AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

sábado, 23 de março de 2019

A impressionante história do índio Yanahin e suas fotos





Yanahin com sua Canon e zoom novo

Há muitos anos sou amigo do cacique Aritana, capitão dos índios Yawalapiti, e seu irmão Piracumã, nomes importantes e respeitados nas aldeias do Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso. Fotografei Aritana ainda jovem, quando foi tema de novela em horário nobre da hoje extinta tevê Tupi, nos idos 1978 e 9. Muitas vezes dirigi minhas câmaras para o líder dos yawalapitis durante as cerimônias do Quarup, a celebração que os indígenas fazem para lamentar os mortos de cada ano.
O tempo passou. Um dia eu soube que Aritana não estava bem de saúde, internado no Hospital Universitário de Brasília. Liguei para o Piracumã, que o acompanhava, e fui visita-lo. 
Encontrei-o no leito da enfermaria bem alquebrado, fraco, mas com bons sinais de recuperação. Meses depois, Aritana telefonou-me para agradecer a solidariedade da visita convidou-me para a próxima festa do Quarup que em breve seria realizada em sua aldeia.
A vista aérea da aldeia Yawalapiti, na beira do RIo Xingu
Tive, então, a ideia de ir à festa em companhia de três amigos fotógrafos: o Evandro Teixeira, o Igo Estrela e o Rogério Reis e a esposa, Maíra. Convidados pelo grande chefe Yawalapiti, conseguimos autorização da Funai para nossa presença. Nos cotizamos para alugar um pequeno bimotor e voamos para lá, os cinco. Bonita viagem pelo céu do Centro-Oeste.
Após duas ou três horas de voo, pousamos na pista empoeirada do Posto Leonardo, a “capital” do Parque do Xingu. Sete quilômetros separam o Posto Leonardo da aldeia Yawalapiti. Por estar atarefado com a organização do festival, Aritana e Piracumã não se lembraram de enviar um carro para nos transportar do Leonardo até a sede de sua aldeia. Aliás, uma belíssima aldeia.
Nossa chegada: sob a asa do bimotor na pista de pouso do Posto Leonardo










E é justamente aí que entra em cena o personagem central dessa história: o surpreendente e bem humorado Yanahin Matala Waurá. E que terminará de maneira realmente surpreendente. Figuraça.
Assim que pousamos no Posto Leonardo, Rogério e Maíra, Igo Estrela, Evandro Teixeira e eu nos sentamos à sombra da asa do bimotor que nos levara, em busca de uma solução para chegarmos até os yawalapitis. Foi quando se aproximou de nós o Yanahin, um guerreiro da etnia Wuará, uma das 16 nações que habitam o território do Xingu. Ofereceu-nos carona em seu jipe Toyota, com o qual trabalhava nas cidades vizinhas do parque – Canarana, Xavantina, Gaúcha do Norte – fazendo fretes para amealhar renda.
Porém, para nos levar, precisava que lhe déssemos “duas onças” para abastecer o automóvel. Duas onças?, perguntamos. Yanahin, então, sorrindo, nos disse:
– Como pode vocês da cidade grande e que são fotógrafos não conhecerem nem perceberem que há uma cédula da moeda Real com a imagem de uma onça pintada no seu verso? Com certeza, também nunca repararam que na de 100 reais há um peixe. Na de 20, um macaco e, na de 2, uma tartaruga. 
Realmente. Os cinco forasteiros nos olhamos e entendemos que o trajeto nos custaria duas “onças”, ou seja um par de notas de cinquenta reais. Interessante. Yanahin sabia o valor de cada nota não pelos números ou pelo valor monetário que elas têm, mas pelos animais da fauna brasileira impressos nelas.
Embarcamos no jipão do Yanahin e lá fomos nós pela estradinha sinuosa de terra a caminho da aldeia Yawalapiti. 

