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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Blues: Os anos dourados de B. B. King (vídeos)

 B. B. King faleceu apenas este ano. 
E nunca interrompeu sua carreira: estava sempre presente 
nos noticiários sobre música, lançando álbuns novos e 
rodando o mundo em turnês. Assim, não é de se espantar 
que muita gente o enxergue como uma espécie de “artista 
contemporâneo”.
Mas, quando se pensa na história do blues, fica claro que 
estão todos no mesmo bolo. As primeiras gravações de 
Muddy Waters para a Chess aconteceram em 1946 
(quando a empresa ainda se chamava Aristocrat Records), enquanto 
King entrou em estúdio pela primeira vez três anos depois 
disso. Ou seja, estamos falando de um artista que surgiu no 
início da explosão do blues elétrico e que começou a deixar 
sua marca no mundo ainda na década de cinquenta.
Isso nos leva ao grande problema na hora de conhecer 
B. B. King mais a fundo: como começar a ouvir um artista 
cuja carreira tem mais de meio século? Afinal, é inegável que 
suas canções se modificaram com o tempo. Mesmo nunca 
ultrapassando a fronteira do blues, suas músicas ganharam 
arranjos mais modernos, especialmente nas últimas 
décadas, quando ele percorria o mundo ao lado de uma 
grande banda de apoio, atuando como uma espécie de 
embaixador do blues.
Eu gosto desse papel que ele assumiu. Se o blues é uma 
religião, B. B. King se tornou seu papa. Para o público 
casual, ele era blues incorporado, e foi decisivo para que 
muitas pessoas conhecessem o gênero.
Mas nada disso teria acontecido se ele não tivesse se tornado 
uma lenda, algo que aconteceu justamente na primeira 
metade de sua carreira. É por isso que sempre que alguém 
me pede dicas para conhecer B. B. King, eu indico as 
gravações das duas primeiras décadas de sua carreira, o 
período que eu enxergo como seu auge criativo. Sim, seu 
trabalho nunca perdeu qualidade, mas suas canções das 
décadas de 50 e 60 pavimentaram o caminho para tudo o 
que ele faria — e seria — futuramente em sua carreira.
Afinal, estamos falando de uma época em que B. B. King não 
era um ícone mundial, “apenas” um dos melhores guitarristas 
de blues que já existiu — mesmo que ele assumia enxergar a 
si mesmo como um cantor de blues, e não como um guitarrista.
É um blueseiro que sempre impôs seu estilo pessoal, muito 
mais próximo de T-Bone Walker (que foi uma de suas 
maiores influências) que das canções de seus contemporâneos 
como Muddy Waters e Howlin’ Wolf, que faziam um som 
mais cru. Eu coloco as canções de B. B. King entre as mais 
elegantes que ouvi no blues, e muita gente se surpreende ao 
descobrir que isso se aplica a toda a sua carreira, e não 
somente ao que ele lançou nas últimas décadas. Basta escutar 
Three O’Clock in the Morning, canção gravada em 1952 
(a composição original é de 1946) e que fez sua carreira 
deslanchar, para comprovar isso.


vídeo
O tema é clássico do blues. São três da manhã e ele não 
consegue dormir por que a mulher que ama não está com ele. 
Assim, na terceira estrofe, ele encontra a solução para escapar 
da dor: o suicídio, que fica claro no último verso, quando ele 
pede que seu amor o perdoe por seus pecados.
Se a letra parece violenta demais para aquele simpático 
velhinho que nos acostumamos a ver sorridente sobre o 
palco, a guitarra já é totalmente B. B. King. De todos os 
muitos blueseiros que usaram o instrumento como segunda 
voz — ele canta e a guitarra responde — ninguém fez isso com 
essa riqueza e essa economia de notas, em que cada som 
parece ter uma função dentro da música e do sentimento que 
ela passa.
É por isso que a importância da guitarra de B. B. King na 
música mundial vai muito além do folclore dela ter um 
nome — para quem não sabe: no início da carreira ele estava 
se apresentando em um bar que acabou pegando fogo devido 
a uma briga na plateia; o local foi evacuado, mas King voltou 
para dentro do incêndio para recuperar sua guitarra e só 
depois descobriu que o motivo da briga era uma garota 
chamada Lucille, que acabou batizando seu instrumento.
Se B. B. King não foi o inventor daquela guitarra doce e 
melancólica — algo que hoje é utilizado pela maior parte dos 
guitarristas do gênero — ele certamente foi quem levou isso 
para além do blues. Sua marca registrada se tornou também 
a marca registrada de um estilo, sobretudo por boa parte do 
que surgiu após sua época. Por isso, chega a ser praticamente 
impossível medir a influência de B. B. King como 
guitarrista, já que seu legado parece estar em todo lugar.
E sua guitarra doce e melódica é a alma da música mesmo em 
suas canções mais aceleradas. Isso se deve a um motivo que 
também pode surpreender muitas pessoas: King tinha 
extrema dificuldade em tocar acordes — ele aprendeu as 
noções básicas do instrumento com o pastor da igreja onde ele 
cantava no coral quando menino, que o ensinou três acordes 
básicos. Sem conseguir tocar acordes, sempre que compunha 
uma música ele improvisava, dedilhando as cordas da guitarra.

