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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

“Não sabia se tinha filmado uma conferência de nazis ou uns tipos banais a jantar”: a realizadora que teve acesso inédito a Bannon


Alison Klayman acompanhou o maior estratega da direita 

populista, tido como decisivo na vitória de Trump, e 

deu por si a pensar se estaria a assistir ao reinício de 

um terror que a História viu surgir a meio do século 

passado. O documentário, que se chama “The Brink”, estreia-se 

esta quinta-feira no DocLisboa e a realizadora falou com 

o Expresso. “Como é que os nazis se tornaram nazis?”



Aparece aquela imagem de Auschwitz, aquela em que se vê uma placa em ferro forjado que diz que o trabalho traz a liberdade apesar de naquele espaço só trazer fome e morte. Aparece o portão e a frase e o complexo que é o auge da arquitetura industrial e aparece Steve Bannon, o homem a quem a esquerda atribuiu a solitária culpa pela estratégia que levou Donald Trump à Casa Branca, a elogiar a engenharia alemã. A precisão com que os alemães desenharam um lugar para “cometer assassínio em massa” é uma coisa que o fascina. E foram pessoas comuns que fizeram aquilo acontecer. “Pensa nisto” - começa Bannon - “algures na História houve alemães, pessoas boas, normais, que se sentaram a uma mesa, como acontece nas reuniões de qualquer empresa, até consigo imaginar os cafés em cima da mesa; houve pessoas a pensar aquilo em detalhe, capazes de se separarem do horror moral”.
“The Brink”, o filme que a cineasta norte-americana Alison Klayman, de 35 anos, estreia esta quinta-feira em Portugal, no DocLisboa, não é uma denúncia feroz do autoproclamado ideólogo do populismo transatlântico. Não há perguntas difíceis mas também não é preciso. A câmara está sempre quase em cima de Bannon, os close ups são tão próximos que a filmagem desfoca por breves milésimos de segundo, apenas para se voltar a focar nos seus olhos vermelhos, nas microgotas de suor que se assomam ao redor da linha capilar, na barba de três dias, nas unhas roídas. Ele pensa que está seguro mas não está. O filme não mostra, apenas permite ver, que são coisas diferentes.
Klayman sentou-se com o Expresso, em Lisboa, para falar do filme mas falou mais daquilo que a preocupa. E o que a preocupa mesmo é a roupagem de banalidade com que, por vezes, o mal se adorna. “Eu estava ali a falar com ele sobre o Holocausto, toda arrepiada a pensar: ‘Meu Deus, homem, o que me estás a descrever não está longe das reuniões em que tu participas’.”
Comecemos por aí. Alguma vez, durante as filmagens, pensou que estas cenas podem, daqui a 70 anos, fazer parte de um grande documentário sobre o ressurgimento das políticas de ódio que marcaram o século XX?
Sim, definitivamente. Quis envolver-me neste projeto por razões pessoais, familiares. Os meus avós são judeus da Polónia, sobreviventes do Holocausto, e toda essa história informou muito a minha educação. Quis entender o que levou uma sociedade inteira a tornar-se cúmplice do extermínio de um povo, de um vilipêndio generalizado. Como é que os nazis se tornaram nazis? Em criança eu tinha pesadelos com o nazismo, eu era uma vítima e tentava fugir deles mas fui crescendo e comecei a aperceber-me de que os nazis foram pessoas e não monstros, a aparência deles é igual à nossa. Há uma cena no filme na qual o Bannon está sentado à mesa de jantar com vários representantes da extrema-direita e é impossível não pensar na conferência de Wannsee, uma reunião de nazis. Nessa noite fui para o quarto de hotel, com uma das garrafas de vinho que eles tinham deixado, liguei ao meu marido e disse: ‘Bom, não sei se acabei de filmar a próxima conferência de Wannsee ou um bando de pessoas banais a comer’”.

VÍDEO
E então, era uma conferência de nazis ou um jantar banal?
Já estamos no ponto em que podemos dizer que esse ressurgimento da extrema-direita existe, já não é um medo, eles existem nos Estados Unidos, na Europa e onde quer que possam estão a lutar pela implantação destas políticas que diabolizam ‘o outro’ e fecham fronteiras, que usam quem é diferente para explicar os males da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que eles são fortes apenas na medida em que nós lhe permitimos por isso há uma resistência. Não sabemos como vai ser mas talvez ainda não estejamos no ponto. Se queremos lutar contra eles temos de ter um plano porque eles têm um plano: eles unem-se ao redor de duas ou três mensagens poderosas e esquecem o que os distingue.
O filme é uma espécie de alerta?
Sim, eu queria que o filme fosse visto dessa forma. E queria história verdadeira a acontecer em frente à minha câmara. Há muitas coisas que eu filmei que não são nada de especial ou então já foram vistas muitas vezes, ou então são coisas que o próprio Bannon podia querer que eu transmitisse. Mas aquele jantar foi muito significativo. Eu filmei-o todo, não houve interrupções, ele não me pediu que saísse. Ficou muito claro para mim que estas pessoas, sejam elas representantes de topo do partido de [Marine] Le Pen ou alguém da extrema-direita excomungado da arena política na Suécia, têm em comum o interesse pelos mesmos assuntos e discutem isso abertamente: o problema das taxas elevadas de natalidade, a imigração, o islão.
Steve Bannon não parece um ostracizado da sociedade, um marginal, reúne-se com bilionários, é parte de uma elite, defendendo, porém, o fim delas.
O que é triste é que ele não está nas franjas do Partido Republicano, ele é ‘mainstream’, é aceite pelo sistema, essa ala mais extrema é hoje a dominante. O que eu digo muitas vezes é que não é justo os republicanos que apoiam Trump poderem dizer ‘não, nós não somos assim’. Mas não se distanciam o suficiente. E depois olhamos para as eleições europeias e vemos os resultados da Reunião Nacional e do [Matteo] Salvini com a Liga e não podemos dizer que estes movimentos estejam nas franjas da política.

Uma fotografia do republicano e estratega político Steve Bannon tirada do filme “The Brink”, de Alison Klayman, realizadora norte-americana
Uma fotografia do republicano e estratega político Steve Bannon tirada do filme “The Brink”, de Alison Klayman, realizadora norte-americana
ALISON KLAYMAN/THE BRINK

Como é que chegou tão próximo do Bannon? O acesso é total, ou perto disso.
Todos os dias pensava ‘quem é que ele vai conhecer hoje’ e ‘será que me deixam filmar?’. Foi uma estratégia diária mas ele ajudou-me bastante porque perguntava às pessoas se não queriam entrar no meu filme. A chave para conseguir que ele concordasse foi a minha produtora, que já tinha trabalhado com ele, quando ele não estava tão envolvido na política e era mais uma espécie de financeiro que queria ser um magnata da comunicação social e do entretenimento. Ela voltou a contactá-lo e sabia que se usasse o próprio ego de Bannon o conseguiria convencer. O fascínio dele pelo mundo do showbiz, pelo que é prestigiante - e ‘elite’ é uma arma contra ele. Ali estava um homem que quer dizer que é igual ao cidadão comum mas que é um ex-quadro do Goldman Sachs.
Ao contrário do que às vezes lemos nos perfis de Bannon, no seu filme ele está longe de parecer o génio, o mito, o filósofo, o grande ideólogo que de certo pensa ser. Ficou surpreendida quando o conheceu?
Não parece nada profundo, não. O seu pensamento não se assemelha ao de um grande filósofo, pelo menos essa foi a minha impressão. Mas eu não sabia assim tanto quando comecei e queria mesmo que ele se mostrasse. Eu tive mesmo medo de encontrar uma mente brilhante, de encontrar um homem com profundas convicções populistas - mas do ponto de vista da luta pelo povo mesmo. Ele tinha frases parecidas com as de Bernie Sanders na altura. Mas só porque ele é bom a apontar alguns problemas no mundo, como a guerra ou o domínio das elites, os conglomerados internacionais, isso não quer dizer que ele tenha soluções, porque não tem. A única coisa é a construção do famoso muro, a luta contra a imigração.
Ele é filmado a pedir ideias ao Nigel Farage [líder do Partido do Brexit].
É a minha parte preferida. Se eu tivesse de escolher uma cena preferida provavelmente seria essa: ele com os dedos a girar, como se estivesse a querer que uma ideia nascesse daquele movimento. É tudo muito superficial e essa cena mostra isso. Mas ele é definitivamente um personagem formidável no sentido em que não tem limites, não tem linhas vermelhas, vai dizer e vai fazer qualquer coisa para atingir os seus objetivos. Soluções não tem, nem sequer creio que ele pense muito nos assuntos que discute. A única coisa na qual ele é bom é na forma de passar a mensagem, não na mensagem em si.
O que seria ganhar, para ele?
Não sei, mas posso contar que, já mais no fim das filmagens, começámos a falar mesmo muito, eu ia no jato privado com ele e falávamos muito. Perguntei-lhe como seria um mundo no qual ele fosse o vencedor da batalha ideológica e ele respondia apenas coisas como ‘bom, seria um mundo onde as pessoas tivessem a sua soberania de volta’. O que é que isso significa? Como seriam as relações comerciais nesse mundo? Nada. Só há duas opções: ou ele é mesmo só um conjunto de slogans sem qualquer plano, e é mesmo tão superficial como parece, ou tem um plano que não pode admitir para a câmara - o desejo de uma maioria branca e cristã na Europa e na América. Acho que o que ele quer dizer com “carácter verdadeiro”, “soberania” e “valores judaico-cristãos” é isso.
Há uma frase que ele diz: “Os meios de comunicação de massa vão ajudar-nos, eles estão obcecados connosco”. Não pensa que, com o seu filme, tornou-se parte dessa onda que o alimenta? Tal como nós, aqui a falar consigo sobre o filme…
O filme é muito editado, foram mais de 250 horas de gravação e eu quis deixar essa frase aí para a audiência saber que eu sei que ele está a fazer aquilo. Fui dormir todas as noites a pensar ‘será que ele está a manipular isto, a usar-me?’. Mas acho que valeu a pena porque acredito que estes homens, estes movimentos, têm se ser acompanhados jornalisticamente, ou de um ponto de vista documental.

“O que é uma vida pessoal?”, pergunta Steve Bannon no filme
“O que é uma vida pessoal?”, pergunta Steve Bannon no filme
ALISON KLAYMAN/THE BRINK

Há uma grande discussão entre jornalistas: devemos falar e escrever sobre estes movimentos e corremos o risco de lhes dar oxigénio mostrando as suas doutrinas ou impedimos os líderes desses movimentos de chegarem aos meios de comunicação e mantemos os eleitores na ignorância?
A resposta é definitivamente que não podemos fechar os olhos às pessoas. A ideia de que a população no geral não consegue lidar ou aguentar algumas das coisas que ele diz, a ideia de que é perigoso mostrar filmes destes, é estranha para mim. Acho paternalista quando os meios de comunicação dizem ‘bom, temos de proteger a população porque as pessoas podem acidentalmente deixar-se encantar por estes movimentos’. É insanidade, é assumir que as pessoas são estúpidas, que não têm outros canais de informação. O risco é precisamente tratar as pessoas como se não se conseguissem defender elas mesmas de ideias fascistas. Temos a responsabilidade de informar mas com peças jornalísticas que acrescentem alguma coisa, não apenas pequenos soundbites. Quem são os principais financiadores, quem são os apoiantes, qual é a estratégia que têm em mente, quais os padrões de comportamento neles que nos remetem para movimentos extremistas, todas essas perguntas têm de ser investigadas. A questão não é se devemos informar, é como.
A neutralidade é sempre obrigatória?
Não, não há dois lados para todas as histórias. O trabalho de um repórter é reconhecer os padrões. Para este filme escolhi alguns clips de notícias, escolhi as cenas que coloquei lado a lado. Por exemplo, eu escolhi começar com aquela cena em que ele fala do Holocausto, sabia que tinha de começar assim porque o principal protagonista do meu filme está a dar-me um resumo muito poético da tese de todo o meu filme. Ele não se apercebe que está a falar dele próprio. O facto de ele estar a falar comigo sobre a banalidade do mal...claramente ele não sabia que o meu filme seria sobre isso. Quando ele fala de chávenas de café e reuniões na minha cabeça a propósito de Auschwitz, eu grito ‘meu Deus, isso é o que tenho filmado ao longo de um ano contigo’. Os vilões não pensam necessariamente que são os vilões. Ele gosta que as pessoas lhe chamem ‘diabo’ ou ‘monstro’ porque lhe dá grandiosidade e importância, faz dele uma coisa potente, com poder para mudar as coisas. Este é um homem que desde sempre quis ser famoso e relevante e este é o ponto da vida dele em que esse objetivo esteve mais perto, quando se junta à campanha do Trump. É possivelmente por isso que ele concordou em fazer o filme, a ideia de ser o protagonista de um filme é-lhe irresistível.
Ele respeita os líderes com quem se encontra? Salvini, Órban?
Sim, ele respeita-os bastante e admira-os. Especialmente o Salvini, porque começou com pouco dinheiro para a campanha. Parece-me que ele mantém ainda aquela mentalidade da Goldman Sachs: pouco investimento, muito retorno. Ele gosta muito disso, e parte do interesse dele nas eleições europeias é o facto de não haver grandes ações de angariação de fundos e as pessoas estão mais dispostas a usar esse voto como uma forma de protesto, ou seja, a votar de uma forma que não votariam nas eleições legislativas no seu próprio país. Ele é também muito ligado à Reunião Nacional, que lhe pede conselhos financeiros, por exemplo, que bancos estariam dispostos a receber os donativos e são só offshores e coisas do género. É quando se fala de dinheiro que eu tenho de sair da sala, se repararem. E também quando se fala das reuniões do Bannon com membros da hierarquia católica.
Não pensa, por vezes, que todos os filmes como o seu, os ativistas na rua por causa dos direitos das minorias ou as manifestações em defesa dos pais separados dos filhos na fronteira com o México, por exemplo, serão um dia parte dos documentários sobre a resistência ao fascismo?
Meu Deus, sim, mas isso é deprimente. As coisas ainda não estão nesse ponto, há uma parte da população a lutar contra o populismo e mesmo o Bannon está ao telefone a falar de como vencer eleições, ainda há eleições, as eleições são o veículo de luta ainda, e a batalha ainda é a de ideias.



expresso.pt

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