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Um médico trabalhou dia e noite quatro dias seguidos nas urgências. Dois terços dos ortopedistas abandonaram o hospital, e mais um vai sair antes do final do mês. Cirurgias de ortopedia estão a drmorar um ano
A ponta do cajado está gasta, mas o bordão ainda cumpre os serviços mínimos: ampara o pastor. “O joelho está bem pior, gripou”, diz o guardador de rebanhos, reclamando por uma operação de urgência no Hospital de Faro. Na melhor das hipóteses, advertiu o médico, “dentro de um ano talvez tenha vaga”.
O quadro do serviço de ortopedia do hospital contempla 23 especialistas, mas encontra-se reduzido a sete.
Aliás, seis, porque antes do fim mês sairá mais um jovem clínico, que esteve à beira de um confronto físico com um colega, numa noite de nervos à flor da pele.
Raul Contreiras, de 68 anos, vendeu o rebanho. “Cada vez pagam menos, cem cabeças [ovelhas] renderam 5700 euros”, queixa-se.
O dinheiro, concluiu, só chegaria para pagar, no sector privado da saúde, metade do que custaria a intervenção cirúrgica de que precisa. Numa clínica apresentaram-lhe um orçamento de 11 mil euros; numa outra, “14 mil euros, mas faziam a operação de um dia para a outro, e podia pagar em prestações”. Regressou a casa a coxear, lamentando: “Anda um homem a trabalhar desde os sete anos, chega a velho e não tem direito a ser tratado [no SNS].”
Com o Verão à porta, o Algarve poderia hastear a “bandeira amarela” nas urgências hospitalares.
Os concursos para as vagas que são abertas ficam sistematicamente desertos. E a ortopedia não é caso único na escassez de recursos humanos. Nem o Hospital de Faro está sozinho.
No Hospital do Barlavento, em Portimão, faltam especialistas na ortopedia, anestesia, obstetrícia e pediatria. Entre os dias 7 e 10 de Junho, por falta de médicos, a maternidade esteve encerrada, fazendo apenas partos iminentes ou emergentes.
A Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), que integra as unidades de Faro, Portimão e Lagos, está a contar com reforços prometidos, vindos do hospital universitário de Coimbra, de Espanha e da zona norte para colmatar necessidades básicas.
Até porque os que já estão deslocados fazem horários que atingem as 17 horas por dia. É o caso de um dos sete anestesistas espanhóis que prestam serviços no CHUA, que, segundo a Renascença, terá ganho, no ano passado, 326 mil euros brutos. Para atingir este montante, este médicos teve de trabalhar, em média, 17 horas diárias, sem qualquer folga durante o ano inteiro, ou fazer pelo menos cinco turnos de 24 horas por semana.
A discussão entre o jovem ortopedista e um colega, tarefeiro, à beira da reforma, que tinha estado de urgência quatro dias seguidos, 24h sobre 24h, aqueceu de tal forma que foi preciso a intervenção de Jorge Salvador. “Tive de os separar.”
Depois deste episódio, o médico mais novo decidiu abandonar o Hospital de Faro, e essa saída decorrerá ainda antes do final deste mês. “Ainda vai havendo espaço na privada”, comenta Jorge Salvador, lembrando o “desencantamento” de quem chega a um hospital para fazer carreira e vê as portas fecharem-se.
“Desencantado estou eu”, diz o pastor Raul Contreiras, que mora no sítio da Falfosa, perto do Estádio Algarve, e não tem vaga para ser operado. A doença de que padece, diz, resultou dos “muitos quilómetros percorridos atrás das ovelhas”. A rótula do joelho direito está gasta. “E o joelho esquerdo vai pelo mesmo caminho”, adianta.
A companheira, Maria Augusta, lembra que vivem de uma pensão de 380 euros por mês. “Dormi mais vezes com as ovelhas do que com a minha mulher”, diz Raul, rindo, para disfarçar as dores. “Passei muitas noites ao relento, e apanhei muitas molhas.”
O Hospital de Faro está no fim da linha de quase todas as situações mais graves que decorrem na região. “A pressão é enorme sobre aqueles que ficam, e aqueles que vão resistindo”, diz Jorge Salvador, deixando um aviso: “A pressão é de tal maneira grande que, a todo o momento, pode acontecer uma coisa menos interessante.”
A presidente do conselho de administração do CHUA, Ana Paula Gonçalves, argumenta com as regras da administração pública. “Temos de as cumprir.” Refere que a situação pode não ser tão má como previsto, devido à vinda de especialistas para reforçar o serviço de ortopedia aos fins-de-semana.
