Entrevista a Graça Fonseca, secretária de Estado da Modernização Administrativa
Em julho, quando três colegas de governo apresentaram a demissão devido ao caso das viagens da Galp, citou o filósofo Daniel Innerarity no Facebook: "A política, especialmente quando queremos distingui-la de outras atividades, exige duas coisas: ter-se dado conta de que o seu terreno próprio é o da contingência; uma especial habilidade para conviver com a deceção."
Viver é aprender a lidar com a deceção; pela sua especial exposição e aceleração a política exigi-lo-á mais ainda. Será essa consciência, além do cabelo grisalho que lhe acrescenta anos aos 46 feitos a 13 de agosto, a dar da secretária de Estado da Modernização Administrativa uma impressão de serenidade?
Certo é que chegou relativamente tarde à política "ativa": não a atraiu na universidade nem a puxou para as juventudes partidárias - não tinha esse feeling, diz. Ativismo, até 2000, quando entrou no PS puxada pelo colega de faculdade João Tiago Silveira e por Ana Catarina Mendes, só nos direitos humanos: foi voluntária na APAV e na Amnistia Internacional. E, no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, dirigido por Boaventura Sousa Santos, onde trabalhou de 1995 a 2000 (numa equipa da qual faziam parte o bloquista José Manuel Pureza e a atual ministra Maria Manuel Leitão Marques), interessou-se pela aplicação da justiça. Mais concretamente a justiça na justiça: a sua tese de doutoramento, apresentada em 2010, é sobre a discriminação dos estrangeiros, mais vezes sujeitos a prisão preventiva e condenados a penas mais pesadas.
Do CES e do estudo da Justiça passou à ação, no respetivo ministério, então - em 2000 - liderado por António Costa. Foi aí que o conheceu e desde então o atual PM levou-a consigo para todo o lado: para o Ministério da Administração Interna em 2006, para a Câmara de Lisboa em 2007, para a lista de deputados por Lisboa nas legislativas de 2015. E para o seu governo, claro.
17 anos com Costa fazem dela membro do núcleo duro. Mas a primeira coisa que se descobre ao preparar esta entrevista é que a entrevistada deu muito poucas: das "grandes", esta é a segunda. Será a tal noção da contingência, aversão à exposição, ou as duas? Não é, certamente, timidez ou falta do que dizer. Pelo contrário; Graça Maria Fonseca Caetano Gonçalves, filha de uma física e de um engenheiro, licenciada em Direito e doutorada em Sociologia, evidencia um olhar próprio - apetece dizer independente - sobre o mundo. E coragem, muita.
Nesta semana, li um texto, escrito na sequência de Charlottesville, em que o ex-publicitário Pedro Bidarra diz que a esquerda está a perder para a direita porque esta usa as emoções enquanto a esquerda crê que as pessoas se conquistam com um discurso racional. Tem razão?
Não. Acho que não há racional-esquerda e emoções-direita. Falando de Portugal, não acho que este governo tenha usado fundamentalmente a razão. Pelo contrário, acho que tentou bastante despertar sentimentos positivos das pessoas, inclusivamente na forma como se relacionam com os outros.
Portugal está em contraciclo. A análise de Bidarra é mais global: tem a ver com a vitória de Trump, do brexit, com Le Pen. Aliás, a ressurgência da extrema-direita e dos movimentos nazis já a preocupava em fevereiro de 2015, falou dela numa entrevista ao Público. Como explicar racionalmente isso?
Todos esses fenómenos dos quais já falava nessa entrevista têm a ver com a relação com o outro e uma insegurança ontológica muito forte que existe há muitos anos nas sociedades ocidentais. Desde o início deste século que as pessoas vivem em permanente insegurança. Económica, no emprego, na habitação, nas relações pessoais, etc. E isso faz que o confronto com o outro, que percecionam como diferente ou que alguém promove como diferente, desencadeie nelas um conjunto de reações que são muito fáceis de explorar por parte de determinados discursos populistas.
Precisamente: o apelo ao medo, ao ódio.
