AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A MÚSICA COMO MORAL DOS TEMPOS


     
               

O INCESSANTE TRABALHO MUSICAL

O ensaio, o trabalho, a técnica. Para não nos aborrecermos por demais com problemas complicados de política e de guerra, peguemos numa questão que seguramente não interessa a ninguém: a música e a sua interpretação. 
Ensaios, trabalho, técnica e momento de actuar no concerto que se entrecruzam, se chocam, se separam e se desenvolvem, se confirmam e se desmentem sob os auspícios da categoria filosófica mais eminentemente musical (ou vice-versa), que se possa conceber: o tempo.
A música é uma moral do tempo, podem crer.
Ou, porque não, um segmento maior da moral dos tempos.  
Foi com a consagração e o desenvolvimento, por exemplo, da entidade maestro como responsável único pela execução que eles mesmos, maestros, descobriram – ou redescobriram - a sua profissão e o seu papel à frente de uma orquestra, quando descobriram o real sentido do tempo musical; quando descobriram que não era a inflexibilidade do tempo o valor principal a comunicar numa peça de música.
Tempo. Tempo musical. A ideia da música, já se sabe, é intemporal. Isto no que se refere ao historicismo. As obras máximas são indatadas, ou indatáveis, se se pode falar assim. Por isso mesmo o trabalho do intérprete é tão somente inventar-lhes o tempo, criar-lhes o revestimento durável, quer dizer, torná-las suportáveis às limitações humanas, temporais, de apreciação e fruição.



A MELODIA, O MOVIMENTO, A ALMA

Diga-se o que se disser, creio que a música é a mais complexa, imperativa, consciência que o Homem pode ter do tempo. Scientia bene movendi, dizia dela Sto. Agostinho, e sendo ele, tempo, o sumo corpo da música, e sendo dela a alma.
A música poderia sintetizar-se também numa ordem espacial de movimento, o movimento de um som a outro som, reportando-se esse som que sucede ao anterior da sua solidão ontológica primitiva e encarregando-o de anunciar o som que por sua vez lhe sucederá. Até, talvez, ao fim da própria noção de tempo que o Homem construiu para si. Ou até mesmo ao fim do próprio Homem.


Todo este movimento de matéria e espírito e alma e corpo e nexo cronológico é aquilo a que muitos chamam a melodia. Uma continuidade. Um processo movido pelo tempo. Uma vida inteira.
Uma melodia é um impulso que se figura e desfigura em sons e intervalos justapostos, no íntimo do som e do tempo, deles parte constituinte e igualmente existente para além deles, e cuja finalidade permanece imponderável
A melodia é o ser vivo que persiste no conceito de música. Nasce e desenvolve-se e vive como um ser. E extingue-se. Extingue-se como uma vida regida pela mesma lógica temporal de um corpo, e sendo os primeiros sons de uma melodia os primeiros elementos anunciadores do seu desaparecimento – como uma flor ou um homem – porque contém evidentes em si, desde que nasce, todos os elementos que a conduzem ao desaparecimento.


O SOM,  O INSTANTE

A sonoridade é a forma do tempo e é o gesto do maestro que o situa e organiza.

            
                            


A sonoridade relaciona e separa uma porção de tempo. Administra-o. Unifica-o. Ordena-o nos seus variados momentos. Permanência e mudança. A sonoridade é a unidade dos dois princípios contrários. O tempo confere aos sons a faculdade de se interrelacionarem obtendo diversas sínteses.
A composição musical não passa da manipulação de elementos temporais. E não é pouco. É muito. É tudo.
É na forma temporal que se condensa a obra musical.
                                                                                             
                                                    

Há uma musicalidade em suspenso no íntimo de toda a forma temporal.
A música é a exibição mais pura, e quiçá desinteressada, dos esplendores e dos intimidantes poderes do tempo.
E há um ponto de reunião reservado para o encontro entre a obra musical e a sua execução, e esse ponto permanece algures e é nele que o encontro das duas atitudes, criação e execução, realiza o tempo. E o ponto de encontro entre a forma escrita e a execução temporal terá de ser revestido de uma consciência.
Não há obra musical dotada de realidade senão na sua relação com o tempo em que é executada.
Toda a música é o instante que a produz, que a faz ouvir, e nesse sentido auditivo e realizador do momento musical não há música antiga, toda a música é moderna, e por este simples e tão banal enunciado tenho eu a noção do quanto um concerto de Mozart, um lieder de Schubert, um quarteto de Beethoven, uma ária de Bellini ou uma sarabanda de Bach – já para não abusar e referir uma canção de Sinatra - respondem mais eficazmente às exigências do meu estado de espírito presente do que a música que alguém possa ter composto e tocado na 3ª feira passada, e que é moderna, e que é do meu tempo real, humano e concreto.
É também esta noção que me acrescenta o sentido da contemporaneidade de Chopin ou de Mozart e me rouba a sensibilidade para apreciar no mesmo parâmetro Stokhausen ou Boulez ou Ligetti. Talvez porque não os sinta consonantes, com o meu tempo histórico mais pessoal e interior.