Em relação à pediatria, o Hospital do Barlavento (Portimão) tem dez profissionais desta área, mas quatro têm mais de 65 anos e, por esse motivo, podem deixar de fazer urgências, e uma outra colega tem uma gravidez de risco. “A escala está feita com algumas falhas, mas a minha convicção é que vamos resolver o problema”, sublinha a administradora.
O Sindicato Independente dos Médicos denunciou que o serviço de pediatria do Hospital do Barlavento esteve encerrado, entre os dias 7 e 10 de Junho, por falta de clínicos. A administração do CHUA contrapõe: “O que não houve foi urgência no bloco de partos.” Nesse período foram transferidas para Faro duas parturientes — uma delas acabou por ser assistida em Lisboa, porque se encontrava grávida de 25 semanas, de gémeos, e neste hospital só havia uma incubadora. Segundo as estatísticas, o Algarve regista cerca 85 mil urgências em pediatria por ano.
“Queremos aproveitar a facilidade da ligação aérea entre Faro e o Porto”, explica o presidente da ARS. Paulo Morgado diz que “a ARS comprometeu-se a encontrar alojamento gratuito” para os médicos que se voluntariem a trabalhar na época de férias.
A oferta, disse, vai depender da procura, mas já estão referenciadas três localidades de acolhimento: Faro, Portimão e Lagos. A partir de 1 de Julho, adiantou, haverá um reforço de 29 médicos a trabalhar nos centros de saúde, o que representa um acréscimo de cerca de 10% ao quadro existente.
João Martins, 59 anos, espera há um ano e dois meses por uma cirurgia a uma hérnia. Esta semana teve mais uma consulta. “Quando tenho vaga aqui no hospital [de Faro]?” A resposta deixou-o perplexo: “Há-de receber uma carta em casa.” O empregado de mesa, queixa-se de não poder trabalhar. “A bola [hérnia] está cada vez maior, e às vezes tenho de carregar caixas de bebidas”, disse. Regressou a casa de autocarro. “Tenho de esperar, não há outro remédio.”
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O quadro do serviço de ortopedia do hospital contempla 23 especialistas, mas encontra-se reduzido a sete.
Aliás, seis, porque antes do fim mês sairá mais um jovem clínico, que esteve à beira de um confronto físico com um colega, numa noite de nervos à flor da pele.
Raul Contreiras, de 68 anos, vendeu o rebanho. “Cada vez pagam menos, cem cabeças [ovelhas] renderam 5700 euros”, queixa-se.
O dinheiro, concluiu, só chegaria para pagar, no sector privado da saúde, metade do que custaria a intervenção cirúrgica de que precisa. Numa clínica apresentaram-lhe um orçamento de 11 mil euros; numa outra, “14 mil euros, mas faziam a operação de um dia para a outro, e podia pagar em prestações”. Regressou a casa a coxear, lamentando: “Anda um homem a trabalhar desde os sete anos, chega a velho e não tem direito a ser tratado [no SNS].”
Com o Verão à porta, o Algarve poderia hastear a “bandeira amarela” nas urgências hospitalares.
Os concursos para as vagas que são abertas ficam sistematicamente desertos. E a ortopedia não é caso único na escassez de recursos humanos. Nem o Hospital de Faro está sozinho.
No Hospital do Barlavento, em Portimão, faltam especialistas na ortopedia, anestesia, obstetrícia e pediatria. Entre os dias 7 e 10 de Junho, por falta de médicos, a maternidade esteve encerrada, fazendo apenas partos iminentes ou emergentes.
A Administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), que integra as unidades de Faro, Portimão e Lagos, está a contar com reforços prometidos, vindos do hospital universitário de Coimbra, de Espanha e da zona norte para colmatar necessidades básicas.
Até porque os que já estão deslocados fazem horários que atingem as 17 horas por dia. É o caso de um dos sete anestesistas espanhóis que prestam serviços no CHUA, que, segundo a Renascença, terá ganho, no ano passado, 326 mil euros brutos. Para atingir este montante, este médicos teve de trabalhar, em média, 17 horas diárias, sem qualquer folga durante o ano inteiro, ou fazer pelo menos cinco turnos de 24 horas por semana.
“Tive de os separar”
O antigo director clínico do Hospital de Faro Jorge Salvador, ortopedista, diz que a situação está “insustentável”. Só assim consegue justificar o episódio que presenciou na noite de 11 para 12 de Junho, no serviço de urgência em Faro. O que viu, admite, pode traduzir um burnout (síndrome de stress laboral). Eram cerca das 23h30 quando dois médicos ortopedistas começaram a discutir, aparentemente por motivos profissionais.A discussão entre o jovem ortopedista e um colega, tarefeiro, à beira da reforma, que tinha estado de urgência quatro dias seguidos, 24h sobre 24h, aqueceu de tal forma que foi preciso a intervenção de Jorge Salvador. “Tive de os separar.”