Mas há uma racionalidade por trás, que tem a ver com a vida. Com as circunstâncias. Claro que se trata de apelar à parte emocional através do medo, estimular o medo através do outro. Mas não vejo um confronto entre razão e sentimentos. O que releva é aproveitar uma insegurança para a explorar contra o outro, através da razão ou dos sentimentos. Para mim essa discussão não é importante; o que é importante é saber qual o discurso que tem de se ter, seja à esquerda ou à direita, para combater isso, essas ressurgências. E acho que nem a esquerda nem a direita querem um regresso ao passado.
Isso não é contraditório com ter-se o líder do partido mais votado nas últimas legislativas, o PSD, a enveredar por um discurso xenófobo e a apoiar um candidato autárquico com um discurso racista?
Sim, é um discurso xenófobo que não tem nenhum sentido. Mas aí há outra questão: será que esse é o pensamento do partido? Tenho dúvidas. É que apesar de tudo as organizações permanecem e os líderes e as pessoas passam. E portanto para aquilo que seja o futuro do funcionamento da democracia em Portugal interessa qual é a posição dominante de um partido.
É ver o que sucedeu ao partido republicano nos EUA.
Certo. Mas o partido republicano acabou de impedir que o Obamacare fosse deitado no lixo. Claro que não vai funcionar sempre. É mais importante o conjunto de valores que apesar de tudo continuam presentes numa determinada organização do que aquilo que muitas vezes os líderes pensam ou dizem. Sendo que naturalmente tudo o que um líder diz tem um impacto enorme. Mas os líderes são, felizmente, sempre transitórios. O discurso de Passos não faz sentido nenhum, mas acho que o PSD não é aquilo. E creio que em Portugal há uma convergência no sentido de ninguém querer explorar estes fenómenos. Não consigo associar isso ao PSD.
Mas à exceção de Teresa Leal Coelho, candidata por Lisboa que se demarcou logo do discurso do candidato a Loures, e de Feliciano Barreiras Duarte no Expresso de sábado, não houve no PSD reações negativas em relação a esta nova linha do líder.
Sim, é verdade. Mas se calhar porque no PSD já ninguém liga muito ao líder. E o meu otimismo leva-me a crer que mesmo que um líder do PSD, um partido fundamental na democracia portuguesa, faça um discurso claramente xenófobo como aquele foi, os partidos portugueses continuam a ser não xenófobos estruturalmente, do ponto de vista do seu DNA.
Será? Olha-se para o Parlamento e que se vê?
Por não haver pessoas não brancas?
Por haver tão poucas. Há um deputado negro no CDS-PP, Helder Amaral.
Sim, é verdade. Não sei explicar muito bem esse fenómeno. Nos anos em que estive a estudar para o mestrado e doutoramento passei muito pela questão da imigração e integração. E na verdade os vários países têm tido modelos diferentes de integração e socialização das várias comunidades. Em Portugal, desde pelo menos 1995 - quando foi criado o Alto Comissariado para as Migrações e Minorias Étnicas e creio que pela primeira vez um programa eleitoral de um partido (o PS) integrou um conjunto de temas dizendo respeito à questão de nacionalidade, integração, etc. -, a política de integração esteve sempre muito focada nas questões económico-sociais: a questão geracional, dos filhos, a integração em meio escolar, o acesso à saúde e a bens públicos essenciais... A participação política, que é uma das dimensões fundamentais na integração em qualquer Estado, nunca foi tão trabalhada - e mal.
Mas há um estudo recente [de Cristina Roldão e Pedro Abrantes] sobre a forma como o sistema escolar discrimina os afrodescendentes.
Os estudos que li na altura da minha tese de doutoramento - que é de 2010 - diziam uma coisa que fazia muito sentido. Cotejando um aluno descendente de um cabo-verdiano com um aluno branco, aquilo que mais relevava para o sucesso escolar eram as condições socioeconómicas. A variável económico-social era muito mais preditiva do abandono escolar, do insucesso, do que a racial.
