Para as coisas boas há sempre mercado. A arte portuguesa não é exceção mas a atenção que o mercado internacional lhe concede hoje faz com que se dê nova vida à joalharia, prataria, mobiliário e porcelana chinesa de outros séculos, ou a nomes como Josefa de Óbidos, Paula Rego, Vieira da Silva, Helena Almeida ou Joana Vasconcelos
Há dois anos, na sede da leiloeira Sotheby’s, em Londres, um cliente português entrou determinado a comprar uma pintura do século XIX. Tinha refletido sobre o assunto e estava na capital inglesa para comprar o quadro. Quando passou a porta deparou-se com uma faixa gigante de um outro leilão. Nela estava impressa outra pintura, a peça principal que iria ser levada à praça nessa tarde. “Lembro-me bem deste quadro, quis comprá-lo há 30 anos em Paris”, disse ao responsável da leiloeira inglesa pelo mercado português, João Magalhães. Para serenar a memória daquela obra, acabara por comprar outro trabalho de um artista da mesma época mas não de tão boa qualidade. O colecionador saiu para almoçar com a família e voltou da parte da tarde. Comprou a peça do século XIX pela qual estava interessado e deixou-se ficar para o leilão. Quando a peça começou a ser licitada levantou a raquete. Não conseguiu deixar de licitar. “Teve de ser. Há 30 anos não conseguia, era muito dinheiro”, desabafou no final. Gastou perto de um milhão de euros.
Histórias como esta podem não ser muitas, mas colecionadores assim existem em bom número no nosso país. São elementos ativos no mercado internacional e também se interessam pela arte portuguesa de qualidade. De gosto renovado e mais internacional, estão normalmente ligados ao mercado financeiro, à medicina e à advocacia, são gente de sucesso e com poder de compra, com idades compreendidas entre os 40 e os 60 anos, como os descreve num estudo a socióloga francesa Raymond Moulin. Passam a barreira dos sete dígitos não com muita frequência mas quando querem realmente uma peça e nunca olham para ela como um mero elemento decorativo, o fator investimento está sempre presente. Têm critérios bem determinados, procuram peças de qualidade e raridade, e, por vezes, são capazes de vender obras da sua coleção para poderem adquirir um trabalho melhor. Em suma, o seu retrato não difere em nada do dos colecionadores internacionais que frequentam as praças de Londres, Nova Iorque, Paris, Hong Kong, Milão ou Genebra. Esses também cada vez mais interessados e atentos ao universo da arte portuguesa.
Para o confirmar basta olhar para os números. Nos últimos dez anos, afirma a Sotheby’s ao Expresso, os colecionadores nacionais venderam naquela leiloeira peças no valor de 135 milhões de euros, enquanto o montante que investiram em arte no mercado europeu ultrapassou os 60 milhões de euros. Esta movimentação de ativos e o crescente interesse pela arte portuguesa no circuito internacional levou a que as vendas de peças oriundas de Portugal tivesse duplicado de 2010 para 2015, só na Sotheby’s. Na Christie’s, a venda da coleção Champalimaud, em 2005, rendeu 57,3 milhões de euros, ficando apenas atrás da coleção Albert Rothschild, vendida em 1999 por 85,1 milhões.
A peça portuguesa mais cara de sempre vendida em leilão é, porém, de arte contemporânea. “The Cadet and his Sister” pertence a Paula Rego e foi vendido em julho do ano passado por 1,35 milhões de euros pela Sotheby’s. E aqui entramos verdadeiramente naquilo que é nacional e é bom. A juntar-se a Paula Rego, surge Maria Helena Vieira da Silva, Helena Almeida, Leonor Antunes, Joana Vasconcelos e, já na categoria de pintura antiga, Josefa de Óbidos. Também pela Sotheby’s, Josefa de Ayala e Cabrera, de resto, foi vendida em Nova Iorque, em janeiro de 2015 e este ano, no mesmo mês, repetiu a proeza. A primeira das obras está agora no Museu do Louvre, em Paris, a segunda foi comprada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. No entanto, é nas grandes áreas da prataria, joalharia, mobiliário, azulejaria e arte chinesa que a arte dita portuguesa mais faz mexer o mercado.