Depois deste episódio, o médico mais novo decidiu abandonar o Hospital de Faro, e essa saída decorrerá ainda antes do final deste mês. “Ainda vai havendo espaço na privada”, comenta Jorge Salvador, lembrando o “desencantamento” de quem chega a um hospital para fazer carreira e vê as portas fecharem-se.
“Desencantado estou eu”, diz o pastor Raul Contreiras, que mora no sítio da Falfosa, perto do Estádio Algarve, e não tem vaga para ser operado. A doença de que padece, diz, resultou dos “muitos quilómetros percorridos atrás das ovelhas”. A rótula do joelho direito está gasta. “E o joelho esquerdo vai pelo mesmo caminho”, adianta.
A companheira, Maria Augusta, lembra que vivem de uma pensão de 380 euros por mês. “Dormi mais vezes com as ovelhas do que com a minha mulher”, diz Raul, rindo, para disfarçar as dores. “Passei muitas noites ao relento, e apanhei muitas molhas.”
O Hospital de Faro está no fim da linha de quase todas as situações mais graves que decorrem na região. “A pressão é enorme sobre aqueles que ficam, e aqueles que vão resistindo”, diz Jorge Salvador, deixando um aviso: “A pressão é de tal maneira grande que, a todo o momento, pode acontecer uma coisa menos interessante.”
Portimão com problemas
No Barlavento, o hospital de Portimão vive uma situação igualmente preocupante. “Durante 15 ou 16 dias no mês, chega a não haver um único ortopedista” nesta unidade. E aos fins-de-semana, em Faro, “muitas das vezes resta apenas um ortopedista para servir toda a região [600 mil habitantes, residentes e turistas]”.A presidente do conselho de administração do CHUA, Ana Paula Gonçalves, argumenta com as regras da administração pública. “Temos de as cumprir.” Refere que a situação pode não ser tão má como previsto, devido à vinda de especialistas para reforçar o serviço de ortopedia aos fins-de-semana.
Em relação à pediatria, o Hospital do Barlavento (Portimão) tem dez profissionais desta área, mas quatro têm mais de 65 anos e, por esse motivo, podem deixar de fazer urgências, e uma outra colega tem uma gravidez de risco. “A escala está feita com algumas falhas, mas a minha convicção é que vamos resolver o problema”, sublinha a administradora.
O Sindicato Independente dos Médicos denunciou que o serviço de pediatria do Hospital do Barlavento esteve encerrado, entre os dias 7 e 10 de Junho, por falta de clínicos. A administração do CHUA contrapõe: “O que não houve foi urgência no bloco de partos.” Nesse período foram transferidas para Faro duas parturientes — uma delas acabou por ser assistida em Lisboa, porque se encontrava grávida de 25 semanas, de gémeos, e neste hospital só havia uma incubadora. Segundo as estatísticas, o Algarve regista cerca 85 mil urgências em pediatria por ano.
Alojamento grátis
A juntar aos sete anestesistas e um ortopedista que vêm de Espanha para prestar serviço no Algarve, estão previstas equipas de três e quatro elementos do hospital universitário de Coimbra para completar as escalas de fins-de-semana. Além disso, Ana Paula Gonçalves adiantou que escreveu às administrações dos hospitais da zona norte, na esperança de cativar alguns dos profissionais a deslocaram-se para sul.“Queremos aproveitar a facilidade da ligação aérea entre Faro e o Porto”, explica o presidente da ARS. Paulo Morgado diz que “a ARS comprometeu-se a encontrar alojamento gratuito” para os médicos que se voluntariem a trabalhar na época de férias.
A oferta, disse, vai depender da procura, mas já estão referenciadas três localidades de acolhimento: Faro, Portimão e Lagos. A partir de 1 de Julho, adiantou, haverá um reforço de 29 médicos a trabalhar nos centros de saúde, o que representa um acréscimo de cerca de 10% ao quadro existente.
João Martins, 59 anos, espera há um ano e dois meses por uma cirurgia a uma hérnia. Esta semana teve mais uma consulta. “Quando tenho vaga aqui no hospital [de Faro]?” A resposta deixou-o perplexo: “Há-de receber uma carta em casa.” O empregado de mesa, queixa-se de não poder trabalhar. “A bola [hérnia] está cada vez maior, e às vezes tenho de carregar caixas de bebidas”, disse. Regressou a casa de autocarro. “Tenho de esperar, não há outro remédio.”
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