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domingo, 23 de junho de 2019

A estratégia dos EUA para a "mudança de regime" na Rússia



Ollie Richardson

Numa admissão muito oportuna considerando o tema do meu último artigo – as relações internacionais do século XXI e a tomada de decisões –, o chefe do Serviço de Inteligência Estrangeira da Rússia, Sergey Naryshkin, apontou para um método de baixo risco de guerra "híbrida" e mencionou um exemplo específico em que ele está a ser implementado. A RT informou o seguinte em 18 de Junho (ênfase minha):

"Os serviços secretos ocidentais estão a aperfeiçoar ferramentas clandestinas que são concebidas para enfraquecer países tal como os vírus enfraquecem corpos", disse o chefe da inteligência russa. Esta espécie de guerra é utilizada actualmente na Venezuela.

A crítica proveio de Sergey Naryshkin, que dirige a agência de inteligência estrangeira da Rússia, SVR. Ele afirmou que espiões estão constantemente a melhorar a ferramenta usada para desfazer-se de governos que o Ocidente não gosta.

"Estamos a falar acerca da criação de um algoritmo universal para conduzir operações de influência clandestina demaneira contínua e em escala global ", disse ele. Segundo o funcionário, esse trabalho clandestino "nunca pára e tem como alvo não apenas inimigos, mas também amigos e poderes neutros nos tempos de paz, de crise e de guerra".

'Isto pode ser comparado à acção de um vírus; podem passar décadas a destruir um organismo humano sem sintomas e, uma vez diagnosticado, muitas vezes é demasiado tarde para tratá-lo.

Os métodos utilizados para influenciar e desestabilizar outras nações incluem a criação de estruturas orientadas em rede que podem operar sob uma premissa de activismo público, arte, ciência, religião ou extremismo,disse o responsável russo. Depois de colectar dados sobre as linhas de fracturação numa sociedade-alvo,estas estruturas são utilizadas para atacar aqueles pontos fracos num ataque sincronizado, esmagando a capacidade do país para responder às crises. 

Simultaneamente, os perpetradores propalam uma narrativa através dos media locais e globais e das redes sociais afirmando que a única maneira de resolver problemas é substituir o governo da nação vítima por um outro, possivelmente com um apoio externo directo.

"Podemos observar este cenário a ser implementado na Venezuela ", disse Naryshkin.

Os EUA estão actualmente a tentar substituir o presidente eleito da Venezuela, Nicolas Maduro, por outra pessoa, Juan Guaido, ao qual Washington reconheceu como o chefe legítimo da nação sul-americana.

Entre outros, os EUA respaldam a sua proposta com sanções económicas contra a Venezuela e uma maciça campanha diplomática e mediática em apoio ao pretendente. As tentativas de Guaido de realmente tomar o poder em Caracas têm sido fúteis até agora.

O chefe da inteligência russa falava num fórum de segurança internacional em Ufa, na Rússia, que é hospedado pelo Conselho Nacional de Segurança da Rússia. O evento é destinado a funcionários directamente envolvidos na elaboração de políticas sobre questões de segurança. Quase 120 nações participam do encontro deste ano. "

Começarei por dizer que Naryshkin poderia revelar muito mais se quisesse, mas por razões óbvias limita-se a apresentar uma tese abstracta – que a RT "por coincidência" retransmitiu – como uma espécie de sinal para as agências de inteligência ocidentais de que o espaço de manobra da Rússia no âmbito da informação não se limita apenas a publicar "notícias".

De modo superficial, pode parecer que ele está apenas a descrever um golpe de estado banal, em que um Estado interfere nos assuntos internos de outro Estado com o objectivo de derrubar o governo e levar ao poder um círculo político mais amistoso. Se alguém preferir tópicos simplistas e digeríveis, então pode parar de ler aqui – nada de novo sob o sol!

No entanto, aquilo a que o chefe do Serviço de Inteligência Estrangeiro da Rússia está a aludir é uma matéria muito mais complexa e densa. Como a história tem mostrado, o golpe de Estado tradicional, semelhante aos que têm sido vistos na região do MENA [Médio Oriente e Norte de África] e na América do Sul durante décadas, não é o mesmo que o golpe de estado que se desenrolou, por exemplo, na Ucrânia em 2014. Por que?