“São peças que datam dos séculos XVII e XVIII, algumas até do século XVI que retratam a arte da expansão portuguesa. Trabalhos que denotam todos os sítios e lugares do mundo por onde andámos, com características exóticas e extraordinárias”, conta João Magalhães. O responsável da Sotheby’s pelo mercado de arte português revela que a maioria dessas peças que agora estão sob o olhar atento da Europa e dos EUA (sobretudo da costa leste) andou perdida um pouco por todo o lado, tendo regressado em larga escala a Portugal durante os anos 80. Sem deixarem de fazer parte do gosto tradicional dos colecionadores portugueses, elas têm protagonizado um crossover interessante nos últimos anos, num vai e vem entre vendas e compras. É ele quem faz a triagem do que é mais interessante e existe em Portugal, separando aquilo que é potencialmente mais valorizado no mercado internacional daquilo que só poderá ser vendido localmente. “99% do que é vendido internamente não têm qualidade suficiente para estarem presentes num leilão de monta da Sotheby’s”, frisa.
João Magalhães vem uma vez por mês a Portugal para fazer avaliações gratuitas e tem sempre surpresas. Há duas semanas esteve cá com o diretor do departamento de arte chinesa da leiloeira e foram muitas essas agradáveis surpresas. Sem poder ser preciso, aponta-nos como exemplo, uma garrafa de porcelana chinesa raríssima, que a casa de Nova Iorque vai vender em leilão por uma estimativa de 120 a 150 mil dólares este mês. “Trata-se de uma peça datada de 1552, atribuída à coleção de Jorge Alvares, um aventureiro na China que viveu em casa de S. Francisco Xavier, onde acabaria por morrer, exatamente no mesmo ano da feitura da garrafa.” Já no mobiliário, é o look colonial que mais desperta a curiosidade e as bolsas dos colecionadores internacionais. Os bufetes de pau santo dos séculos XVII e XVIII são muito procurados, aquelas mesas de torcidos e tremidos — a mesa onde o governo toma posse no Palácio de Belém —, bem como os contadores e as cadeiras de couro lavrado têm muita saída. “Há muita oferta proveniente de uma produção forte quase até ao início do século XX. As características barrocas parecem ser muito estimadas lá fora e não é difícil estas peças chegarem aos 14 ou 17 mil euros. Este gosto exótico já não é de agora. Lembram-se da mesa em que o cruel Herr Flick da Gestapo recebia a Helga no famoso ‘Allô, Allô’?”
Trabalhos desta categoria são vendidos sobretudo no Treasures, um evening sale da Sotheby’s que só acontece em Londres e uma vez por ano. Estão lá as melhores peças, objects d'art, mobiliário, prataria e escultura. Foi num desses leilões que, há três anos, um conjunto de peças da coleção do rei D. Fernando, colocadas à venda pelos descendentes da família que a detinha, fizeram furor. E foi noutro desses Treasures que apareceu uma peça de escultura pertencente aos duques de Loulé. Em Genebra, o mercado joalheiro por excelência são as joias provenientes das famílias reais que chamam os compradores, as portuguesas estão incluídas nos lotes com melhores performances. E na Sotheby’s de Hong Kong também não têm feito má figura. De resto, a preferência dos colecionadores de todo o mundo vai para as peças portuguesas com cunho oriental, Cristos feitos em Goa, arte Nanban, Companhia das Índias, lacas e madrepérolas...
“Há ainda muito para fazer. O colecionador português precisa de apoio e a arte portuguesa de muito mais divulgação”, avisa João Magalhães. “Mas já se evoluiu muito no domínio do conhecimento do mercado”, garante. “É preciso sobretudo que as pessoas tenham mais consciência do valor real daquilo que têm. As expectativas são sempre muito elevadas e é necessário a correção sistemática dessas expectativas em relação ao mercado internacional do leilão.” João Magalhães fala em nome da Sotheby’s e da sua estratégia global: “Portugal é um dos mercados que já merecia mais atenção. Está nas mesmas coordenadas que São Francisco, Los Angeles, Bombaim, e Escandinávia.”
