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quinta-feira, 21 de março de 2019

O “sucesso controlado” na oficina de João Gomes



expresso.pt



Abancada de trabalho, em madeira sólida, marcada pelos vincos do uso e pelo tempo, é a peça central da pequena oficina, onde a luz da manhã entra de mansinho através da janela envidraçada da parede do fundo. 

Cheira a carpintaria, um odor que condiz com as prateleiras em volta, repletas de latas de cera, colas e vernizes, ainda com as tampas a escorrer. E há em fundo um inesperado som de jazz, vindo de um rádio ou de uma coluna algures, não demasiado alto.
João Gomes entra. 

Traz café e, mal pousa os copos, guia-nos o olhar, apresentando os trabalhos em volta. São todos seus: uma cadeira cuja forma nos devolve a forma do tronco velho e robusto de onde nasceu, um tampo que há-de ser uma mesa, composto de restos de madeira de várias cores, e umas quantas tábuas da castanho que vai buscar, desiguais na forma, mas sólidas na estrutura.
“São giras, não são?”, pergunta. 
Mas não espera pela resposta para garantir que “é importante fazer o que gostamos”, quase sempre vendo nos materiais não o que são, mas o que podem vir a ser.

CRIATIVIDADE E ENGENHO

A vida de João Gomes, 42 anos, antigo professor do primeiro ciclo, já deu muitas voltas. Voltas grandes, próprias de quem tem um temperamento irrequieto e gosta de se aventurar, sem obedecer a planos ou projetos de vida formais.

A sua arte de trabalhar a madeira é de alguma forma o fruto de muitas dessas andanças. Do trabalho em bairros sociais, por exemplo, ficou a capacidade de fazer muito tendo pouco, sabendo colocar a criatividade e o engenho ao serviço do que faz falta. 

Natural de Pernes, no Ribatejo, João chegou a dar aulas em Angola, para onde foi dar formação a professores, e viveu algum tempo na Irlanda, antes de voltar para Portugal há uns anos e se fixar em Galegos (perto de Marvão), o seu endereço atual.

“Não tenho propriamente uma marcenaria ou carpintaria”, explica. “É um trabalho de artesão, que obedece a um conceito, sem o tipo de requinte ou acabamentos próprios de um produto com outra natureza.” Esta foi a principal razão para desistir de abrir uma loja na Internet: “É difícil quando cada peça é uma peça e não se tem nada igual, em série, para mostrar”.
O primeiro contacto de João com o artesanato não aconteceu, porém, em Galegos, onde chegou influenciado por um amigo irlandês. Começou antes, ainda no Ribatejo, onde o trabalho artesanal era vendido barato, pouco valorizado, sendo aceite como normal que “mestres com 15 e 20 anos de experiência ganhassem três euros por hora”.

Percebi que tem de ser “o artesão a fazer o seu preço, porque não faz sentido trabalhar para não ganhar nada ou, pior, quase para perder dinheiro”, sublinha.
Já teve projetos um bocado assim, como o que chamou Azeitona. Fazia carrinhos de madeira de oliveira, prontos para os miúdos montarem. “Era giro”, mas “perdia muito tempo e vendia barato”, pelo que desbravou outro caminho.

No início, como não tinha dinheiro para investir em materiais, começou por aproveitar o que estava a ser deitado fora. Onde muitos viam tábuas velhas ou móveis irremediavelmente perdidos, João imaginava novas formas. “O conceito de recuperação pegou”, conta, a ponto de agora contar com vários clientes fixos, “sobretudo ‘outsiders’ e estrangeiros”, que lhe confiam as suas encomendas e acabam por ir voltando.

UMA QUESTÃO DE LIBERDADE

O seu trabalho vai deixando marcas em redor. 
Na aldeia são suas as tabuletas de madeira que indicam as direções aos visitantes, assim como há nas imediações um parque com autocaravanas cujo interior foi ‘descascado’, para serem revestidas a madeira, personalizadas com o seu ‘toque’.

Não tem a ambição de fazer crescer o negócio ao ponto de o volume de trabalho o escravizar ou pressionar para fazer de outra forma. “Quero um sucesso controlado”, que não o obrigue a passar o dia inteiro fechado na oficina. Percebe-se que é também uma questão de liberdade. A de fazer o que quer, como quer, ao seu ritmo.
Por causa da mania de ver nas coisas o que os outros não veem, João Gomes tornou-se proprietário há pouco tempo. Comprou uma parcela pequena de terreno, onde mal se podia entrar, tantas eram as ervas. “Por aqui olha-se para a terra e só se vê couves e batatas.” 

Ele lembrou-se de criar um cantinho turístico, onde montou os alicerces para fazer nascer um yurt (uma espécie de cabana circular como a dos nómadas na Mongólia). Está agora desmontado, a pequena cozinha escondida, a casa de banho pequenina um pouco mais ao fundo. Mas é visível a estrutura, os paus compridos de madeira, alinhados, bem no meio da natureza, a servirem de suporte.

“Ainda é grande, tem aqui trabalho. A madeira não precisa de tratamento, não apodrece?” A resposta surge pronta, acompanhada por um sorriso e um genuíno encolher de ombros: “Talvez. Mas eu não sofro muito com o futuro.”

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