O precursor da "revolução colorida"

A principal razão é porque o Ocidente tem trabalhado durante décadas na ocupação de terras e matérias-primas dos países do MENA. Se estes países podem ser considerados tribalistas em termos de estrutura e objectivos, então à primeira vista a Europa pós-Segunda Guerra Mundial é muito mais "desenvolvida" e "civilizada". Pus estas palavras entre aspas porque são as frases genéricas que organizações como a ONU utilizam quando descrevem o que os países do MENA deveriam aspirar para se tornarem "mais democráticos" e "progressistas" a fim de "combaterem a pobreza" e tornarem-se "prósperos". Por outras palavras, os países do MENA em geral não são tão tecnologicamente avançados quanto estados-nação modernos com "democracias" liberais. Isso não é um insulto aos MENA; é simplesmente um fato observável com base nas consequências da colonização. Portanto, o esquema para conquistar o território MENA é mais directo do que seria para conquistar, por exemplo, a Europa Oriental. Há um líder, há um pequeno círculo de elites ricas, há um exército (lealistas armados) e há agricultores / trabalhadores manuais. Os colonizadores anglo-saxônicos conseguiram conquistar as terras muito antes de as nações vítima poderem subir a escada da investigação científica e, assim, obterem formas cada vez mais eficazes de se defenderem.

No caso dos índios nativos, os ingleses já possuíam armas básicas, assim, os arcos e flechas dos primeiros eram inferiores. No caso da África, notórios colonizadores (que incluem os britânicos) chegaram com as mesmas armas e enfrentaram apenas lanças e outras armas relativamente primitivas. Por isso quase todo o continente africano foi tão facilmente subjugado. A diferença entre a colonização em geral e um golpe de Estado pode ser vista mais visivelmente depois de a CIA ser formada: derrubar um "ditador" torna-se tão simples quanto literalmente comprar o exército (tal como o Reino Unido foi pioneiro no uso de piratas), o que permite ao Ocidente capitalista que cuide dos negócios e utilize seus recursos de media para descrever outro projecto "democrático", "pacífico" e "bem-sucedido". Logo que um líder consegue chegar ao poder e tem como objectivo desafiar esta subjugação (Gaddafi é o exemplo mais recente no MENA, mas também há Patrice Lumumba e Thomas Sankara), eles experimentam o mesmo problema – são simplesmente dominados pelo colonizador tecnologicamente mais avançado.

Quando se trata de golpes de Estado no espaço pós-soviético, o jogo é diferente. Durante mais de 60 anos a URSS conseguiu repelir a influência dos "livres" (capitalistas) anglo-saxões – graças a um foco na investigação científica e portanto nas tecnologias nucleares – e criar uma União fortemente coesa baseada numa história e cultura comuns. No Ocidente, os governos disseram aos seus cidadãos que "daquele lado da cortina eles são 'totalitários'", enquanto que, na realidade, a América & Companhia lutavam para influenciar a sociedade soviética e não queria que seus próprios cidadãos vissem que no sistema soviético de governação todos tinham alguma coisa, ao invés de apenas algumas pessoas terem tudo (capitalismo). Por outras palavras, a URSS foi capaz de se defender contra o método do golpe de Estado tradicional.

Devido ao facto de que a URSS era um território desenvolvido e tinha estruturas políticas muito mais complexas do que as de um país africano médio, não era tão simples como enviar Thomas Lawrence ou Sidney Reilly e ludibriar chefões locais para assinarem acordos em que essencialmente renunciam a direitos de propriedade de matérias-primas. E também é importante ter em mente que as agências de inteligência soviéticas combatiam a CIA muito antes de 1991 . A mudança dos tempos simplesmente obrigou o Ocidente a actualizar o manual de golpes de estado antes que o país-alvo progredisse ao longo da linha de desenvolvimento científico e estabelecesse um mecanismo de defesa que tecnologicamente está 20 anos à frente das ferramentas subversivas dos EUA.

Não sendo fisicamente capaz de intimidar a URSS o suficiente para que se submetesse à sua vontade, uma vez que esta tinha armas nucleares, o Tio Sam percebeu que era muito mais sábio e seguro explodi-la a partir de dentro. Neste artigo não quero desviar demasiado do tópico central, portanto não apresentarei uma massa de pormenores sobre como os Estados Unidos conseguiram penetrar a URSS e injectar suas ideias liberais por toda a sociedade, mas um bom exemplo rápido que posso dar é o do envio de roupas / moda americanas para portos soviéticos, como Odessa. Hoje isso pode ser chamado de "soft power", mas na época em causa tais coisas serviam para convencer pessoas de que o individualismo poderia proporcionar uma vida mais frutífera do que o colectivismo.