vídeo
Mas a surpresa causada pelo fato de B. B. King não conseguir 
tocar acordes é tão impactante quanto o teor de suas músicas 
nos primeiros anos de sua carreira. Algumas de suas grandes 
canções caem no velho sexismo do blues, algo impensável 
quando pensamos em seus últimos anos de vida.
Como eu já disse em outros textos, o blues tem um sexismo 
muito particular: seja com cantores ou cantoras, o poder 
absoluto está sempre na mão do sexo oposto, que parece 
capaz de definir se o narrador da música será feliz ou triste. 
Isso sempre descamba para canções com teor extremamente 
violento, com brigas e juras de morte (que muitas vezes são 
cumpridas).
Gravando nos anos 50 e 60 e completamente influenciado 
pelo blues do Mississipi onde cresceu, King jamais se manteria 
afastado desses temas. Um bom exemplo está em 
Don’t Answer the Door, na qual ele proíbe sua mulher de 
atender a porta quando ela não está em casa. 
O sentimento, originário principalmente por ciúme, acaba se 
transformando em uma demonstração de poder já que ela não 
pode abrir a porta para ninguém, nem mesmo para a mãe ou a 
irmã (de quem ele assume não gostar na canção), ou até 
mesmo para o médico. Talvez seja o maior exemplo de 
paranoia da história do blues, guiado por uma das guitarras 
mais lindas que já ouvi.

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“Eu não quero sua irmã aparecendo por aqui Porque aquela garota, ela fala demais. Se ela quiser nos visitar Diga a ela que nos encontre domingo na igreja.(…) Se sua mãe quiser nos visitar Diga a ela que eu chego em casa ao raiar do dia E que esse horário é tarde demais para visitar alguém, Então diga a ela que, por favor, fique longe.”(Don’t Answer the Door)
Na verdade, as mulheres sempre tiveram um papel 
fundamental na vida de King. Foi casado duas vezes e ambos 
os casamentos fracassaram devido ao fato de que ele passava 
mais tempo em turnês que em casa. Evidentemente, não se 
tratava apenas de sua ausência, já que ele teve nada menos 
que quinze filhos com mulheres diferentes. Quando li sua 
autobiografia, fiquei impressionado com a franqueza que ele 
trata sua verdadeira fixação por mulheres.
Se não existissem mulheres, eu não iria querer estar nesse planeta.Mulheres, amigos e música: sem esses três, eu não iria querer estar aqui.”(B. B. King)
Assim, chega a ser difícil de imaginar que, assim como muitos 
mestres do blues, ele não colocasse o sexo oposto como um 
dos temas centrais da sua obra. As mulheres de B. B. King 
estão presentes em todas as fases de sua vida. Podem gerar 
alegria em alguns casos (como Sweet Little Angel, que está no 
final do texto), mas, na maior parte das vezes, causam apenas 
tristeza ou desespero, como manda a gramática do blues.
Uma delas permanece como a minha música de blues 
preferida de todos os tempos. Quem me conhece sabe que 
sou verdadeiramente obcecado por How Blue Can You Get? 
(quando criei esta coluna, fiquei tentado a batizá-la com esse 
nome) e que mostra um dos personagens mais maléficos da 
história do blues. A mulher de B. B. King nesta canção 
simplesmente acaba com o narrador mesmo que, como é 
comum no blues, ele tente agradá-la de todas as formas. 
Abaixo, a versão do magistral Live at Regal.

