empresas, que abrangia toda a Grande Lisboa, a unicidade das lutas não desenvolveu um processo amplo e geral, a não ser no interior das unidades de produção, pois aí verifica-se que os/as trabalhadores/as, unidos/as na luta, tentaram conquistar a sua autonomia.
Devido às debilidades do processo revolucionário português, que não chegou a ser uma revolução, a democracia capitalista acabou por se impor pela força, através do golpe militar do 25 de Novembro: pela recuperação das lutas o capitalismo democrático renovou os seus quadros de gestão e organização do processo produtivo; e tomou a democracia eleitoral como seu modelo político.
Para as mulheres, algumas conquistas perduraram ao longo dos anos, muitas outras foram perdidas (como a reforma aos 50 anos, quando para os homens era aos 55 anos), mas a lógica patriarcal e a precariedade da classe operária feminina ainda são elementos presentes até hoje, com uma neblina a esconder os salários mais baixos, a dupla jornada de trabalho, o assédio moral e sexual no local de trabalho e a violência machista.
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