No caminho, nosso personagem botava mais atenção nas nossas câmaras que propriamente na trilha de areia. Curioso, interessado nas máquinas fotográficas. Olhava, tocava, sorria para as Nikons de Rogério, as Canons de Evandro e Igo e nas minhas Leicas. Todas modernas, digitais, com objetivas zoom, angulares, teles.
Evandro e Maira no tronco de árvore, no Quarup em homenagem dos Yawalapitis a Darcy Ribeiro











No caminho, a bordo da boleia dupla do Toyota conduzido pelo descontraído guerreiro waurá, cruzamos com vários índios que, a pé, de bicicleta ou moto, também se dirigiam à festa. 

Eram famílias, crianças, mulheres com filhos no colo, velhos, moças, grupos, enfim, de índios kamaiurá, awetí, mehináku, txicão, nafkwá, matipu, suiá, kuikuro, suiá, kalapalo…
Enfim, chegamos. Aritana estava atarefado e preocupado com a organização do Quarup. Orientava seu pessoal onde cada tribo visitante deveria montar suas barracas e redes de dormir. Cuidava da movimentação de quem chegava de canoa à beira do rio. Conferia a grande fogueira onde peixes eram assados para serem distribuídos aos índios das várias etnias. 

É uma tradição. Os yawalapitis, sob seu comando, tinham que dar demonstração de ser bons anfitriões. Piracumã nos recebeu com festa. E destinou para fixarmos nossas barraquinhas o quintal de sua própria casa, à sombra das mangueiras.
Evandro Teixeira recebe ajuda para montar sua rede de dormir na aldeia Yawalapiti









Yanahin nos ajudou em tudo. 
A desembarcar nossa tralha, a montar nossas barracas de plástico, amarrar as redes de dormir no vão de duas árvores. Pouco depois, o cacique Aritana veio nos dar boas vindas. E pediu a Yanahim que nos servisse de cicerone. 

Nem precisava. Sua curiosidade com a fotografia era tão grande que parecia ter encontrado pessoas certas para ajuda-lo a realizar um sonho: ser fotógrafo.
O cacique Aritana na festa para Darcy Ribeiro









A tardinha caiu, a noite chegou e por fim a festa começou. Evandro Teixeira, Igo Estrela e Rogério Reis e eu fomos a campo. No centro da aldeia, ao pé de três troncos de árvore fincados no chão, as famílias choravam os parentes mortos naquele ano: um velhinho que faleceu por insuficiência respiratória. 

E, acho, um menino que não resistiu a uma picada de cobra. O terceiro tronco era em homenagem ao sociólogo falecido em 1997, Darcy Ribeiro, aliás,com os irmãos Villas-Boas, idealizador do Parque do Xingu.
Cenas impactantes, os guerreiros de várias tribos correndo em fila portando grandes varas em fogo. Uma cerimônia impressionantemente carregada de sentimento, visual surreal e diferente. 

E o Yanahin, sempre ao lado de um de nós, atento. Percebia-se que não tinha lá muita vocação para a dura vida de guerreiro. Observando-nos fotografar, curioso no resultado de cada clic.
Rogério e Maíra montam a barraca de dormir no quintal de Piracumã