O golpe de estado de 2014 na Ucrânia utilizou um plano actualizado baseado no modelo usado para desmantelar a União Soviética (e desencadear a crise constitucional de 1993). Quando a URSS entrou em colapso em 1991, a Ucrânia encontrou-se na posição de ser a herdeira mais rica do legado soviético: sua infraestrutura, medicina, educação, forças armadas, etc. eram as melhores da região. As coisas começaram a complicar-se por volta de 2004, quando a interferência da América começou a atingir novos patamares na época do "multi-vectorial" Kuchma , mas a Ucrânia de 2014 sob Yanukovych a flutuava e nadava confortavelmente. Numa tentativa de derrubar Putin antes de a Rússia se aproximar ainda mais da China, se fortalecesse e formasse a espinha dorsal do emergente bloco euro-asiático, os EUA planeiam romper o equilíbrio na Ucrânia e violentamente arrancá-la para longe da nação russa. Mas o problema para a América era "como fazer com que esse processo parecesse orgânico? Afinal de contas, simplesmente invadir a Ucrânia com o Exército dos EUA resultaria na liquidação dos próprios Estados Unidos da América".

Não vou gastar o precioso espaço deste artigo contando o que aconteceu em 2013/2014 na Ucrânia, pois já criei umficheiro dedicado a ele, mas creio que o vídeo abaixo – John Tefft em 2013 a preparar o terreno em Donetsk para o que estava prestes a acontecer – encapsula muito bem a essência: ONGs dos EUA fizeram uma lavagem cerebral na sociedade para flertar com o liberalismo e sua nociva "democracia", semelhante àquele vírus de que falou Sergey Naryshkin ; são constituídas formações militantes locais na Galícia (principal exemplo: "Setor Direita") e capturam edifícios administrativos na Ucrânia Ocidental, antes de finalmente serem transportados a Kiev para a "revolução" de Fevereiro. 

"Revolução colorida 2.0"

O que realmente quero focar é o modelo de golpe de Estado que está sendo implantado pela America & Companhia em 2019. Até agora, podemos dizer que existem 3 versões da tecnologia do golpe de Estado (estou a ser deliberadamente simplista e utilizo nomes e descrições provisórias, pois ainda estou a investigar esse tópico):

    1. Golpe de Estado tradicional – um golpe simples e esmagador, eficaz contra o chamado "terceiro mundo" (exemplos: Laos, Guatemala, Zaire);
    2. "Revolução colorida" – sequestrar temporariamente a "sociedade civil", eficaz contra estados mais tecnologicamente refinados, mas não superpotências (exemplos: Egipto, Síria, Ucrânia "independente");
    3. Sondagem algorítmica (pode ser considerada como "revolução colorida 2.0") – tomada do controle sobre anação desde o início, eficaz contra aliados de superpotências nucleares pós-2015, quando os Acordos de Minsk foram assinados e os jactos russos aterraram na base aérea de Hmeymim na Síria (exemplos: Venezuela, Hong Kong, Rússia, Sérvia).

Antes de começar a elaborar a versão nº 3, respeitante à guerra pós-síria (enfatizo que a Rússia terminou a guerra em 2015 – tudo o que aconteceu depois disso está logo atrás da cortina de negociações referente aos próximos 50 ou mais anos de ordem mundial), é necessário apresentar algumas das razões pelas quais a versão nº 2 já não funciona: 

Campanhas de hashtags (palavras-chave) nos media sociais como aquelas vistas durante a "revolução" da Irmandade Muçulmana no Egipto não têm mais o mesmo efeito devido à mobilização exponencialmente crescente de utilizadores de media sociais anti-golpe ("pró-Rússia" / "pró-Assad" / "pró-Maduro" / "Pro-Nasrallah"); 

Tornou-se muito difícil manter a estética da operação limpa de modo sistemático – os "Capacetes Brancos" podem fazer algo que desacredite sua alegada autenticidade; o porta-voz da Rada [parlamento ucraniano] pode afirmar que "Hitler era um grande líder"; uma figura sénior do Qatar pode admitir ao vivo na TV que o Qatar financiou grupos militantes para remover Assad; Bana pode acabar com um tweet; um vídeo pode aparecer mostrando um líder "FSA" a ler um roteiro em frente a um produtor americano, etc; 

A popularidade dos media de referência está a tornar-se cada vez menor (para não mencionar o efeito da campanha de RP de "fake news" de Trump) e a popularidade tanto dos media estatais não-ocidentais (RT, Sputnik, Press TV, Telesur, etc) quanto dos media independente (ou aparentemente independentes) está a crescer exponencialmente; 

Os sítios web e os aplicativos de media social alternativos tornaram-se populares entre os falantes de inglês (VKontakte, Telegram, Instagram, Gab, Snapchat, etc); 

A Eurásia foi capaz de estudar o comportamento passado tanto dos media tradicionais quanto dos utilizadores de media social do Ocidente, o que permitiu refinar os recursos que tinham e até mesmo criar novos e especializados; 

A existência de jornalistas independentes e anti-golpistas que estão preparados para viajar entre diferentes teatros (por exemplo, Síria e Venezuela) e revelar o padrão dos métodos de "mudança de regime" do Ocidente. 