Havendo uma coincidência muito grande entre a cor da pele e um estatuto económico-social baixo, o estudo que cito despista isso e conclui que existe discriminação baseada na cor da pele. Mas é muito difícil estudar esta questão num país que não recolhe dados sobre cor de pele. Nem sequer sabemos quantos negros há em Portugal. É como se houvesse uma cegueira voluntária...
Há anos que se discute essa questão, se se deve ou não recolher dados. Mas é óbvio que existe na base, para o grupo dos não brancos, um conjunto de dificuldades de acesso nos estudos, nas universidades, que depois se repercute ao longo de todo o percurso, no acesso a determinado tipo de cargos ou trabalhos. Não consigo dizer de forma séria, na perspetiva de que não tenho dados para isso, de que tipo de discriminação e de dificuldades de acesso estamos a falar, se se trata de discriminações de base socioeconómica ou de outras. Não sei.
Mas podemos lá chegar por analogia.
Sim. E o que consigo ver é que num outro grupo, o das mulheres, a evolução da participação na política e em determinadas empresas, etc., foi feita sempre muito por instrumentos regulatórios. Primeiro as quotas nas listas eleitorais, agora nas empresas, e também no acesso a determinado tipo de cargos. Porque apesar de as raparigas terem maiores taxas de sucesso escolar e muito maior participação no ensino superior isso não tem tradução no mercado de emprego do ponto de vista de cargos de liderança. Podemos chegar à questão da outra discriminação por analogia? Tenho sempre dificuldade com essas analogias, até pelas variáveis individuais, sociais, demográficas, que as tornam difíceis.
Quando a sua tese de doutoramento conclui, com base em decisões entre 1995 e 2005, que o sistema judicial discrimina os estrangeiros, que retira daí?
Não temos dados em Portugal que não sejam de nacionalidade. O que se pode portanto analisar é que força preditiva tem essa variável no conjunto dos resultados. Na altura a Associação Sindical de Juízes reagiu dizendo que se tinha de ver o resultado com atenção... Mas usei um modelo matemático que é uma questão de probabilidades, não tem nenhuma subjetividade minha. No caso da justiça, até chegarmos à fase judicial há vários níveis de seleção. As condições económicas em que se vive, a zona onde se vive, toda a parte policial, depois ainda o MP e depois os juízes. E o percurso que fiz foi o de perceber qual o nível de seletividade. E percebe-se que todos esses níveis em conjunto contribuem para que os estrangeiros tenham muito maior probabilidade de prisão preventiva - por ser utilizado o argumento do perigo de fuga, sendo que na maioria nunca tinham vivido noutro país - e quando se é sujeito a prisão preventiva a probabilidade de prisão efetiva é superior. Tem-se pois um conjunto de mecanismos, em cadeia, que têm como resultado penalizar estas pessoas.
A maioria destes estrangeiros eram negros?
Eram. Havia alguns hispânicos. Mas a maioria eram negros e muitos, se não a maioria, nunca tinham vivido noutro país.
A conclusão não nos diz que o nosso sistema judicial é xenófobo?
Não. Na altura a grande questão na sociedade portuguesa era o tráfico de droga. E a grande motivação do sistema judicial era punir o tráfico. O que significa que os crimes relacionados com droga sistematicamente davam origem a penas mais elevadas. Hoje provavelmente já não é assim. Não posso pois dizer que o sistema judicial seja xenófobo; o que se passa é que, como qualquer outra organização, é muito vulnerável a influências externas.
Quem diz influências externas diz preconceitos.
Tudo. Qualquer sistema vive num país em que há uma perceção social dominante, um sistema de valores. E tudo isso como é evidente condiciona-o. E as organizações são compostas por pessoas com preconceitos, determinado tipo de valores, posições. Ninguém é neutral. O erro das organizações é não perceberem que são vulneráveis a influências exteriores e as pessoas que estão nos sistemas e organizações não perceberem que não são neutrais, ninguém é. E é preciso ter consciência disso para exercer autovigilância. Tenho de ser imparcial, mas neutral não posso ser, porque sou um ser humano, não sou um robô.