A noite foi longa, com choro e réquiem pela morte dos dois índios naquele 2012. Lamento e dor. Nos primeiros raios daquele domingo de nuvens limpas, lindas, enfeitando o azul firme da floresta, as lágrimas cessaram e cederam lugar à alegria. Agora era a vez das danças e às lutas do Uka-uka, um torneio entre os guerreiros pintados com as cores de cada tribo. 
Um verdadeiro espetáculo de cores e movimento que propiciava muitas fotos.
Yanahin não resistiu. Pediu-me que lhe permitisse fazer ele mesmo um clic com minha câmara reserva. Evidentemente, concordei. Sua alegria era indisfarçável. Pendurou a moderna digital no pescoço, encheu-se de regozijo e desandou a apertar o disparador. Para cada sequência de disparos, um sorriso e o consequente gesto de olhar o visor traseiro da máquina para conferir o resultado da cena. Ficou embevecido. Sentiu-se fotógrafo.
Yanahin com a Canon digital com a qual fez os primeiros clics.
Fim de festa, hora do retorno. Agradecemos a hospitalidade dos irmãos Aritana e Piracumã e demos parabéns pela perfeita organização do Quarup. Embarcamos no possante jipe do nosso novo amigo waurá de volta ao Posto Leonardo. Evandro Teixeira, Rogério Reis e Maíra para o Rio, onde moram. Igo e eu, para Brasília. 
Antes da decolagem, porém, Yanahin perguntou-me:
– Brito, rapaz, me diz seu e-mail? Você tem FaceBook? Vou trocar meu jipe Toyota por uma câmara, fazer umas fotos e te enviar para sua apreciação. 
E não duvide de minha capacidade. 
Não se esqueça!
Velho índio na construção de uma maloca. Foto Yahanin Matala Waurá
Caravana: famílias da tribo Matipu seguem a pé para outra aldeia
Bem, essa é a primeira parte da interessante história do figuraça Yanahin Matala Waurá. No próximo texto conto o que sucedeu e no que resultaram os clics de Yanahin com a câmara digital que trocou pelo carro.


A foto de Yanahin mostra uma cena comum em sua aldeia: índios com peças de cerâmicas se dirigem para a grande oca em construção. Prestemos atenção na discreta presença das sandálias de borracha e nos tênis de tecido nos pés dos dois Waurás no primeiro plano. E também na panela de alumínio e no retalho de plástico junto à cabana de palha.
13 Contei no texto anterior, a impressionante história do índio Yanahin Matala, nascido na aldeia Waurá, no Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso. Eu disse de como os amigos fotógrafos Evandro Teixeira, Igo Estrela e Rogério Reis e a esposa Maíra, e eu o conhecemos, quando fomos documentar a festa do Quarup, em 2012. No capítulo de ontem discorri sobre o nosso personagem, aquele que nos levou em seu possante Toyota da pista do Posto Leonardo à aldeia Yawalapiti – do cacique Aritana e seu irmão Piracumã. Relatei que o Yanahin, apaixonado por fotografia, trocou a direção do jipe por uma câmara digital.
Aritana, à esquerda, e o irmão Piracumã, ao centro, com um guerreiro kuikuro, na aldeia Yawalapiti









E como eu soube disso? Ora, um belo dia, um ano depois de nossa ida à aldeia Yawalapiti, adivinhe quem fez contato comigo no FaceBook, adicionando-me como amigo? Yanahin, o próprio. 