O enfraquecimento do efeito de difamação de expressões como "anti-semitismo" devido ao efeito da acumulação de informações acerca dos crimes israelenses em Gaza e na Cisjordânia; 

O fortalecimento geral da Eurásia e o declínio do Ocidente liberal (e as oportunidades que ele tem de violar o direito internacional em consequência) fazem com que os cidadãos da primeira não tenham razão para acreditar que este último seja o paraíso que pretende ser; 

etc.

Por outras palavras, a realidade geopolítica que temos hoje não é a mesma que víamos antes do envolvimento da Rússia na Síria – o tabuleiro de xadrez com apostas mais elevadas no grande jogo. Lições foram aprendidas com o passado e decorreu tempo suficiente para mudanças serem calculadas e implementadas. Hoje, as superpotências são obrigadas a investir exponencialmente mais recursos em tecnologias (daí a razão pela qual a Rússia quer investir fortemente no sector da IA), uma vez que entender as tecnologias do inimigo é a diferença entre elas terem ou não êxito em penetrarem a sociedade. E não é uma coincidência que Naryshkin comece a utilizar termos como "vírus". Mas o que ele realmente quer dizer? Quais são as diferenças de concepção entre uma "revolução colorida" regular e o que hoje estamos a ver, por exemplo, na Venezuela?

Em primeiro lugar, uma "revolução colorida" é concebida para sequestrar a "sociedade civil" durante um período de vários meses (menos de 6), obter o apoio das elites e tem como objectivo colocar o líder alvo diante de duas más escolhas – uma armadilha: se sufocar protestos isso significa ser retratado pelas ONGs do Ocidente como um "ditador" e assim o Ocidente não corre o risco de receber um golpe de informação na sua retaguarda (se a sociedade ocidental não concordar com algo que o governo está a fazer, um o adversário pode explorar o facto e perturbar a situação socio-econômica de um ou muitos países ocidentais); se não reprimir os protestos isso significa simplesmente entregar o poder. Isto explica o que aconteceu a Viktor Yanukovich – ele não deu ordens à Berkut [polícia ucraniana] para dispersar Maidan por receio de ficar permanentemente estigmatizado nos media ocidentais, assim Joe Biden e seu bando de golpistas, depois de um bocado de teatro de franco-atiradores a fim de manter vivos os protestos, tomou a Rada. Perda-perda. Neste cenário, a Rússia não podia fazer nada uma vez que a) os ucranianos e suas elites são em última análise culpados pelo flerte com o Ocidente, e b) Yanukovych optou pela opção passiva e assim a única coisa que Moscovo podia fazer era rapidamente prever as consequências e andar vários passos à frente dos EUA (daí os supercomputadores que sabiam acerca da guerra na Jugoslávia). O resultado? Os Acordos de Minsk e a condução do projeto "anti-Rússia" dos EUA a um beco sem saída.

Em segundo lugar, uma "revolução colorida" sequestra o descontentamento social momentâneo em relação a um assunto em particular, incha-o e a seguir descarrega-o de uma maneira muito focalizada. O descontentamento precisa ser alimentado financeiramente e, portanto, pode-se deixar extingui-lo se os planos mudarem. Deveria ser notado que a sociedade-alvo já deve mostrar sinais de fragmentação: o trabalho para gradualmente arrancar a Ucrânia do seio da Rússia (desde o colapso da URSS) estava em andamento há décadas e ao longo do tempo Kiev sucumbiu ao veneno bandeirista do ocidente. Assim, o golpe de 2014 simplesmente trouxe à superfície o que estivera a fermentar por baixo desde os tempos da batalha do NKVD com a OUN-UPA . O caso sírio é muito parecido – o wahhabismo esteve a mordiscar o Levante durante décadas . É claro que os laços entre Hafez / Bashar al-Assad e a Rússia/URSS existem há mais de 30 anos, mas não se pode dizer que os dois países tiveram um relacionamento mais baseado no pragmatismo.