O reconhecimento do potencial do mercado português é geral e é-o também internamente, apesar de falarmos de valores diferentes. Estima-se que o mercado leiloeiro nacional ultrapasse os 50 milhões de euros ano e que o mercado primário, o das galerias, ronde a mesma ordem de grandeza, diz-nos Adelaide Duarte, coordenadora do curso de pós-graduação em Mercado de Arte e Colecionismo da Universidade Nova de Lisboa. Já a peça mais cara vendida num leilão em Portugal rendeu 620 mil euros: “Shechina”, de Anselm Kiefer, vendida pela Veritas. À parte os valores, o mercado renova-se pela chegada de outros colecionadores, tanto estrangeiros como portugueses. Os brasileiros, os chineses, os ingleses e os franceses são os que mais compram cá dentro e as suas preferências vão sem exceção para a arte nacional de outros séculos. A arte contemporânea não lhes suscita interesse. São os portugueses que a querem e estão cada vez mais contemporâneos. Os naturalistas — Malhoa, Silva Porto, Columbano e por aí fora — já não são os artistas no top 10, apesar de a procura ser grande sempre que aparece alguma obra destes autores, nem tão pouco os Cutileiros e Cargaleiros. O gosto e o interesse financeiro chega já a nomes como Francisco Tropa, Paiva e Gusmão, Rui Chafes, explica Igor Olho-Azul, da Veritas, e mantém-se em Paula Rego e Vieira da Silva. A artes decorativas e o design são outras das apostas fortes dos compradores nacionais, sempre muito ponderados e académicos nas suas escolhas, adeptos de tudo o que está catalogado e tem a aprovação generalizada de quem escreve sobre arte, mas também pessoas cada vez mais informadas.
No entanto, é ainda no domínio das chamadas antiguidades que o mercado está mais ativo. Objetos provenientes de coleções antigas já com critérios de seleção muito bons, de heranças como a dos duques de Palmela ou do Cadaval, são tão procurados pelos clientes nacionais como pelos estrangeiros, que hoje em dia estão cada vez mais preocupados em adquirir peças diferenciadoras para colocar em casa. A arte da expansão portuguesa também é mais procurada internamente e até museus da Ásia, dos EUA e da Europa a vêm cá comprar, afiança João Pinto Ribeiro, presidente do Palácio do Correio Velho, que garante que todo esse tipo de obra é mais barata no nosso país, incluindo os azulejos, também muito apreciados. Mas a tónica está mesmo nas peças relacionadas com o cristianismo mas trabalhadas em marfim no Ceilão, por exemplo. Mercado sempre em alta é o dos diamantes a partir de dez quilates, afirma ainda o responsável do Correio Velho. Já Pedro Alvim, um dos sócios da leiloeira Cabral Moncada, acredita que nos últimos dez anos existe uma mudança significativa no mercado da arte em Portugal. Trata-se, segundo ele, de uma mudança “cultural e sociológica”, que reflete a realidade do país: casas mais pequenas, mais baixas, mais provisórias e mais claras, onde já não há lugar para louceiros de pau santo porque se prefere ir jantar fora a receber. “O que as pessoas querem hoje é o plasma e as viagens. À parte disso, estão interessadas em casas despojadas mas com apontamentos de arte antiga, alguma arte moderna e contemporânea e objetos de design”, afirma Pedro Alvim.
Com um mercado estável e um volume de negócios a rondar os 10 milhões de euros, o que estas três leiloeiras portuguesas hoje procuram é alargar a sua clientela. E a aposta aí é unânime, todas propõem uma oferta maior e mais dinâmica através dos leilões online. Aos quais, de resto, os grandes colecionadores mundiais já aderiram há muito.
expresso.sapo.pt
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