Aquele índio fissurado em fotografia e que pedira meu endereço de e-mail. Como não havia me esquecido de tal personagem tão diferente, comemorei e perguntei-lhe na janelinha de chat como ia a vida no Xingu. Respondeu-me:
– Brito, sensacional. Vida nova. 
Estou feliz com minha Canon 60D, digital. Dois zooms. Equipamento usado, mas bom. O suficiente para me permitir fazer essas fotos que acabei de enviar para seu e-mail. Queria que você as avaliasse.
Caramba! A princípio pensei tratar-se de uma brincadeira do amigo Evandro, sempre armando situações pilhéricas. Na mesma hora abri minha caixa de mensagens do Gmail. E lá estavam várias fotos de autoria do mais novo fotógrafo do Brasil. Provavelmente o primeiro índio colega de profissão, o Yanahin Matala Waurá.
Festa de Natal na aldeia, na foto de Yanahin Matala
Como o Yanahim me havia pedido avaliação de suas imagens, não neguei meu modesto auxílio. Observei cada uma de suas fotos. Algumas com acerto e outras com problema de foco e luz. Atendi, então, a seu pedido para orienta-lo à distância, por meio do FaceBook. Isso mesmo, e por e-mail. Porém, indaguei-lhe como ele conseguira acesso à Internet. 
E sua resposta qual não foi:
– Brito, amigão, acesso a rede por três maneiras. A primeira na cidade, em Canarana, e a segunda no Posto Leonardo, que é a sede da Funai no Xingu. Mas as conexões lá são lentas. Por isso prefiro conectar-me em minha aldeia. É limpa, veloz e segura.
Danado aquele Yanahin. Arranjou uma maneira de as antenas de satélite de sua aldeiazinha no coração do distante Parque do Xingu oferecerem não somente sinal de tevê, mas também de Internet. Com ajuda de seu irmão Apapauá, professor de biologia, formado na Faculdade do Índio de Barra do Bugre, em Mato Grosso, conseguiu instalar equipamento que lhe possibilitou alcançar a rede mundial de computadores.
E foi usando a comunicação pela Internet que passei bom tempo orientando o Yanahin. Dei palpites e sugestões para abordagem de um tema em que ele era, e é, privilegiado pela presença permanente e ter um olhar digamos diferente dos fotógrafos forasteiros, como os amigos Rogério Reis, Igo Estrela, Evandro Teixeira, eu mesmo e outros mais.
Porém, intrigou-me um detalhe: de que maneira Yanahin dispunha de energia elétrica para pôr em funcionamento seu computador e, sobretudo, manter carregadas as baterias de sua câmara digital?
– Simples. Conseguimos com o pessoal do ISA-Instituto Sócio Ambiental, um conjunto de placas solares com capacidade para armazenar energia para os aparelhos eletrônicos de nossa aldeia, a Piyulaga Waurá. Aqui nunca falta luz, porque aproveitamos o brilho do sol.
Na aldeia de Yanahin, a antena que permite conexão com a internet via satélite. Também a placa de capitação de energia solar. E, ainda, o telefone comunitário que serve a todos os índios na aldeia Pyiulaga. Lá, alguns casebres de alvenaria com telhado de zinco, e cercas de arame farpado se misturam com árvores frutíferas.
Bem, com nosso Yanahin agora dispondo de condições para realizar seu sonho de fazer fotografias, passei dialogar com ele regularmente pelo Face.
Ressaltei a importância de ele registrar as cenas do dia-a-dia das aldeias. 

Os velhos, as mulheres, as festas, os guerreiros, as crianças, o trabalho nas roças, as construções, a comida, os costumes, a pesca nos rios e lagoas. Enfim, tudo que pudesse transformar em imagem. O fiz entender que tinha chance ímpar de captar referências para estudo sobre os índios.
Outro olhar de Yanahin: com a energia produzida por placas solares, o freezer no meio da oca e à disposição das mulheres índias.
O jogo da força, ou o cabo de guerra, no centro da taba. Foto do Yanahin
Chegando à aldeia Yawalapiti









Ao longo do tempo, porém, à medida que ia me enviando e-mails, percebi que somente as minhas “aulas” à distância eram insuficientes para a prática de um ofício que envolve técnica, processo de certa forma complexo. 
Orientei ao Yanahin que buscasse ajuda também com o Renato Soares, um dedicado fotógrafo que há anos retrata a vida dos povos do Xingu e que está sempre presente nas aldeias.
A dança do Peixinho Lambari, segundo Yanahin
Bom eu dizer que enfatizei sempre a sua liberdade para retratar o que bem desejasse, o ângulo, o momento, o enquadramento, tudo segundo seu ponto de vista. Tive, em minhas “aulas” via Internet, o cuidado e cautela para não deixar contaminar seu olhar com uma possível interferência direta minha. Me adstringi a continuar lhe dando ânimo para realizar seu trabalho, sem influência intrínseca no conteúdo. 