As pessoas não veem o outro que aparece na televisão como uma pessoa
Como secretária de Estado da Modernização Administrativa, tem corrido o país todo por causa do Simplex e do orçamento participativo. Com que ideia fica de Portugal?
Já fiz três voltas ao país. E fiquei com a ideia de que era bom que Lisboa percebesse que não é o país. Não falo do país dos lugares, mas do país das pessoas. E aquilo que para mim é muito extraordinário é a forma como as pessoas estão muito disponíveis e interessadas em que vão ter com elas. Claro que existe o afastamento das pessoas da política, etc. Isso existe e é muito presente em qualquer contacto com as pessoas, mas se sentirem que vais lá e estás disponível para as ouvir, isso muda muito a forma como elas se relacionam com o seu papel enquanto cidadãos. E pensam muito bem as regiões e o país.
As pessoas quem?
Aquelas com quem estive nos mais variados lugares, do Algarve a Alfândega da Fé. Há uma heterogeneidade forte na maneira como as pessoas olham para a cidade, para a região, para o país - percebe-se a diferença entre litoral e interior - e em termos de acesso a bens públicos, cultura, educação, isso muda de zona para zona e a forma como as pessoas percecionam os serviços públicos, o Estado, a democracia. Mas em geral são extremamente generosas e pensam muito bem o que querem. Em todos os sítios havia sempre pessoas com propostas e ideias que fazem todo o sentido - sobre a agricultura, sobre o que se foi perdendo ao longo dos anos e ali devia-se recuperar, sobre como se deve fixar pessoas, como recuperar artes e ofícios e transformar isso em mais-valia económica e emprego. A minha grande conclusão é de que as pessoas querem saber. Precisam é de sentir confiança de que o seu querer saber conta para alguma coisa. É a grande coisa que aprendi ao longo deste tempo.
Sente Portugal como um país em evolução em termos de mentalidades?
Não tenho grande grande termo de comparação, apesar de grande parte da minha infância ter sido passada em meios rurais. Nasci em Lisboa, mas parte dos meus avós era de Coimbra, outra da zona centro, de Ansião. Passava lá férias, numa microaldeia chamada Casalinho, e na Sintra rural. E acho que as mentalidades evoluíram. Há 25 anos, as pessoas e as comunidades eram muito mais fechadas do ponto de vista da diferença. Era um país muito fechado, muito católico... Católico na perspetiva mais de teoria que de prática. Embora, claro, continue a haver uma diferença entre o rural e o urbano.
Mas com a internet essa cisão está muito atenuada, não?
Claro, hoje não há fronteiras, há acesso a qualquer conteúdo no momento, coisa que não existia há 25 aos nem há 15. Está-se permanentemente a ser confrontado com uma realidade diferente da nossa. Na TV, na internet, em todo o lado. Isso tem de ter impacto na forma como as mentalidades evoluem.
Mas ainda se pode dizer que Portugal é um país conservador?
Nalguns aspetos sim. Conservador na perspetiva de que a mudança não é algo que vem fácil. Mudar algo é sempre um processo extraordinariamente difícil. Leva-se imenso tempo. Às vezes tem de se começar por algo que devia vir no fim, caso da legislação. Sempre se discutiu muito o que deve mudar primeiro: a mentalidade ou a lei? E não consigo dar uma resposta evidente. Porque, sem dúvida, que é importante mudar a lei para mudar a mentalidade, mas se mudares a lei e não mudares a mentalidade a lei irá ter muito pouco impacto.
Será? Há leis - adoção por casais do mesmo sexo, o casamento - de que se tinha ideia de que "fraturavam", mas uma vez aprovadas a sociedade ficou pacificada e maioritariamente a favor. Sendo o que fez a diferença, parece, foi apenas falar-se do assunto - e aparecerem pessoas a dizer "eu sou homossexual".