Em terceiro lugar, uma "revolução colorida" envolve a criação de um holograma informacional que proverbialmente flutua acima do território alvo, criando uma linha do tempo paralela (exemplo: a bandeira verde / negra / branca do mandato francês como a bandeira síria actual, e o Comité Superior de Negociações como o real governo da Síria reconhecido pela ONU – ambos são fraudes, naturalmente, mas permitiram que membros da NATO bombardeassem a Síria sem qualquer indignação da opinião pública ocidental), mas começa a desvanecer-se tão logo o equilíbrio de forças no terreno da guerra inclina-se a favor do alvo (nem mesmo a máquina mediática dos EUA pode vender a narrativa de que o Leste de Aleppo ainda não foi recapturado por Assad).

Em quarto lugar, uma "revolução colorida" não visa reprogramar todas as camadas da sociedade não-elitista em todas as regiões do país – ela tem como o objectivo apenas introduzir ideias liberais e manter o apoio tanto daqueles que já sofreram lavagem cerebral quanto daqueles que sucumbem a inculcação. Aqueles que eram anti-liberais antes permanecerão anti-liberais após o golpe e, portanto, representam uma ameaça para o regime fantoche. A Ucrânia é um excelente exemplo disto, pois a profundidade da linha de divisão histórica entre a Novorossiya e a Galicia pôde ser superada com alguns cookies e US$5 mil milhões em dinheiro de ONGs.

A versão nº 3 do golpe de Estado, à qual neste artigo refiro-me como "sondagem algorítmica", é portanto concebida para:    verificar-se durante um período de tempo mais longo; ser alimentada a expensas do governo alvo e ligar várias fontes de descontentamento social; ser capaz de funcionar em condições em que não há uma guerra existente no terreno e a probabilidade de haver alguma no futuro é baixa; reprogramar a consciência nacional e ligar todas as camadas da sociedade tão geograficamente distantes e tão vastas quanto possível; dar passos em direcção ao sucesso, mesmo que as elites permaneçam fiéis ao líder alvo.

Em situações em que o aparelho de segurança do alvo é o mesmo, se não melhor, do que o do beligerante; onde o nível médio de confiança da sociedade no líder é o mesmo, se não superior ao do beligerante; e onde as capacidades de defesa do alvo combinam, se não dominam, as capacidades ofensivas do beligerante; torna-se demasiado arriscado para o beligerante tentar o esquema da "revolução colorida", uma vez que um fracasso pode comprometer quaisquer tentativas de golpe de estado – o líder do golpe pode ser detido e pode abrir a boca e dizer quem lhe deu ordens e o que eram elas, bem como qualquer informação valiosa de inteligência. O fracassado golpe na Turquia em 2016 foi o sinal de alerta para Washington de que a tecnologia habitual da "revolução colorida" não funcionaria no espaço euro-asiático "multipolar" (pista: a Turquia recebeu informações de aliados que frustraram o golpe).

Na Venezuela, os EUA estão a rever sua tecnologia de golpe de estado em tempo real. Há sinais da tecnologia da "revolução colorida":    um líder da oposição fantoche que apela a protestos de rua; a expressão "o regime de Maduro"; a imposição de sanções para dar a ilusão de que o governo venezuelano está a esfaimar o seu próprio povo; até mesmo declarações como "todas as opções estão na mesa", o que é uma maneira amistosa de RP de dizer que não há opções. Há também alguns débeis sinais de "sondagem algorítmica": a transferência de activos nos Estados Unidos pertencentes ao Estado venezuelano para as mãos de Juan Guaido; o arrastamento do golpe de estado (ele está em curso há muito mais de 6 meses); não haver guerra civil no país e é improvável que haja alguma no futuro próximo, apesar da presença de ONGs dos EUA no país.

Contudo, a tentativa inicial de "revolução colorida" fracassou porque a Rússia e a China – superpotências nucleares – ajudaram Caracas a resistir à tempestade e a manter unida a sociedade. Posteriormente, a companhia petrolífera estatal venezuelana, PDVSA, transferiu seus activos para Moscovo, a Rússia enviou bem educados homens com fardas verdes    para acalmar os EUA, tanto Moscovo como a China enviaram ajuda humanitária para o povo sancionado do país, e Juan Guaido foi exposto tanto que até seu namorado rico Richard Branson foi obrigado a deitá-lo abaixo: 


Mas neste exemplo, tal como em relação à guerra síria, a Rússia não precisa fazer muito trabalho informativo para justificar seu envolvimento, simplesmente porque os laços entre Caracas e Moscovo já existiam antes de o tandem Bolton-Pompeo chegar ao poder. Além disso. de qualquer modo a Rússia estaria a actuar dentro do direito internacional. Ou seja, a porta foi batida na cara da CIA e, para reabri-la, a única opção da América é ou remover as armas nucleares da Rússia (e, para isso, o S-400 deve ser removido da equação) ou reformular a sociedade venezuelana no nível das bases.

