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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

De Lisboa à Praia da Rocha, passando pela estação do Barreiro



Levantávamo-nos bem cedo com as malas e sacos aviados de véspera. De eléctrico lá íamos para a Praça do Comércio. Mais umas passadas, com a minha mão de mãos dadas connosco, que ao meu pai cabia o carrego. Era uma azáfama na entrada no barco para o Barreiro. Vozes altas, gritos de crianças que se perdiam, mas tudo acabando em harmonia e olhos arregalados. Os marujos procuravam que o pessoal se despachasse, metendo sustos “Se não entram, ficam em terra…”.
Já o barco arrancava, entre apitos, com trocas de acenos com familiares que ficavam no cais. Lá dentro, o meu pai levava-nos à vez a ver o rio e as ondas abertas que nos molhavam a cara com uma frescura que nos criava a sensação de estar a brincar com a espuma.
Chegados ao Barreiro, a saída acelerada do barco, dava lugar a outra corrida para o combóio disposto na perpendicular lá ao fundo. Com os bilhetes de 2ª classe num bolso do casaco, o meu pai lá entrava à frente para dispor a bagagem por cima dos lugares marcados e, logo, voltava para nos receber das mãos da minha mãe. “Ó mãe, não fiques aí!”, gritávamos aflitos.
Quando estávamos todos sentados, distribuía a primeira parte da merenda para a sossega. A viagem levava umas horas. A minha mãe cantava umas modas alentejanas, do tempo da escola e em casa com as primas, em S. Martinho das Amoreiras. Nós gostávamos e íamos aprendendo. Alternava com brincadeiras do meu pai, que nos pedia para nos virarmos. Punha os dedos dele a mexer nas nossas costas e parava para dizer “Tricliti, triclité, quantos dedos estão em pé?” Palpitávamos um número e ele respondia ” Três? Se dissesses cinco, não perdias nem ganhavas, triplite, triplite, quantos dedos estão em pé?”, lengalenga que aprendera com o meu tio-avô, capitão do exército de bigode afiambrado, lá em Vouzela. E nós lá íamos fazendo novas apostas, deixando para trás Alcácer, Grândola, Ermidas e Alvalade até concluirmos que aquele jogo era um bocado esquisito…
Mas era altura de pararmos porque estávamos a chegar à estação da Funcheira. O meu pai ia ao bar da estação comprar umas bifanas acabadas de fazer e a minha mãe comprava, pela janela, umas pequenas bilhas de água. O combóio apitava a chamar os passageiro apeados, ameaçando partir sem eles. Agora gritávamos aflitos “Ó papá, onde estás? Vem embora”. Mas ele acabava sempre por aparecer em passada rápida com as bifanas metidas em papel de embrulho…
Depois era uma saborosa refeição. O meu pai não passava sem bifanas e contagiava a família. O combóio já rodava para sul, de novo. Nas Amoreiras, os meus primos iam-nos cumprimentar da plataforma para as janelas e traziam uns chouriços. “Adeus, adeus, até para o ano!”. Mas nos intervalos ainda nos encontrávamos ou lá ou em Lisboa.
Na passagem por Alte a minha mãe lembrava que o meu avô ainda nessa altura fazia uns moínhos de vento e de águas por aquelas terras. Um dia, já éramos nós mais velhos, coitado, caiu do burro e morreu à beira de uma estrada secundária. Chorámos muito o avô que nos ensinou a arte da moagem, e de cortar fatias de toucinho tirado da salgadeira da casa modesta em que vivia. E os ensinamentos que nos dava…
Entretanto, o tempo ia passando. Em Tunes novo transbordo para a automotora que rumava a barlavento para Portimão. A excitação de caminharmos para o final da longa jornada, contrastava com o incómodo dos assentos de madeira…Chegados a Portimão, lá tínhamos uma amiga do meu pai, a Primavera, casada com o escritor Franco de Sousa, que moravam perto de nós em Lisboa. Seguíamos para a pensão Algarve, do senhor Pacheco. Aí chegados, eu e o Luís fazíamos a soneca.
De manhã, ala para apanhar uma carroça (hoje charrete) puxada por um macho que ia tilintando. Passávamos pelas fábricas conserveiras, onde víamos a azáfama das operárias…Saídos da carroça apanhávamos logo uma banca dos gelados de um senhor, cujo irmão vendia durante todo o santo dia o dia as bolas de Berlim na praia. O meu pai tinha sido impedido de ser assistente no Técnico de maneira que estes extras só eram possíveis se tivesse tido muitos alunos dessa escola ou também do ensino liceal, a quem dava explicações. Na praia entre os chapinhares e o nadar em seco, que antecederam o gosto para a natação, víamos o meu pai fazer ginástica à beira-mar, dar uns mergulhos e braçadas, até aterrarmos todos em cima das toalhas. Ele então pegava-me nos nós dos dedos das minhas mãos e ia-os beliscando “Serubico, bico,bico/ Quem lhe deu tamanho bico?/ Foi o filho do Luís que está preso pelo nariz/ Os cavalos a correr, as meninas aaprender/ Qual será a mais bonita que se irá esconder?”.
Um outro extra eram umas sessões de cinema, a céu aberto, num recinto da vila, onde crianças e adultos gritavam pelos heróis e assobiavam aos bandidos. Um deles avisou o bom da fita “cuidado que esse atrás de ti te quer matar!”…Risos contidos. Desfazíamos então as emoções com um pirolito fresco e aproveitávamos o berlinde para jogarmos depois.

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