  

Em contrapartida, um concerto de Vivaldi soa-me sempre a novo, a actual, a fresco, é sempre ou quase sempre consonante com o tempo da minha História que estou a viver. Mas isto é um problema pessoal, bem entendido…
Toda a obra musical necessita de uma actualização, de ser posta em funcionamento pleno de acordo com o seu tempo de realização. De realização! E a cada instante da sua realização soará actual, mesmo que eu não goste dela e a considere passada, démodé. É a relação entre o tempo de ser pensada e o tempo de ser vivida que lhe marca a imponderabilidade da forma e a sua relatividade enquanto escrita.
Nenhum tempo foi alguma vez anterior a si mesmo, música nenhuma escrita contém em si a sua própria actualidade.
As artes do tempo vivem a sua vida na encruzilhada entre a concepção e a execução, e sendo que a realidade do tempo da sua concepção não lhes permite prever a realidade do tempo da sua execução.
Hegel: A maneira específica como a obra musical nos atinge é oposta á das outras artes. Os sons não têm, como uma estátua ou um edifício, uma permanência concreta e durável. Os sons produzem-se e dispersam-se. A arte musical, por causa desta instantaneidade, precisa de uma reprodução permanentemente renovada.
Não há obra de arte que se preze que não se comprometa com o tempo – digo eu. Por maioria de razão o faz a música, arte excelsa do tempo, moral impoluta do tempo. Arte do tempo cronológico e arte do tempo memorial e histórico, a música. E quem diz do tempo reportar-se-á imediatamente ao gosto, que é a sua consequência.


E se a arte plástica permanece imutável, igual a si mesma e alheia ao fluir do tempo, concebida, criada, executada de uma vez por todas, e de facto sujeita ao tempo somente pela necessidade que esse tempo cria da sua contemplação (ou da sua degradação material), na obra musical é a virtualidade criada pelas categorias do tempo que joga em todos os tabuleiros.




OS CONTEMPORÂNEOS

A arte musical é uma categoria exposta, vulnerável, dócil ao tempo e seus agentes corruptores – o maior deles, o Homem, o seu gesto, a sua vontade, e o nexo volúvel e gestual do tempo dessa vontade. Daí que os mais modernos compositores pretendessem eliminar da vida e do pensar musicais a interpretação. Nada quereriam conceder ao intérprete. Viam-no como o seu rival criativo – por ser ele quem mais pode jogar com o factor tempo. Pretenderiam compor a obra musical em equivalência às artes plásticas, ou literárias, fixar para todo o sempre, e exactamente, o sentido das suas composições. E quereriam que assim fosse a música do futuro, contando, já se percebe, com os recursos tecnológicos que o seu tempo histórico disponibiliza.
Mas abolir a interpretação – ou seja, a releitura de uma peça em função do tempo – seria não mais do que privar a obra da expressão do próprio tempo; não mais do que encarcerar a obra e transformar a sua essência numa aparência.


Eliminar a interpretação musical significaria a morte da música.


Muitos compositores souberam não prescrever aos futuros executantes uma medida temporal e um movimento pré-determinado. Wagner e Chopin deliberadamente não deixaram nas suas músicas escritas indicações metronómicas excessivamente precisas. E é aqui que assenta a parte mais problemática da execução musical. A escolha do tempo. O tempo que ternamente vem abraçar a forma e construir uma vida de dois confundidos num só.
Se pensarmos no tempo verdadeiro (digamo-lo assim) de uma obra, porém separado do acto da realização objectiva dessa obra, talvez possamos descobrir que não é esse tempo a categoria que se impõe ao acto de realizar. A qualidade de som do intérprete inscreve-se e interfere no movimento. A sonoridade mais seca implica velocidade de execução maior do que a sonoridade mais cheia. E os matizes de uma interpretação necessitam obviamente do tempo para serem desenvolvidos, revelados, compreendidos.
Muitos consideram o valor intrínseco de uma obra musical escrita em função das oportunidades que ela concede à execução.
Dizem muitos, também, que a boa obra musical é aquela que suporta, sem se desvirtuar, uma execução lenta, independentemente da sua exigência conceptual de tempo. O que não quer entretanto dizer que a essa execução lenta não possa ser preferível uma outra.
Da mesma forma que há obras cujo tempo conceptual se determina por si, o que lhes aumenta a dúvida acerca do valor intrínseco, e desde que elas parecem não se poder afirmar a não ser por meio da realidade que não é mais do que o tempo de duração que lhes concede o seu intérprete.



CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS

A obra musical do classissismo transmite a ideia magna da sua auto-suficiência, da sua congénita independência face ao intérprete, sobrevivendo, seja qual for a visão que o intérprete tenha dela. E assim porque possui, em termos de pensamento, um acabamento formal que induz a ideia de já ter adquirido na escrita a sua realidade ideal.


A obra romântica, apelante ao virtuosismo, vive de uma exteriorização. Exige uma execução. Questão de tempos, ainda. A obra clássica poder ser objectiva, impessoal, fluente na sua indiferença ao tempo. A obra romântica, exercendo a sua natureza subjectiva, é mutável ainda na sua duração, flutuante de vida interior.


Mas não há escapatória. Nenhuma obra está isenta dos apportsque lhe trará a interpretação. O que significa que nenhuma obra clássica ou romântica está em condições de escapar à duração temporal subjectiva que lhe será oferecida pelo executante.
A questão da escolha dos tempos é fulcral na actividade dos chefes de orquestra, ou, de uma maneira geral, dos intérpretes. Há quem julgue possível perceber, no decurso do concerto, se a orquestra assumiu como organicamente seus os tempos escolhidos pelo chefe, ou se, diversamente, a orquestra dá ao manifesto apenas o facto de ter consentido que o chefe lhe tivesse imposto os tempos que ela não sente como organicamente seus.
E quanto ao tempo musical, metronomicamente justo que ele seja, pode (poderá) perceber-se se ele é correcto ou falso. Basta saber, perceber, se esse tempo é intimamente vivido por quem o executa – verdadeiro, correcto – ou se é realizado mecanicamente – falso, falso como Judas, ainda que o metrónomo o indique como justo.
O tempo, na relação orquestra-maestro, não é tanto um tempo objectivo, o tempo da obra enquanto escrita. O tempo nessa relação é o tempo de uma duração subjectiva do maestro – do intérprete. É no seu interior que o maestro realiza a comunhão das durações, objectivo/subjectivo, na unidade das diversas durações de cada instrumento.
O tempo, por assim dizer, final, de uma composição é o tempo da sua execução, é o tempo vivido pelo seu intérprete de hoje, será o tempo vivido por aqueloutro seu intérprete de amanhã.
O tempo vivido da execução é o acordo que se estabeleceu entre diversas durações subjectivas numa duração ainda subjectiva que se torne dominante. É ao intérprete que compete organizar as subjectividades temporais presentes numa peça.
Música do futuro, música do passado, ou música de um eterno presente?
Todas estas coisas, talvez. Em certas composições e no quadro de uma realidade sonora que as faz inteligíveis de imediato, sem deixar de contar em si as duas experiências, o passado, o futuro e o eterno presente, as concepções filosóficas do tempo que sempre se puseram no curso da História.




UMA INTERPRETAÇÃO DO TEMPO
A moral mais irreversível de uma categoria de tempo contém-se na criação e na interpretação musical. A linguagem musical permite não exclusivamente exprimir, mas igualmente pensar uma realidade a que chamamos tempo.
Toca ao intérprete adivinhar e repropor, para lá da teia sonora, uma vivida experiência do tempo que dessa teia sonora é a substância. Afinal, segundo alguns, um regresso à duração pura, amorfa, inconcebível, que antecedeu todo o impulso criador.
A duração psicológica é um tempo imperfeito, vazio, inoperante, não-criador. Todavia, guardando no seu intangível íntimo a aspiração de se ultrapassar, de se encher de forma, de impulso, de se preencher em instantes de plenitude. Temos aí o tempo real. Temos aí o tempo musical da obra. Temos aí um tempo de vida.


Rubato – palavra italiana que quer dizer literalmente roubado-, continua a ser explicado enquanto categoria musical como uma maneira de tocar que rouba parte do inteiro valor temporal de uma nota e a entrega à nota sua vizinha, à nota que se segue a essa nota roubada, aumentando-lhe a duração. Isto dito assim, depressa.
Há quem diga que os valores do rubato relevam do irracional. E no entanto, é sobre as possibilidades de um rubato que assenta grande parte do que chamamos interpretação. É mais frequente nos pianistas. Nasceu no entanto, a bem dizer, na música cantada, segundo li. Mas também se aplica aos conjuntos orquestrais. Age sobre as quantidades rítmicas, todavia não influi nem modifica os valores temporais.


