Há um problema para a liberdade com os polícias do politicamente correto? Não começa a ser insuportável o escrutínio microscópico sobre o que cada cidadão, dirigente associativo, sindicalista, jornalista, escritor, editor, militante partidário, deputado ou governante dizem, escrevem e publicam, sempre a correrem o risco de ficarem sujeitos a uma acusação de racismo, de discriminação sexual ou de homofobia, vociferada em tom de ira por milhares de pessoas nas redes sociais?
Discussões como as que foram mantidas, há meses, sobre uma mudança de nome do Cartão do Cidadão para uma outra designação que lhe retirasse um alegado significado machista não são, apenas, ridículas, não infetam o feminismo com a bactéria da farsa?
Ter, apenas há uns dias, um ministro a recomendar à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género que esta, por sua vez, recomendasse a uma editora de livros escolares a retirada do mercado de uns manuais por terem conteúdos sexistas (ainda por cima essa acusação parece ser, analisados com calma os ditos manuais, muito injusta) não é um favor político à tese, cada vez mais prevalecente, da tendência censória dos novos ideólogos moralistas, quase sempre, mas não exclusivamente, associados à esquerda política?
Não é diferente discutir o problema da deliberada violência policial na esquadra de Alfragide sobre cidadãos "negros" do que sublinhar o racismo contido na utilização da palavra "negro"?
Não é diferente discutir a discriminação salarial das mulheres em quase todos os níveis profissionais e em quase todos os setores de atividade do que debater a ofensa para a dignidade feminina quando se utiliza o figurativo "Homem" para designar toda a humanidade?
Não é diferente defender o direito dos casais com o mesmo sexo a adotarem crianças do que acusar a McDonalds de discriminação por oferecer brinquedos diferentes para meninos ou meninas?
Não estão os tais "polícias" do politicamente correto a fazer "sair do armário" cada vez mais racistas, mais sexistas e mais homofóbicos, ainda há pouco tempo incapazes de exprimirem publicamente o seu ódio congénito, mas que aproveitam tal avalanche de limitações de linguagem e de costumes para se fazerem de vítimas oprimidas e, assim, ganharem espaço para os seus objetivos políticos, verdadeiramente discriminatórios?
Uma linguagem política capaz de, perversamente, tornar qualquer indivíduo tolerante num suspeito de neonazismo não é o caldo de cultura ideal para dar mais força aos Trumps desta vida, sejam os da América, sejam os de Loures?
E no meio destas discussões não se está a perder o foco e o caminho da resolução de problemas muito mais graves e prevalecentes, apesar de tudo o que se já fez, como, por exemplo, o da real e eficaz proteção das vítimas de violência doméstica? Ou da eliminação dos diversos tipos de discriminação no emprego que atingem várias minorias étnicas? Ou do anátema moral que as mentalidades da maioria das pessoas ainda atira para cima dos homossexuais?
O ponto é este: antes desta mais recente ofensiva do chamado "politicamente correto" (que atingiu a semana passada o cume da ironia ao chegar do Brasil a acusação de machismo a Chico Buarque, o mais feminista dos compositores de canções populares em língua portuguesa) a sociedade portuguesa parecia estar a avançar mais depressa na direção da eliminação paulatina de todas estas discriminações do que agora: foi dado espaço a uma reação, até agora adormecida, cada vez mais forte, cujas consequências políticas receio.
Todas estas minhas dúvidas esbarram, porém, com um facto: sou homem, sou heterossexual, sou branco. Nunca sofri na pele qualquer tipo de discriminação por motivos de género, de opção sexual ou de raça - sofri outras, mas isso não vem agora ao caso.
Já vi essas discriminações acontecerem e isso indignou-me muito, tentei mesmo fazer alguma coisa com a minha vida pessoal, a minha vida profissional e a minha participação cívica na vida social do país para ajudar a eliminar alguns desses problemas. Porém, tenho de reconhecer que é diferente ter uma adesão solidária à luta contra a injustiça sobre terceiros do que fazer parte dessa luta por ser vítima direta dessa injustiça. Aí a conversa muda de figura porque a emergência de eliminar e ver reparado o sofrimento tem uma intensidade e uma qualidade incomensuráveis.
Por isso, antes de responder a todas as perguntas que fiz no início deste texto, sou obrigado a reconhecer que, se fosse mulher, gay ou preto, as perguntas primordiais, simples, que gostaria de ver respondidas seriam outras:
"Quando deixarei de ser prejudicado, perseguido, humilhado? Quando terei justiça?"
"Posso parar um minuto de apontar as pequenas e grandes discriminações da sociedade?"
"Deixar o racismo, a homofobia ou o sexismo entregues a uma "maioria silenciosa" é um verdadeiro progresso?"
"A suposta defesa da liberdade de expressão não está perversamente a ser usada para perpetuar a discriminação e a opressão?"
"Exigir a neutralidade de género na linguagem não é um avanço civilizacional? E os documentos oficiais não devem ser neutros ?"
"Os manuais escolares não devem ser exemplares sobre questões discriminatórias?"
"Porque é que há brinquedos ou manuais para meninos e outros para meninas?"
É por isso que, apesar de todos os meus receios, espero que a discussão, mesmo violenta, sobre estes temas não se cale - é tão necessária!
E, apesar de andar irritado com tanto controlo à forma como falo e como escrevo, concluo: não, os polícias do politicamente correto não são um problema para a liberdade.
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