Nada de alterar a direção do que Yanahin queria comunicar com a pureza do seu enxergar, seu conceito de estética. Chamava sua atenção para dosar a quantidade de fotos internas, dentro das ocas, com as externas, na praça das tabas.
Ao pôr-do-sol, a oração coletiva dos lutadores Kalapalo. Foto Yanahin Waurá
Mãe amamenta a filha bebê. Foto Yanahin Waurá
Torço para que seu trabalho interesse a alguma entidade, fundação, universidade, grupo de estudos, de sociólogos, instituto de antropologia, algo assim. Deveria transformar-se em livro. Ou exposição, massa de trabalho para etnólogos, por exemplo.
Formação de professores da cultura indígena na aldeia Kuikuro. Yanahin Waurá
O certo é que daquele Quarup de 2012 até hoje muita coisa mudou. A começar pelo destino do próprio Yanahin. 

Deixou de ser motorista e tornou-se um baita fotógrafo. Piracumã, o sábio irmão do cacique Aritana Yawalapiti, faleceu, vitima de um infarto. O lendário Takumã, chefe dos Kamaiurá, outra aldeia próxima do Posto Leonardo, também morreu. E aquele frívolo Yanahin Matala deu novo rumo à sua vida.
A pose do cacique Kamala, na Aldeia Piyulaga: imagem da hieraquia. Foto Yahanin Waurá
Depois do “empurrão” que lhe demos na tribo do cacique Aritana, de posse de uma Canon 60D com dois zooms usados, mas bons, e com acesso à Internet em sua aldeia, Yanahin estava realizando o antigo sonho de ser fotógrafo. Ampliou seus contatos com pessoas para ajuda-lo.
– Minha escolaridade é pouca, só fiz o ensino fundamental, na escolinha do Posto Leonardo. Não tenho suficiente fluência na língua portuguesa para escrever e por isso pedi ao Hugo Meirelles, da Funai, que elaborasse um projeto junto ao Ministério da Cultura, que concede bolsa de estudo na área de antropologia.
A brincadeira das crianças Kamaiurá durante a tempestade de areia. Foto Yanahin Waurá
Com os quarenta mil reais que recebeu da bolsa de cultura, Yanahin equipou-se melhor. Comprou câmara nova, com zoom zerado. Dedicou-se com afinco às fotos. Um belo dia apareceu em sua aldeia uma equipe de jornalistas da Coreia.
Convidado pelo governo da Coréia, Yanahin faz pose em Seul, com a temperatura beirando a zero grau














Ficaram encantados com a desenvoltura do nosso personagem e a qualidade de suas imagens. Convidaram-no para apresentar suas fotografias num encontro de cultura de raças em Seul. 
O mesmo aconteceu com o pessoal da Rádio e TV da França.
E lá foi o nosso Yanahin mostrar suas fotos longe do Brasil. Esteve também no Paraguai. E só não foi para os Estados Unidos porque não lhe foi concedido visto no passaporte.
O jovem do Xingu e árvore medicinal. Foto do Yanahin
Festa na aldeia. Yanahin fez questão de incluir na cena os utensílios de aluminio e os indios usando camisa polo


Yanahin, agora com a câmara que possibilita fazer vídeos
Amigos, essa é a terceira parte da fascinante história do índio Yanahin Matala Waurá. No primeiro texto, contei que fui fotografar a festa do Quarup na aldeia Yawalapiti, liderada pelo antigo amigo cacique Aritana, em companhia de três colegas, o Evandro Teixeira, o Igo Estrela e o Rogério Reis. 

Narrei ainda: para chegarmos à aldeia do capitão Aritana contamos com a ajuda do Yanahin, que nos levou em seu jipe Toyota do Posto Leonardo, a “capital” do Parque Nacional do Xingu, até a tribo onde se realizava o réquiem dos mortos daquele ano, 2012, e o festival de danças e lutas. 

Eu disse do imediato fascínio pela fotografia que o Yanahin teve ao reparar em nossas câmaras digitais.