A versão de golpe de Estado "revolução colorida" ainda funciona menos na Rússia de Putin. Ele conseguiu construir um sistema que não deixa buracos para os ratos da CIA (por exemplo, sucessores de Gorbachev, Yeltsin ou outros notórios sabotadores liberais). Alguns podem chamar isto de "autoritário"; outros podem chamá-lo de resistente a golpe de estado.

O assassinato de Boris Nemtsov orquestrado pela CIA serviu como um balão de ensaio, para saber se o esquema ucraniano pode ser repetido (morte [s] de tiroteios —> protestos e confrontos com a imposição da lei —> presidente alvo foge). O objectivo era reunir pessoas suficientes em Moscovo para uma "marcha em memória de Nemtsov" e replicar o que aconteceu na Praça da Independência em Kiev, mas desta vez do lado de fora do Kremlin (quão conveniente para fotógrafos propagandistas – ele foi morto na ponte junto ao Kremlin!). 

O experimento seguinte foi a carta Navalny no período que antecedeu a eleição presidencial de 2018. Recomendo aprofundar o estudo do material encontrado aqui para mais pormenores acerca disso. Em resumo, a CIA tentou utilizar a imagem de crianças a serem presas pela [polícia] OMON durante protestos não sancionados a fim de abalar a sociedade russa. O resultado? Putin tornou a manifestação ilegal e, é claro, os propagandistas ocidentais puseram-se a berrar "repressão". Putin ganhou a eleição de qualquer modo, na presença de observadores internacionais também.

Avançando rapidamente para a mais recente provocação (no momento em que escrevo) – o caso de Ivan Golunov, que trabalha para a agência propagandista liberal Meduza – vemos coisas familiares: um quinto-coluna é utilizado como um aríete concebido para abalar a sociedade e remover o mau "ditador". Uma marcha não sancionada de "Golunov é um herói" ocorreu no dia 12 de Junho e a análise da filmagem mostra que não ela nada a ver com jornalismo e tudo sobre colocar Putin sob uma luz desfavorável. A multidão chega a cantar "Rússia sem Putin" e um palhaço contratado deu à mensagem um aspecto visual.
foto?

Evgeny Federov observou que o clube de Golunov recusou a oferta do governo de realizar uma manifestação sancionada em 16 de junho, pois os EUA precisavam de imagens de "jornalistas e activistas inocentes" a serem detidos pelo "mau" OMON. A declaração de Federov na íntegra:

"Não há dúvida de que é uma tentativa de interferir. Tanto o Departamento de Estado dos EUA quanto Bruxelas fizeram declarações oficiais sobre este assunto. Eles incluíram suas forças e nós os conhecemos bem, muitos dos participantes da manifestação ilegal são bem conhecidos por nós. A partir das fotos nos furgões da polícia, você pode recordar que essas forças saíram repetidamente antes. Pessoalmente, eu os vi na Praça Pushkin, quando Navalny os levou ali.

Estas são forças estrangeiras óbvias, a quinta coluna no território da Rússia, eles se tornaram activos em 12 de Junho. Para eles, apenas precisavam de uma razão, mas a razão já desapareceu, Golunov foi libertado, mas eles pouco se importam. A equipe chegou, o dinheiro foi recebido e eles precisam dar-lhe- uso. As acções dos manifestantes estão ligadas ao sistema geral de sacudir a situação que é praticado no Ocidente, primariamente nos EUA. É suficiente ver como os eventos foram preparados na Ucrânia, na Geórgia, na Moldávia, como eles foram preparados em centenas de outros países através de intervenção estrangeira utilizando o método da tecnologia laranja.