Sim. É óbvio que falar do assunto, o exemplo, é muito importante. Há pouco falávamos da questão das minorias, das mulheres. Eu não consigo dizer se em Portugal ter-se ido por etapas - primeiro união de facto para pessoas do mesmo sexo, em 2001, depois casamento em 2010 e adoção em 2015 - e trazer o tema para debate público, se isso de facto é o fator mais importante para se normalizar a existência de casais do mesmo sexo e da homossexualidade. Provavelmente tem um efeito importante, que é o de transmitir às pessoas que isso é algo valorizado do ponto de vista público. Agora as pessoas afirmarem publicamente que são homossexuais, não há muito quem o tenha feito. E acho que isso é importante. E há duas razões para eu achar importante dizê-lo.
Que é homossexual?
Sim. Primeiro porque, como há pouco dizia, a questão de haver poucos deputados ou membros do governo de um determinado grupo tem muito a ver com como é que olho para essas pessoas, como me relaciono com esse outro. E com que empatia. E acho que se as pessoas começarem a olhar para políticos, pessoas do cinema, desportistas, sabendo-os homossexuais, como é o meu caso, isso pode fazer que a próxima vez que sai uma notícia sobre pessoas serem mortas por serem homossexuais pensem em alguém por quem até têm simpatia. E se as pessoas perceberem que há um seu semelhante, que não odeiam, que é homossexual, isso pode fazer que a forma como olham para isso seja por um lado menos não querer saber se essas pessoas são perseguidas, por outro lado até defender que assim não seja. Mas mesmo que seja só deixar de não querer saber já é um ganho.
Harvey Milk, o político americano dos anos 1970 que é uma referência do movimento pelos direitos dos homossexuais, disse, no início da luta, "a privacidade é a nossa pior inimiga". No sentido em que era preciso dizer "eu sou homossexual" como afirmação política.
Esta minha afirmação é completamente política.
Mas há um paradoxo: a luta pela igualdade é, a la limite, não querermos saber da orientação sexual das pessoas, deixar isso no reduto da sua privacidade.
Para mim, a privacidade é absolutamente fundamental. A vida privada é sagrada. Aliás, estou na política há 17 anos e tenho-me mantido sempre com um nível de notoriedade relativamente baixo. Só dei uma entrevista de fundo até esta. Prezo muito a minha vida privada, é o meu espaço de liberdade. E quem tem vida pública precisa desesperadamente de vida privada. É o reduto de segurança, onde ninguém pode tocar.
Ou não devia.
Onde ninguém devia tocar. Porque isso não afeta em nada o que se faz. É indiferente se estou com um homem ou com uma mulher. Não altera em nada a forma como faço o Simplex, como faço o orçamento participativo. A questão que se põe então é porque é que é importante. E para mim não é. Mas para muitas pessoas é, e acho que é por razões absolutamente irracionais, porque na verdade não tem relevo nenhum. Porquê dizê-lo, então? Como é óbvio isto foi uma questão muito pensada. E na verdade não é uma questão da privacidade, é uma questão de identidade. Que é dizer "eu sou morena e tenho olhos verdes e sou isto". Aquilo que se faz com ser morena e de olhos verdes é que é uma questão da tua vida privada. E a partir do momento em que se percebe que há questões de identidade que ainda hoje são fundamento de ações violentas e discriminação, quando se pensa sobre o que fazer - vou abrir ligeiramente a porta porque pode ter um impacto positivo ou não vou abrir porque não é comigo - há um equilíbrio difícil. Mas como acho que as leis não bastam para mudar mentalidades, não bastam para mudar a forma como olho para o outro, que aquilo que muda a forma como olhamos para os fenómenos tem muito que ver com empatia...
Voltamos à afirmação de Bidarra: a emoção é fundamental.
Não é a questão da emoção. Ou também é. Empatia é a pessoa sentir-te como seu semelhante. Sentir que o outro é igual a ti. E isso pode ser tão importante como mudar as leis. E daí que a partir de certa altura possa ser importante ceder um bocadinho daquilo que achas que é uma parte da tua identidade que não tem de ser necessariamente pública porque achas que essa cedência pode ter um impacto positivo.