Reencontei Yanahin Waurá na Conferência de Saúde Indígena, em Brasília










Yanahin ficou tão impactado com estar próximo de fotógrafos que o incluímos em nosso grupo durante nossa breve estada na aldeia e até lhe facultamos fazer os primeiros clics de sua vida. Contei que nosso personagem conseguiu equipar sua aldeia de acesso à Internet e, usando e-mails e o FaceBook, passei a incentivar fizesse fotos dos povos do Xingu. 

As imagens que produziu acabaram levando-o a mostra-las em conferências no Exterior, como exemplar modelo de abordagem e documentação visual de um tema tão rico quanto é o modo de vida dos índios.

A foto de Yanahin mostra uma rara cena da cultura dos índios do Xingu: meninas reclusas após a primeira menstruação. Elas ficam pelo período de 2 a 4 anos dentro da maloca da família, privadas de ver a luz do sol e de andar pela aldeia.


No Xingu, os índios dançam para espantar os maus espíritos após a eclipse lunar. O tacape pintado com tinta a óleo e as sandálias de borracha denotam a chegada à aldeia de elementos alheios à tradição. Foto Ianahin Matala

Muito bem, prosseguindo: semanas atrás encontrei em minha caixa de mensagens do Gmail novas fotos da sequencia que Yanahim sempre me envia. Fiquei impressionado com a qualidade de suas imagens, a importância antropológica que o guerreiro da tribo Waurá estava a produzir. Reconfortei-me ao ver que as “aulas” que lhe dava pela Internet estavam mesmo surtindo efeito bem positivo. Em nossas rotineiras conversas pela Net, perguntei-lhe como estava administrando sua vida. Disse-me:
– Divido meu tempo da seguinte maneira: durante a semana, de segunda à sexta, viajo pelas aldeias do Xingu porque faço parte da equipe de atendimento de saúde aos meus irmãos indígenas. Sou auxiliar de enfermagem. Somente três aldeias têm ligação por estrada de terra. As outras temos de ir de barco ou de avião, como é caso do Tanguro, que é bem isolada. 
Algumas delas levamos até um dia navegando pelo rio. Mas é a oportunidade que tenho para retratar detalhes e o cotidiano das etnias que habitam o parque.
– Daquele encontro que tive com vocês, lá em 2012, até hoje já enchi nove ou dez HDs de 1 terabyte, cada um, com fotos em alta resolução. 
Não sei o número preciso de clics. 
Mas imagino estar conseguindo retratar segundo meu ponto de vista tudo que vejo por aqui, a cultura do meu povo.

O velho pajé tece seu cocar de penas de arara com paciência. Foto Ianahin Waurá.

O dia de sábado reservo para a família. Sigo a tradição dos waurá. Aqui você pode ter até duas esposas, mas fica obrigado a garantir a alimentação e a formação da família. Casei-me com a Kaiana e a Mapalu. Com elas tenho dez filhos e já netos. E, ainda, uma filha que adotamos quando ela ficou órfã. Tenho muitas responsabilidades e por isso, aos sábados vou para a roça. Planto mandioca, abóbora, banana, tudo. 
E mesmo assim, não deixo de levar minha amiga Canon 6D.

Yanahin e o futebol na aldeia: juiz e fotógrafo. O logotipo que você vê em várias de suas fotos são, como ele mesmo diz, “uma garantia de que foi feita por mim. Eu mesmo criei essa marca. Fiz questão de colocar as letras iniciais do meu nome e fazer referência ao sol, a terra e à agua”

















O domingo, porém, é dia de descanso do guerreiro. Descanso, não. Na verdade, correria. Em alguma aldeia do Xingu há sempre uma partida de futebol entre os times das tribos. E adivinhe você quem é o juiz dos jogos? Claro, Yanahin Matala. Diz-se o melhor árbitro que há por lá. Justo e preciso, em cima de cada jogada. Porém, apito na boca e máquina fotográfica no pescoço.
– Às vezes, confesso, me perco. Ao invés de ficar atento às faltas, aos impedimentos ou a um gol, desvio minha atenção para retratar um lance. 