vídeo
O verso “você é má quando está comigo e ciumenta quando 
estamos separados” é um dos mais brilhantes que já encontrei. 
Ele diz absolutamente tudo o que você precisa saber sobre a 
mulher que ele ama, e como ela lida com o relacionamento. 
Mas King vai além:
“Eu lhe dei um Ford novo em folhaMas você disse “eu quero um cadillac”Eu lhe paguei um jantar de dez dólaresE você disse “obrigada pela petisco”.Eu deixei você viver na minha coberturaE você disse “que era apenas um barraco”Eu lhe dei sete filhos,E agora você quer devolvê-los.”(How Blue Can You Get)
É uma mulher impossível de ser agradada, especialmente 
porque, cada vez que escuto, me convenço mais que é uma 
mulher que não quer ser agradada. Na minha cabeça, ela é 
extremamente mal resolvida e a única coisa que a satisfaz é o 
poder que exerce sobre o homem. Assim, tudo o que ele pode 
fazer é perguntar o quão triste você pode ficar, e dizer que 
“a resposta está aqui no meu coração”, assumindo que ele 
chegou ao ápice da tristeza.
Não é a primeira vez que um cantor ou cantora sente 
“o maior blues do mundo” (mesmo porque o blues, como 
sensação, sempre é insuportável nas letras), mas poucas vezes 
isso foi colocado de uma forma tão emocionante.
Da mesma forma, poucas vezes o fim de um relacionamento 
foi colocado de uma forma tão direta no blues quanto em 
The Thrill is Gone. Como se pode imaginar, o tema é comum 
ao blues: afinal, nem sempre um relacionamento infeliz 
termina em morte; muitas vezes, ele caminha para uma 
separação (que sempre é benéfica para somente um dos 
envolvidos).
Mas, em The Thrill is Gone, o próprio nome diz algo que 
costuma ser deixado de lado. Ao abordar o fim do 
relacionamento com a frase “o arrepio se foi”, a letra deixa 
claro que um relacionamento que se tornou infernal nasceu 
como qualquer outro: com amor.
A maior parte das canções de blues que narra o fim de um 
relacionamento faz isso com alívio ou raiva. King não esconde 
sua mágoa (“você agiu errado comigo e vai pagar por isso um 
dia”, deixando a justiça nas mãos do destino), mas se 
comporta de forma muito mais conformada, repetindo o título 
da canção — e atestando que o amor acabou — ao longo de toda 
a música, sempre guiado por uma guitarra espetacular.
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Cronologicamente, esta é a última canção do período que eu 
considero a fase áurea de B. B. King. Foi composta em 
1951, mas a versão de King foi gravada somente em 1969 — ou 
seja, vinte anos após o início de sua carreira em estúdio — se 
tornou uma de suas músicas assinaturas e lhe rendeu o primeiro 
Grammy da carreira, em 1970.
Foi o primeiro de muitos prêmios que recebeu — nada mal para 
o garoto que cresceu em uma fazenda e sentiu-se orgulhoso 
quando foi incumbido de dirigir o trator, algo que era símbolo 
de status entre os empregados. Daí em diante, sua carreira 
seria marcada por um sucesso contínuo, que o colocaria como 
um dos maiores e mais famosos artistas do século 20.
Chega a ser impossível não pensar em B. B. King quando se 
pensa em blues. E se isso se deve ao sucesso que ele conquistou 
nas últimas décadas, este sucesso, por sua vez, não teria acontecido 
sem o seu 
trabalho impressionante e genial nas décadas de 50 e 
60, quando ele e sua Lucille mudaram a história do blues. 
São canções que entraram para a história e inspiraram 
incontáveis artistas de diversas gerações.
A partir dos anos 70, King gravou canções magistrais — e mais 
um punhado de clássicos — e fez apresentações 
históricas, como na Cadeia de Cook County, em 1971 e no 
Concerto de Natal do Vaticano, em 1997. Mergulhou em 
parcerias com nomes como Eric Clapton e até mesmo U2. 
Listar tudo de notável que ele fez resultaria num texto maior 
que esse, já que ele manteve uma regularidade impressionante, 
especialmente quando pensamos em uma carreira tão longa.


Mas está ali, nos primeiros vinte anos de seu trabalho, toda a 
base disso. Antes de ser o “King of the Blues”, B. B. King era, 
como eu disse, um blueseiro, que parece ter entendido toda a 
complexidade desse gênero musical da forma mais brilhante 
possível.
Ou, como ele mesmo resume em sua autobiografia: “o blues é 
uma música simples, como eu sou um homem simples”.

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