Que impacto positivo espera? E negativo?
As pessoas são muito rápidas a julgar quando não têm a dimensão humana à frente. Quando não conhecem as pessoas envolvidas, se têm filhos, mãe, pai, se vão ao cinema... Não veem esses outros que lhes aparecem na TV como pessoas. Se começarem a ver as pessoas que de vez em quando aparecem na TV ou vão lá à terra, como é o meu caso, se a virem como pessoa, como ser humano, isso pode de alguma maneira, nem que seja inconscientemente, mudar a forma como veem algum tipo de fenómeno. Isto é a perspetiva otimista, que é a única coisa que me leva a pensar que vale a pena. Perspetiva negativa? É evidentemente haver tentativa de exploração.
Temos políticos homossexuais assumidos, mas tinham assumido antes de entrar na política, como o ex-deputado Miguel Vale de Almeida ou o atual deputado Alexandre Quintanilha. Sabe que é uma estreia nacional.
Sei.
Em 2015, a propósito de o governo do Syriza ter muito poucas mulheres, disse: "Não devemos defender a nossa capacidade de autodeterminação, de sermos diferentes, de irmos na linha daquilo que são os princípios da modernidade ocidental e depois não conseguirmos ter um governo com um mínimo de representação feminina." O governo Costa não chega a ter um terço de mulheres. Aplica-se o mesmo?
O governo do Syriza tinha muito menos, mesmo assim. Acho que no que respeita à política há coisas que no caso das mulheres podem acrescentar à variável ser mulher ou ser homem, e sinto-o imenso ao longo dos anos. Assumo cargos políticos há 17. Nunca tinha tido antes grande feeling pela política, mas faço-o porque me motiva, gosto de fazer. Mas a verdade dos factos é que às vezes penso: porquê? Na perspetiva de ao longo dos anos ter-se ido degradando tanto a relação entre pessoas e política, de como determinados mecanismos da democracia começaram a funcionar, hoje é muito mais cómodo não estar na política, é melhor fazer outra coisa, e qualquer pessoa pode fazer outra coisa. Não estaria a dar esta entrevista e a assumir isto, ser homossexual, se não fosse política, porque era irrelevante. E por esse motivo não podemos olhar para a participação das mulheres só em função da variável homem/mulher, mas também para a forma como a política é percecionada. E conheço muitas mulheres que teriam imensa capacidade e jeito para a política, que desafiei para determinadas coisas, e me dizem não. Porque a exposição é muito penalizadora.
Mais ainda para as mulheres. E agora está a acrescentar outro fator de penalização.
Ou não. Não sou irritantemente otimista, mas sou militantemente otimista. O meu livro de toda a minha vida é o Cândido [de Voltaire]. Porque acho que, por mais dificuldades em que se esteja, vai acabar sempre bem.
E pensa isso a olhar para o mundo? Bandeiras nazis por todo o lado e vai correr tudo bem?
Vai. Porque mais uma vez acho que existe sempre algo muito para além de pessoas, de líderes, de dinâmicas. É obvio que queria muito que todas essas bandeiras nazis, que causam imenso sofrimento, não existissem, mas sou otimista na perspetiva de que acho que vai haver sempre pessoas e movimentos que vão conseguir transformar isso em algo melhor, ou ultrapassar. Portanto, se esta minha afirmação me vai fragilizar? Pode ser que sim ou que não. Há na Europa primeiros-ministros homossexuais, presidentes de câmara homossexuais. E eu sou só secretária de Estado. Isso modera as expectativas no sentido da fragilização.
Agora que rompeu o dique, espera que outras pessoas façam o mesmo?
Gostaria. Acho que era importante. Mas acho que ninguém tem essa obrigação. Acho que todas as pessoas, políticas ou outra coisa qualquer, têm o direito inalienável de decidir o que fazem com a sua identidade e a sua vida. O direito de serem o que querem ser sem que o mundo inteiro saiba. Mas, mais do que gostar que houvesse outras pessoas a fazer o mesmo, acho que seria importante.
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