Também há quem diga que o rubato está presente na música desde que ela é o que é, desde os primitivos tempos, desde as mais exóticas paragens musicais, seja essa música escrita, seja ela de tradição oral. O rubato é um factor moral do tempo, uma instância de duração. Um imperativo impossível de ser escrito. É prerrogativa do intérprete.
O sentido do rubato foi, naturalmente, evoluindo no curso da História da Música. O rubato italiano impõe-se com a interpretação vocal de Seiscentos, em relação com as ornamentações que os cantores se permitiam sobre a estrutura melódica constante do texto escrito. Nos tempos de Frescobaldi as variações de tempo não afectavam o tempo fundamental da peça. Introduziam mutações bruscas e prolongavam-se por inteiros períodos musicais.


Começa entretanto a actuar sobre o tempo fundamental da peça em Beethoven e com os românticos, designadamente Chopin. Congregava o antigo rubato agente de uma quantidade rítmica e acrescentava-se-lhe uma acção sobre o tempo, a duração propriamente dita da peça.
Nada daquilo que efectivamente dura é repetível. E a obra musical é essencialmente repetível. Existiu um dia para ser repetida.
Tempo é urgência. Tempo é irreversibilidade. Um acaso desafortunado pode baralhar todo o jogo e arruinar horas de aperfeiçoamento solitário.
O futuro de uma obra musical suspende-se no instante em que nasce. Tudo é irreparável. O tempo! E se um começo é menos feliz, todo o executante ficará cativo desse momento.
Em todo o caso, se errou, por exemplo, no tempo, está obrigado a perseverar nesse erro. Se entrou com o tempo justo e a expressão adequada sentir-se-á a cada momento mais livre e espontâneo.
Ensaios, trabalho, técnica, execução.


Oh, quantos executantes não preferem as horas e os dias de trabalho aos momentos supremos dos concertos, da execução? Só porque nas horas de trabalho são eles os senhores do tempo. Enquanto na hora do concerto são eles os servidores do tempo que a obra lhes impõe. E este termo “tempo” deve aqui ser tomado em todas as suas acepções, tempo musical e tempo real, nomeadamente.

 

O PARADOXO DO DISCO

Parecendo que não, é neste caleidoscópio conceptual do tempo que aparece a eventualidade do disco. A existência do disco subverteu o tempo que é próprio à obra. Para o bem e para o mal. Ou nem para uma coisa nem para outra, porque o advento do disco criou uma insólita oportunidade ao tempo musical.
O disco. Talvez fosse inventado como um estratagema para anular o tempo na problemática musical, eternizar. Além de que a duração das obras também convém que seja comercial.


O advento do disco acabará por favorecer a existência e os poderes do intérprete quando as tendências mais modernizantes e as estéticas vanguardistas lhe preconizavam o desaparecimento. O disco fixou diversidades possíveis de leitura, elegeu tempos paradigmáticos, permitiu confrontá-los, repeti-los até ao infinito.
Se, como factor temporal, falamos de actualização de uma obra musical pela interpretação, pela diversidade das propostas de compreensão que cada intérprete traz à realidade sem tempo, fixa, escrita, de uma obra musical, se fazemos entrar o disco nas nossas contas, caímos em cheio no paradoxo.


O paradoxo do disco: a obra gravada em disco beneficia-se com uma interpretação que a actualiza, é bem certo; porém, o disco tem o condão de eternizar no tempo essa actualização, o disco vai eternizando as sucessivas interpretações de uma peça, objectiva-as, difunde mundialmente essas objectivizações, fixa o que tem a vocação do volátil – o tempo, justamente -, leva ao definitivo a peça musical que deve a sua existência e o seu interesse ao provisório da execução, ao inacabamento.
Há quem sustente a superioridade da obra musical sobre todas as outras. Justamente porque supõe o seu inacabamento, quando a obra musical é por sucessivas vezes temporalmente acabada no fim de cada nova execução, tornando a permanecer inacabada e intemporal até ao final da sua próxima execução.


Os constantes renascimentos de cada peça de cada vez que a executam – e assim lhe conferem vida perene – marcam, não diria tanto a superioridade da música, mas a sua exaltante diferença relativamente ao inexorável acabamento de outras formas de arte.
Porque o tempo musical se refere ao gesto que o interpreta, o gesto que concretiza a obra, o gesto desferido no espaço pelo executante. O gesto que é agente e testemunha do tempo.
E do gesto haverá muito a dizer… com mais  tempo.




Sem comentários: