No ano lectivo de 1933/34, o pai de João de Freitas Branco tira o filho da Escola Alemã de Lisboa e matricula-o no Liceu do Carmo.
Em 1933/34 tinha sido adoptada na Escola Alemã de Lisboa a saudação nazi.
Eram obrigatórias as canções de louvor a Hitler. Intensificara-se o espírito militarista.
João de Freitas Branco nasceu no edifício do Conservatório de Lisboa.
Aos 16 anos já assiste o pai, Luís de Freitas Branco, na escrita de crítica musical no jornal O Século. É aluno do Conservatório em piano, canto, História da Música, composição, harmonia e contraponto. Pratica desporto. Tem convivência estreita com camponeses alentejanos e participa nos trabalhos de lavoura.
Assenta praça em Cavalaria 7.
Forma-se em Matemática.
Recém formado em matemáticas, João de Freitas Branco tenta-se pela carreira de docente universitário. Já depois de formado, um dia, por acaso, encontra-se com um dos seus ex-professores que o informa da abertura de concursos para o provimento de um lugar de assistente do departamento de Matemática da então chamada Escola Politécnica. O professor apressa-o a reunir a documentação necessária e assegura-lhe que o lugar será dele.
Mas calma, o lugar será dele se não houver outro interessado com média de curso superior à dele. Mas há, pelo menos um. E ele sabe que há, sabe das aspirações de um seu ex-condiscípulo com média final superior à sua. E a partir daí, o lugar só seria dele, João de Freitas Branco, se esse seu ex-condiscípulo ignorasse a abertura do concurso.
João de Freitas Branco decide telefonar a esse ex-colega a informá-lo da abertura do concurso. Desde logo, concorrendo o outro, João de Freitas Branco, concorrendo também, sabe que vai perder.
Integra um grupo de investigação matemática orientado por Rui Luís Gomes.
Tirado da Escola Alemã devido ao nefasto espírito militarista teutónico-hitleriano, apaixona-se por armas de fogo e está vai-não-vai para seguir a carreira das armas.
É grande adepto do futebol.
Dá recitais de piano e conferências, escreve critica musical, faz investigação musicológica e matemática. Começa a evidenciar o seu brilhantismo. Mas emprega-se no Automóvel Clube de Portugal.
Exerce alguma militância comunista, ou pelo menos oposicionista à ditadura, inclusivamente com contactos e actividades clandestinas.
Em 1947, é colaborador da Emissora Nacional.
Em 1947, colaborador da Emissora Nacional, o nome de João de Freitas Branco figura numa lista de oposicionistas ao regime salazarista, juntamente com outros funcionários (entre eles Igrejas Caeiro).
Todos os subscritores das listas da oposição que trabalham na Emissora Nacional são compulsivamente exonerados da função pública. Todos, menos João de Freitas Branco.
João de Freitas Branco estranha a clemência e solicita ao director da Emissora Nacional a sua exoneração compulsiva, tal como acontecera com os outros. E já agora também gostaria de conhecer as razões do tratamento excepcional que tivera.
Torna-se um dos mais brilhantes intelectuais portugueses, mas é empregado no Automóvel Clube de Portugal. Secretário geral adjunto, em part time, por forma a poder continuar as suas actividades musicais, a maior parte delas desenvolvidas a título gracioso.
De qualquer das maneiras, João de Freitas Branco não era homem para passar pelas coisas sem deixar marca, e mesmo no Automóvel Clube de Portugal deixou obra.
Em 1956 lança na então chamada Emissora 2, o programa O Gosto pela Música, que se mantém no ar por 29 anos.
As razões da sua não exoneração da Emissora Nacional em 1947 vem a conhecê-las mais tarde, e radicam numa questão moral, que, por acaso, sublinha muito, e apesar de tudo, a diferença dos tempos e dos homens. Salazar em pessoa, praticara, no caso de João de Freitas Branco, uma imoralidade extremamente moral.
O próprio Salazar, de seu punho, riscara o nome de Freitas Branco da lista de funcionários oposicionistas da Emissora Nacional a pôr na rua. Claro que Salazar era conhecedor das actividades políticas de João de Freitas Branco, mas também era sabedor do pormenor da nobreza da sua atitude no caso do concurso para assistente de matemáticas da Faculdade de Ciências.
Riscando o nome de João de Freitas Branco da lista de exonerações, Salazar terá justificado a sua atitude: “Quem se comporta daquela maneira no caso da Escola Politécnica só pode ser boa pessoa.” Asserção moral acertada e dignificante e que poderia atestar a alta estatura moral também de Salazar. Porém… porém, estatura moral exercida sobre uma tirânica imoralidade política. E com mais a subsequente imoralidade de subentender que todos os outros oposicionistas da Emissora que pôs na rua, e de quem não tivera conhecimento de nada de parecido ao caso de João de Freitas Branco na Escola Politécnica, não tinham ponta por onde se lhes pegasse e seriam certamente muito más pessoas.
Não se pretende aqui de maneira alguma alinhar no velho tom de fácil e descabelado panegírico os lugares comuns do costume quando se quer homenagear um vulto português. Mas também nunca é demasiado, no ambiente português, repisar algumas coisas quando se trata de uma personalidade de excepção, e vista a crescente carestia delas no nosso meio. Adversário da mediocridade, do provincianismo e do amadorismo, João de Freitas Branco teve sempre, do meu ponto de vista, para além da sua estatura intelectual, uma qualidade de figura moral da música portuguesa.
É o número de Novembro de um longínquo 2001 da revista Arte Musical que encontrei cá em casa, e lhe vem dedicado que me dá luzes sobre a figura de João de Freitas Branco.
Portugal, as suas elites. Pff. Portugal e a sua mediocridade, melhor dizendo, o seu provincianismo, o seu intriguismo, a sua decadência. Foi por gritante contraste que a figura de João de Freitas Branco, intelectual, músico, espírito científico, árbitro de estéticas e dirigente de instituições, se me impôs como paradigma do plano moral por onde idealmente cotejar coisas e pessoas da vida portuguesa – a musical, sim senhor, mas não só.
A começar logo pelo génio do formar sem ensinar que era marca sua.
O verdadeiramente erudito autor do Gosto pela Música não me bombardeava com exibições de erudição – e ainda que o fizesse… nele, pelo menos, essa erudição era genuina – nem ostentava aos ouvidos do pobre pateta musical que eu era a sua superioridade. Não precisava de o fazer.
Nobre espírito, uma das linhas de grande força do magistério de João de Freitas Branco era a amplitude disciplinar que o seu espírito abarcava e a capacidade integradora de matérias e saberes diversos num único veio comunicacional, impressionando um espectro diversificado de ouvintes cujos interesses culturais não seriam imediatamente musicais.
Ponto dois, e lição máxima de João de Freitas Branco na vida cultural como no trato pessoal que pude pessoalmente testemunhar: a postura aristocrática, o sentido de humor, a simpatia natural e a simplicidade. Uma imensa naturalidade de linguagem e de presença e uma ligação discursiva ao mundo real, aos factos da vida, à experiência pessoal dos que o ouviam.
Estou de peito aberto com todos os que o consideram personalidade insubstituível da vida e da música portuguesas.
Nunca conheci, nem com toda a certeza conhecerei, pela maneira como as coisas estão, designadamente no meio musical português, ninguém, absolutamente ninguém, que em elegância de maneiras e distinção pessoal se lhe pudesse comparar – e sem desprezo algum pelos homens (não muitos, ainda assim) que neste país deram enormes talentos e dedicações à causa musical.
João de Freitas Branco ficou insubstituído e insubstituível na desértica paisagem do pensar e do comunicar em português a grande música porque, além dos dons naturais – que quem não tem é melhor ficar em casa ou limitar-se a dar aulas na universidade – era homem de ir profundamente aos assuntos para melhor seduzir o ouvinte, em vez de o intimidar.
João de Freitas Branco, avançado de décadas em relação ao ambiente cultural português, suscitava, por exemplo, em quem o ouvia, a interrogação inteligente – aliás, tinha o empolgante, raríssimo, condão de fazer de quem o ouvia uma pessoa inteligente. Tudo ao contrário do pedagogismo corriqueiro, das hipérboles definitivas ou do normativismo académico.
Neste campo, após o seu desaparecimento andou-se para trás, muito para trás, e a pompa e a cátedra e o exibicionismo dos egos, coitados, e a doutorice, voltaram a dar cartas, nem que alguns, querendo-o embora, de João de Freitas Branco mais não consigam imitar do que o timbre de voz. E quanto à actual e campeante doutorice musical, por pouca sorte, João de Freitas Branco também nela teve algumas culpas no cartório. Mas já lá vamos…
João de Freitas Branco é um modelo de elite nacional que deveria ter sido seguido, que nunca deveria ser único nem ficar insubstituível, mas que, tristemente para a nação, foi único e ficou insubstituível.
João de Freitas Branco foi para mim o representante solitário de uma elite cultural nacional que desde há séculos nos fez falta, muita, muita falta, e que, por este andar, continuará a fazer.
Ponto três. As relações com o dinheiro – grande pedra de toque da estatura moral dos homens. Ou talvez melhor: a relação entre o dinheiro que podia ganhar e o seu projecto de trabalho, que o mesmo será dizer, o seu projecto de vida. O grande senhor com dificuldades financeiras. O grande intelectual que ganhava modestamente a sua vida e que mesmo assim podia gostosamente trabalhar de graça. A grande figura que podia ganhar muito melhor a vida, se nele não habitasse um acrisolado espírito de missão. O grande homem de cultura a quem os parentes nunca caíram na lama por se dedicar profissionalmente a actividades que pouco diziam à sua vocação, mas sempre sem perder de vista o ideal e o fio condutor dessa vocação.
Estou longe de pensar que João de Freitas Branco não gostasse de dinheiro como todos nós, ou que não precisasse de dinheiro, como todos nós. Mas era daqueles, como cada vez menos de nós, e interpretando o testemunho unânime dos que o frequentaram assiduamente, que punha a missão a cumprir, o imperativo da sua consciência e da sua lucidez e o prazer de realizar, à frente do lucro que pudesse ter.
Será difícil de compreender hoje em dia este tipo de relação com o dinheiro, quando ele até há bolsas governamentais para um fulano escrever romances destinados a morrer de poeira pelos séculos dos séculos; ou quando ninguém sequer sonha meter ombros a uma tarefa, mesmo intelectual ou criativa, sem ter um patrocinador; ou quando ninguém arrisca obra, mesmo insignificante, ou confrangedoramente medíocre, se não contar com um subsídio – de preferência do Estado, o que é mais fácil - , e quando é raro alguém empreender acção sem lhe ter sido feita uma encomenda formal.
Transcrevo, parte de um depoimento de José Sasportes. Diz ele assim:manifestava-lhe o meu desejo de o ver levantar grandes trabalhos musicológicos ou empenhamento em projectos mais vultosos do que a Juventude Musical Portuguesa ou a critica musical quotidiana. Parecia-me que as suas virtudes de modéstia, simplicidade, clareza e persuasão pedagógica, de dedicação às tarefas de base, o impediam de realizar plenamente o seu potencial. Mas o tempo ensinou-me que o espaço em que eu desejava ver evoluir João de Freitas Branco pura e simplesmente não existia. Era um espaço ideal a construir, a sua abnegação e o seu esforço eram vias para quem tentava construí-lo.
Se da acção de João de Freitas Branco no panorama musical português me fica, todavia, uma amargura, do homem João de Freitas Branco guardarei para sempre uma grande decepção. Uma amargura que deve no entanto ser entendida com alguma irónica distância.
No seu espírito científico, dialético, metódico e iluminado, e na sua visão ampla de estrangeirado (este “estrangeirado” é, no meu léxico, o mais alto elogio que posso fazer a um homem público português)… dizia eu, na sua visão ampla de estrangeirado, João de Freitas Branco deu luta à mediocridade, ao amadorismo e ao aleatório musical correntes cá na terra. O que foi da máxima relevância. Foi paladino de uma nova moral no acanhamento provinciano da vida musical portuguesa. Foi defensor da racionalização, da sistematizaçâo e do rigor no acto artístico, contrapostos ao obscurantismo pseudo romântico derivado de uma mentalidade geral predominantemente amadora. Foi campeão da divulgação do lado científico da música. Foi um herói da nossa modernidade musical. Toda a honra e toda a glória a João de Freitas Branco. Contudo…
Contudo... e aqui está a ironia… e a picada de amargura… João de Freitas Branco, brilhante pedagogo e ensaísta musical, não era doutorado, nem sequer oficialmente licenciado em música. E até porque esses estudos da ciência musical, se não foi ele a introduzi-los, foi ele certamente um dos que mais os impulsionou.
E seguindo com o jogo das ironias e das amarguras quanto à acção de Freitas Branco, diria que, sendo pioneiro da licenciatura em Ciências Musicais na Universidade Nova de Lisboa, cai-lhe inteirinha sobre os ombros, em primeira leva, a responsabilidade moral de, num país sem tradições musicais relevantes, ter, na minha opinião, invertido as prioridades e ajudado a produzir licenciados e doutores em música em desproporcionada e inútil quantidade para meio tão pequeno, e em comparação com o número exíguo de realmente bons executantes.
João de Freitas Branco, prestando serviços sem preço à musica portuguesa, ajudou à festa da doutorice nacional fazendo-a alastrar também à musica.
Mas foi um “mal” que havia necessariamente que fazer. E só foi “mal”, porque não foi acompanhado por real desenvolvimento entre nós da prática musical a altos níveis de exigência.
É mais fácil ser doutor em Ciências Musicais, do que ser um bom violinista de estante, um concertista de piano, um solista de clarinete, um preclaro chefe de orquestra, ou até um regente de banda filarmónica.
E como o português é um aproveitador nato e preza antes de tudo o resto a facilidade e o penacho, veja-se no que deu: gente demasiada para pomposamente discursar acerca de música; orquestras nacionais a abarrotar de instrumentistas estrangeiros; penúria aflitiva de gente capaz de bem fazer música. Aqui, como noutros campos, e como sempre, os efeitos perversos de uma acção meritória.
João de Freitas Branco fez mal à música portuguesa fazendo-lhe um bem inestimável, decisivo como foi nos primeiros passos para lhe erradicar a malvada pecha do subdesenvolvimento.
A música é coisa de pensar: primordial lição de João de Freitas Branco. Mas, antes de ser pensada, a música é coisa de ser feita e tocada, porque se não o for, nunca haverá o que pensar dela. Digo eu, claro.
João de Freitas Branco deu o pontapé de saída para a criação de um espírito doutoral em alguns jovens que se interessaram seriamente por música. Esse espírito doutoral e esse estatuto relativamente fácil de obter terá porventura inibido em alguns deles uma real paixão pela música. E até talvez tivesse empanado noutros o lado irracional do talento que eventualmente tivessem, ou a possível aspiração de ser artista em vez de doutor. Mas, claro, não era nada disto que João de Freitas Branco visava. Efeitos perversos de acções meritórias, lá está…
Agora, a decepção pelo desportista. Simplesmente isto: tendo João de Freitas Branco todas as condições humanas e morais para o ser, não o foi. Não foi o quê? O que é que ele não foi e deveria ter sido? Benfiquista. João de Freitas Branco era sportinguista, e parece que dos quatro costados.
Já sei que isto é uma parvoíce. Estou a brincar, que diabo!. Mas que querem… tenho pena.
João de Freitas Branco é emblema de uma idade da música portuguesa, que hoje, quase apostava, muitos considerarão ultrapassado. Com defeitos e virtudes, foi talvez demasiado grande para servir gente pequena, e cairá no esquecimento de um país sem memória.
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