Tudo acontece sempre da mesma maneira em toda parte. Primeiramente, uma vítima sagrada é seleccionada, então grupos comprovados que pouco se importam com a causa são utilizados. O principal para eles é que o desempenho seja contra a Rússia e em apoio de manipuladores estrangeiros. O mesmo esquema funciona na Rússia quanto àcolecta de lixo e em Ekaterinburg . Não importa qual seja o motivo, o mais importante é continuar a abalar a situação. E enfatizo que os americanos conseguiram fazer isso muitas vezes. No segundo escalão, eles habitualmente envolvem separatistas e isto também está a ser preparado na Rússia. " 

Assim, em vez de realizar uma marcha sancionada no dia 16 de Junho, houve um evento de "apoio a Golunov".O comparecimento a este comício foi patético. Como diz Federov, Putin neutralizou a bomba de Golunov, libertando o "jornalista" e sacrificando alguns generais da polícia. É claro, os ataques da media social seguiram o mesmo roteiro que os protestos e prisões não autorizadas de Navalny (não se vê indignação contra a detenção de Kirill Vyshinsky, naturalmente):

Os media da quinta coluna russa em uníssono começaram a promover a campanha das ONGs "Eu/Nós Somos Golunov". Jornais do Reino Unido apresentaram a situação como Putin "recuando" e alegaram que "a imprensa independente é assediada, o que na realidade significa que o FSB não deixa a quinta coluna respirar. Houve também tentativas ( exemplo ) de estender o modelo Golunov a outras "prisões ilegais". E a cereja em cima do bolo é que o palhaço Navalny esteve presente na marcha não sancionada de Golunov:

Há, é claro, outros exemplos de agitação instigada pelos EUA na sociedade russa – variando de igrejas em Ekaterinburg às pensões de reforma – mas todos eles mostram os mesmos traços de uma "revolução colorida" e deparam-se com o mesmo problema: Putin está um passo à frente deles .

Para abreviar uma história longa, após a guerra da Síria a aplicação pela América de sua tecnologia da "revolução colorida" é inadequada quando se trata de derrubar líderes de superpotências nucleares ou líderes dos países seus aliados. Não é apenas a Eurásia que é alvo desses ataques – Trump também ataca a UE [ exemplo e exemplo ] – também os estados individuais qualificados, para utilizar a expressão de Naryshkin, como "potências amigas e neutrais em tempos de paz, crise e guerra". E considerando a actividade da Rússia e da China na África hoje, esta inadequação pode significar que os países do "terceiro mundo" que antes foram arrasados pelo método mais básico de capturar o poder estatal podem começar a escapar da rede de colonização e desfrutar a protecção oferecida pela "contraprova algorítmica" da Rússia. Afinal de contas, basicamente é isso que a Venezuela está a fazer e é a única razão pela qual Maduro, tal como Assad, ainda está no poder.

Por que utilizo a palavra "algorítmico"?

Se nos recordamos, no meu artigo anterior apresentei a ideia de que a tomada de decisões de política externa de superpotências nucleares está a ser assistida por supercomputadores, simplesmente porque o modo como nos comunicamos e enviamos/recebemos dados está a tornar-se exponencialmente mais rápido e o cérebro humano não é capaz de processar tais dados a essa velocidade. Devido a esta rapidez de comunicação, isso significa que um estado pode infringir a soberania de outro estado (tanto digitalmente como fisicamente), assestar um golpe e retirar-se para uma relativa segurança antes de o alvo ter tempo para responder adequadamente. Assim, a implantação do S-400 permitiu à Rússia estabelecer certas regras nas relações internacionais que: a) diminuíssem a pressão sobre as armas nucleares russas – a dissuasão de todas as dissuasões; e b) exercessem pressão sobre os EUA de tal forma que Washington actualmente – e provavelmente nos próximos 25 anos, pelo menos – não tem como contestar.

Então, entendemos a partir directamente da descrição acima que, como em qualquer sistema, pode haver latência/defasagem (latency/lag) quando se trata de responder. Mencionei no passado como a Rússia foi apanhada de surpresa com a primeira bandeira falsa dos "Capacetes Brancos" (Ghouta em 2013, a qual foi concebida para comprar tempo para os jihadistas), uma vez que foi utilizada uma tecnologia de media nunca foi vista antes. A segunda bandeira falsa – Khan Shaykhun – teve muito menos êxito pois a Rússia já havia posicionado seus jactos, foi capaz de aprender com a falsa bandeira anterior e portanto ajustou seu algoritmo (ver meu artigo anterior, especialmente a secção acerca da desinformação mediática com equações complexas) e desenvolveu uma campanha mediática contrária . A terceira bandeira falsa – Duma [parlamento] – foi mesmo mais do que um fracasso.