A torcida e os atletas já sabem. 
Aceito a convocação para mediar o jogo, mas meu objetivo principal é fotografa-lo de perto, dentro do campo. Em compensação, quando tenho alguma dúvida sobre um lance, consulto na hora a foto que fiz com minha digital. 
É o meu replay, como na tevê.

Yanahin: “As mulheres não me deixaram jantar com elas. Então fiz meu próprio churrasco na fogueira de casa”













Perdi, porém, contato com o Yanahin por uns bons três meses. Semanas atrás, liguei para o “orelhão” instalado no centro da aldeia Piyulaga, o telefone comunitário da tribo Waurá. 

Eu queria tomar o pulso do andamento de seu trabalho. Yanahin disse-me que andou ausente porque estava em Paris. Em Paris? Sim, França. Uma equipe de tevê francesa havia ido ao Xingu e acabou também conhecendo suas fotos. E lá foi nosso personagem para mais uma apresentação de suas imagens.
Não encontrou tempo na agenda para visitar o Museu do Louvre. Porém, levaram-no para conhecer o Palácio de Versailles, residência dos mais importantes reis da França. 

Achou tudo muito bonito, mas bem diferente da realidade que encontra diariamente na selva. Ficou impactado com as pinturas expostas na parede e viu a importância que os artistas deram em reproduzir o modo de vida da época.
– Assim como grandes artistas retrataram os costumes da corte francesa, quero fotografar o cotidiano de minha aldeia. Já percebi que fazer o mesmo ao retratar meu povo em minha região é realmente importante.  Me prometi que um dia seria fotógrafo. 
E tive a sorte de encontrar vocês no campo de pouso do Posto Leonardo com seu maravilhoso equipamento. 
Yanahin adorou Paris, Assunção e Seul. Achou muito belo. Mas garante que nenhuma beleza supera o espetáculo que a natureza oferece na beira do Rio Xingu, quando o vermelho do sol se mistura com o azul das nuvens e contrastam com o verde da floresta. Aliás, foi inspirado na água, na terra e no sol que ele mesmo bolou o logotipo que põe no canto de suas imagens.
Aos poucos, Yanahin vai compondo a sequencia de seu trabalho. Considera que as crianças cantando karaokê e tocando violão são uma agressão à cultura dos índios. Mas comemora que elas continuem tendo aulas dos idiomas indígenas em suas aldeias.

Mulheres do Xingu na cidade: vestidos longos e com colares de miçanga. Repare no aparelho de ar condiionado afixado na parede e nas janelas de vidro da casa de alvenaria. Foto do Yahanin
Jovem mãe da tribo Kalapalo: vestido de tecido de loja no dia-a-dia da aldeia. Foto Yanahin Waurá
Mulheres usam vestido, mas mantêm a tradição de contar os grãos de pimenta. Foto Yahanin

Em nossos contumazes diálogos pelo FaceBook, disse-me que quando pediu duas “onças” para nos levar à festa do Quarup da aldeia Yawalapiti não pensou no par de notas de cinquenta reais como vantagem financeira. Era somente para abastecer de gasolina o jipe que nos transportou e ajudou a mudar o destino de sua vida.

Evandro Teixeira recebe ajuda para montar sua rede de dormir na aldeia Yawalapiti










– Ganhei três presentes. O primeiro, a chance de fazer os primeiros clics com uma câmara digital. O segundo, o incentivo para fotografar. E o terceiro, a escadinha de alumínio que Evandro Teixeira me deu como lembrança. 
É um troféu que uso até hoje para subir e tirar fotos de cima para baixo.
– Durante o desenvolvimento desse trabalho, vi que a questão indígena é muito mais ampla do que parece. 
Fico preocupado com a invasão do sistema de vida dos brancos de maneira danosa na cultura dos povos da floresta. Por esta razão, procuro incluir em minhas fotos o limite dessa convivência: a necessidade das maravilhas da tecnologia do mundo moderno com as tradições indígenas. Tenho o cuidado de incluir em minhas fotos utensílios industrializados, que denotam essa invasão. Não posso condenar isto nem absolver. Apenas tento mostrar. Importante que as pessoas percebam a dosagem de benefício e malefício.

Yanahin fotografa os meninos índios do do Xingu na aula de tae kwon do numa academia de Canarana
Uma das 52 torneiras da aldeia de Yanahin. Água potável do poço artesiano. Os Waurá deram o nome das torneiras de Javari. Então, pensei que ele quisesse dizer “chafariz”. E ele me corrigiu: – Não é chafariz. É Javari mesmo, o nome de um dos rios de águas belas aqui da região.
Dança do Peixe, aldeia Aweti. Yanahin Waurá

Muito provavelmente haverá quem ponha defeitos, aponte imperfeições e faça crítica às fotos do nosso personagem. Com certeza será um equívoco, embora democrático, fazê-lo. Porém, seu trabalho vai muuuuito além disto. É um tremendo documento de parte da civilização. Antes de possíveis comentários negativos devem ter o cuidado de fazer uma leitura mais atenta, que vá além de somente do rigor estético, considerando os elementos e seres que constam das fotos. 
É preciso ler detalhes para não fazer cometários superficiais. Mas é como disse-me certa vez o próprio Yanahin:
– Mais importante para mim não é a simples beleza de uma foto, mas o as informações que ela traz.
Enfim, amigos, aí estão algumas fotografias do caro Yanahin. Um autêntico documento, surpreendente e verdadeiro. Não se trata de serem ou não “bonitas” suas fotos. Trata-se de um registro puro e eivado de realidade. Como sempre digo, uma fotografia é. 
Uma fotografia . E acabou-se. 

As fotos de Yanahin são isso aí: um olhar de índio sobre os próprios índios. Simples e direto. Uma maravilha de visão sobre um tema antigo e que é sempre atual: os povos da floresta. 

É um farto material para estudo de senhoras e senhores, doutoras e doutores no assunto, que têm opinião, olhares e achares sobre a devida integração dos povos da floresta à “modernidade” das grandes cidades.
Não vi, evidentemente, todas as imagens desses 10 terabytes de autoria do Yanahin. Mas tenho certeza que são um garimpo repleto de preciosidades. Um rico documento à disposição de a quem interessar possa.

Yanahin, agora com a câmara que possibilita fazer vídeos

– Brito, rapaz, agora estou filmando, fazendo além de fotos, vídeos com a minha nova câmara, uma Canon Mark III 5D. Uma maravilha. 
E eu, devotado em que Yanahin não corte a sequência de seu trabalho fotográfico, disse-lhe que achava interessante ele continuasse com a atenção voltada para fotos. 

Ponderei que, apesar de ser igualmente fascinante o vídeo, com imagens em movimento, iria mudar o rumo de seu trabalho. E veja só o que me respondeu o irrequieto Yanahin:
– Brito, amigo, você que está aí na cidade grande não sabe nada. Eu, que estou no distante Xingu, posso afirmar: o mundo mudou.
E como, caro Yanahin!

Outros índios seguem o exemplo de Yanahin e fazem fotos do Xingu
O registro do índio Aramuti Kayabi, seu amigo de infância, na cidade de Sinop: marcas de tinta de urucum no rosto, cocar de penas e colar de miçangas, óculos escuros, roupa de grife, cigarro de filtro e telefone celular. Foto Yanahin Waurá
Aldeia Piyulaga: foco do índio-fotógrafo

Por
 Orlando Brito

https://osdivergentes.com.br

Sem comentários: