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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Opinião: Amália Rodrigues, a anti-fascista

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Silvina Queiroz, professora, escreve semanalmente às quartas no LUX24.
Os dias mais recentes têm corrido vertiginosamente, “recheados” de tantos factos surpreendentes, altamente emocionais, eles também vertiginosos e estonteantes. A escolha foi-me difícil, acabando por deter-me sobre dois, aparentemente completamente diversos, mas nos quais encontro “pontos de contacto” invisíveis ao primeiro olhar.
A revista Visão (passe a publicidade,) acaba de publicar uma Biografia da grande Amália Rodrigues, desaparecida do nosso convívio há vinte anos, aquando de uma campanha eleitoral para a Assembleia da República. Revela factos desconhecidos da maioria dos Portugueses e que terão provocado engulhos a alguns.
Quando a notícia da morte foi conhecida, na já distante quarta-feira 6 de Outubro de 1999, Saramago, o nosso Nobel da Literatura, agraciado no ano transacto, encontrava-se em Paris para uma ronda de conferências, encontros e homenagens, relacionados com o Prémio. Aproveitando uma passagem entre duas portas, uma jornalista portuguesa, cujo nome não vem para o caso, abordou-o de chofre, atirando-lhe a pergunta sobre o que se dizia de Amália, tantas vezes conotada com o facínora regime que vingou em Portugal por 48 anos.
O escritor empertigou-se do alto da sua elevada estatura. Irritado com a abordagem atirou de volta: “A realidade é sempre mais complexa do que parece”, acrescentando: “Essa mesma Amália que se diz que era celebrada pelo salazarismo, algumas vezes fez chegar dinheiro, através de pessoas, dinheiro que ela sabia que ia para o Partido Comunista Português, então na clandestinidade”.
Pronto! Estava quebrado o tabu. Que tabu? A decisão do PCP de não divulgar quem haviam sido os seus benfeitores, em tempos de tanta adversidade! A informação, vinda de onde vinha, era 100% fiável, mas foi abafada até ao possível, porque não convinha que circulasse. Em rigorosa verdade, o dinheiro era para as famílias de presos políticos, mas… quem eram os presos políticos nas masmorras do fascismo? Tudo certo, portanto.
Iminente figura da intelectualidade portuguesa, que me dispenso de nomear, tentou ferverosamente branquear esta realidade. Até que uma investigação financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, vem “descobrir” esta outra Amália, que se reunia clandestinamente com comunistas e outros antifascistas, ligados ao fado, tendo existido até uma célula neste meio artístico.
Eram frequentadores destes círculos, fadistas, poetas, músicos, sempre cautelosos, porque a PIDE sabia da existência de tais encontros e esperava uma oportunidade para os apanhar em flagrante, seguindo-se o que sempre se seguiu: duros interrogatórios, aprisionamentos, torturas e morte, consoante os casos ou como calhava.
A célula comunista do fado lograva iludir a “secreta”, rodando de casa de fados em casa de fados, desde o emblemático Retiro da Severa ao Café Mondego e outros espaços. Um dos fadistas envolvidos nestas andanças políticas, Júlio Proença, tinha ficha na PIDE e é citado num relatório como militante comunista, em 1943.
Acaba indo para Moçambique, antes que acontecesse o pior! Também ela, a própria Amália, é referenciada num relatório de três páginas de um “informador”, um bufo miserável que escreve: “…e a cantadeira Amália Rodrigues que fala inglês, francês e espanhol, é quem, na Severa fala aos estrangeiros e que antigamente ia também a bordo”.
Uma criatura perigosa, portanto: mulher, culta e com facilidade de ligações ao exterior num País que se queria patriarcal, “tapadinho das ideias” e completamente isolado. O “orgulhosamente sós” que defendia António Salazar! Amália afirmou-se sempre, não só pela voz magnífica, mas por uma enorme doçura, aliada a uma personalidade forte e esclarecida.
Arriscou negar-se a cantar letras que considerava indignas, por exemplo as que apresentam a mulher como ser inteiramente submisso à vontade e humores do companheiro, mendigando humildemente uma migalha de amor. Era um ser livre, independente e que habilmente torneou as dificuldades para se não expor, mas que por vezes “pisou o risco”.
São disso exemplos o ter cantado fados como “Amantes Separados “e mais tarde “Raízes”, composições de Sidónio Muralha, poeta odiado pelo regime. “Uma Casa Portuguesa” há-de ser um enorme exercício de ironia que os fascistas não entenderam. Não eram, de facto, muito inteligentes! Se não como teriam permitido que “A Tourada” de Ary dos Santos fosse até à Eurovisão? Broncos e maus, concluo!
Há dias aconteceu a exumação do ditador Francisco Franco, o miserável que atormentou Espanha durante 35 compridos anos e responsável pela morte de milhares de pessoas durante a cruel Guerra Civil e pelo assassinato, a sangue frio, de muitos seus opositores. Vale sempre a pena reler “Por quem os sinos dobram”, de Hemingway, ou, pelo menos, ver o filme.
Retratos do que foi esse conflito horrendo! Finalmente, pois, cumpriu-se a Lei da Memória Histórica, que visa impedir qualquer glorificação do fascismo franquista. Um dia, há anos atrás, visitei o Vale dos Caídos e deparo-me com uma cena, que me “revolveu as tripas”: um fulano de ar absolutamente nazi, a bater os calcanhares e a levantar o braço em saudação hitleriana, diante do túmulo de Franco. Não volta a acontecer!
Está agora num canto recatado do Cemitério Mingorrubio, embora a família se tivesse desunhado para que fosse transladado para a Catedral de Almudena. O neto disse aquando da transladação: “O meu avô não está só!”
Acredito que não, por cá também os há e até já chegaram à Assembleia da República nas últimas eleições! Mas não passarão, fascismo nunca mais! Como escreveu o saudoso Ary: “… agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!”
Fiquem bem, sejam sempre felizes. Aquele abraço. SQ

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