O objectivo do adversário é superar o rival no espaço da informação global através de uma media coordenada e campanha no terreno (cunhada por alguns como "guerra de quarta geração"). Os "Capacetes Brancos" têm de filmar a bandeira falsa e as agências têm de espalhar as imagens falsas em paralelo, coordenando-as com os tópicos diários gerais de tal modo que o consumidor sinta que o seu serviço de notícias regular "confiável" é o mesmo de sempre – porque a última coisa que um governo neoliberal quer é que os seus súbditos comecem a pensar gente do governo está a patrocinar a Al Qaeda. Por outras palavras, quanto maiores as apostas geopolíticas, mais tecnologicamente refinados são os métodos usados no espaço da informação.

Neste caso, não se trata apenas da velocidade de um ataque "híbrido", mas também da sua composição. Pode-se ter o algoritmo informacional "input—> processamento—> output" mais rápido, mas ele é inútil se não puder proporcionar ângulos de ataque múltiplos.

Aqui está um diagrama muito abstracto (apressado) que fiz só para ilustrar este ponto. O círculo negro representa um ponto designado no tempo, quando todos os recursos da media papagueiam em sincronia "Assad gaseou o seu próprio povo". O objectivo da América é coordenar o maior número possível de "informações de ataques químicos", fazendo com que pareçam "críveis". As setas vermelhas representam o contra-ataque da Rússia, que impedirá o círculo negro de crescer (o Ocidente de empregar mais recursos de media/ONGs para disseminar a desinformação) ou avançar (o Ocidente utilizar a mesma quantidade de recursos, mas relatando "actualizações" ao longo do tempo). Foi assim que a tentativa de executar uma quarta bandeira falsa foi negada – ver exemplos aqui , aqui , aqui e aqui . Como mencionei em outro artigo , esta mesma táctica preventiva foi muito usada no Donbass para travar a pressão agressiva exercida pelos EUA. É claro que o mapa não é o território, e o diagrama abaixo não representa literalmente como funciona o supercomputador do Ministério da Defesa russo. 

O leitor pode estar a pensar "Você disse que a Síria era exemplo de uma 'revolução colorida', não de 'sondagem algorítmica', então por que usá-la como exemplo?" A resposta é: a Síria não é uma superpotência nuclear e, portanto, a "tecnologia da revolução colorida (embora incrementalmente melhorada ao longo dos muitos anos da guerra) funcionou. No caso da Rússia, a tecnologia "revolução colorida" não funciona, ponto final. Por isso, a única opção dos EUA é tentar injectar este "vírus", como o chama Naryshkin. Assim, o objectivo da América é invadir o espaço de informação russo sem que as autoridades russas tenham tempo para repelir ataques. Quando encarado de uma perspectiva gestáltica, a América teria assim uma presença permanente no espaço de informação russo, uma vez que no momento em que a Rússia tapasse um buraco, outra pancada teria sido dada de outro ângulo.

Navalny, Golunov, o Centro de Yeltsin, RBK, Kommersant, Novaya Gazeta, Meduza, Roizman, Kasparov, Kasyanov, Gorbachev, Solzhenitsyn – a América certamente tem muitos recursos à sua disposição, mas todos eles sofrem do mesmo problema: eles são concebidos para fazer os povos ocidentais odiarem o mundo russo (duvido que os russos se importem com o que ratos como Jeremy Hunt pensam), mas eles não abalam perceptivelmente a situação interna na Rússia. E afinal de contas, são os próprios russos que determinam a legitimidade do governo russo, não Blogs do Joe em Coventry. Em consequência, a única esperança dos Estados Unidos quanto a paralisar o legado de Putin é criar uma identidade russa fantasma que possa desencadear uma guerra civil. Isto é tópico para um outro artigo, mas o leitor amigo da Rússia não deve começar a perder o sono de imediato, pois estou a falar acerca de processos que precisam de 10 a 20 anos antes de podermos começar a julgar se a tecnologia de golpe de Estado dos EUA adaptou-se ou não às necessidades da CIA.

Uma coisa é certa: na medida em que o Estado russo for viável e auto-suficiente, a inquietação social permanecerá para Washington apenas um sonho erótico, não uma realidade. E não está excluído que a situação socio-económica dentro dos Estados Unidos e/ou da UE ceda antes que qualquer algoritmo ianque começar a envenenar as raízes do Estado russo. Afinal, a América tem uma retaguarda, a Rússia também tem recursos de disseminação de informação e o S-400 não vai embora. E que espécie de tecnologia tem a China? Imagine se supercomputadores russos e chineses estiverem interconectados? Realmente não, porque eu não quero provocar dor de cabeça no leitor! 

19/Junho/2019


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