história secreta da ARA
José Pedro Castanheira
Foi a 26 de Outubro de 1970 que a ARA se estreou, com a sabotagem do navio «Cunene», que transportava material para a guerra colonial. No livro «Acção Revolucionária Armada - A história secreta do braço militar do PCP», o principal cérebro da organização, Raimundo Narciso, conta como tudo se passou.
“Depois duma longa espera até às quatro da madrugada, foi com enorme alívio que vi chegar o Coutinho. Estava com o credo na boca com tamanha demora. Teriam sido apanhados pelo barco da polícia marítima? Alguma complicação com a Guarda Fiscal à saída do rio? A carga não se agarraria bem ao costado, debaixo de água, como convinha? O tempo passava lento e na rua não se via vivalma. Quem sabe se não se decidiram a sair pela praia em Algés em vez de sair na doca da Rocha do Conde de Óbidos. Animava-me. Ao volante do Opel verde escuro, no alto da Rua Barata Salgueiro via extinguir-se ao longe o movimento da Avenida da Liberdade. Há muito que tinha passado o último guarda nocturno e até a última prostituta. Contava as horas minuto a minuto.
Afinal a operação foi realizada sem incidentes. Apenas com alguns sustos pelo meio mas sem outras consequências. Quando se aproximaram do paquete Vera Cruz, destino prioritário das bombas, viram aproximar-se, rio acima, o barco patrulha da polícia marítima. Parou um pouco abaixo do paquete, mas em posição que não permitia a aproximação do Gabriel Pedro. Esconderam-se atrás de um escuro e longo cargueiro acostado à amurada, aguardando que a lancha da polícia marítima se fosse embora. De tempos a tempos vinham espreitar por detrás da popa do navio mas o barco da polícia não dava sinal de sair. O Gabriel Pedro queria esperar mas o «Meneses» lembrou-lhe os relógios que engravidavam as cargas explosivas e estavam regulados para as cinco da manhã. Era prudente despacharem-se. O Gabriel Pedro, talvez por não ser da sua conta, já se não lembrava desse importante pormenor e concordou que as latas começavam a ser uma companhia pouco recomendável. Optaram pelo Cunene que estava próximo e não desmerecia do Vera Cruz. Remaram rio acima e meteram-se ao interior da doca. Tiveram de se abaixar para passar entre as águas subidas da maré cheia e os ferros ferrugentos que baixavam da ponte levadiça que liga o cais à Avenida Vinte e Quatro de Julho.
Material utilizado pelos técnicos e operacionais da ARA. Tudo era planeado e ensaiado no laboratório montado em Arruda dos Vinhos. O paiol estava escondido no Maxial (Torres Vedras). Em vinte meses foram efectuadas onze sabotagens
O Cunene ali estava, mesmo encostadinho a eles. Olhado cá de baixo lembrava o Gigante Adamastor, mas o sossego da doca da Rocha do Conde de Óbidos, o Gabriel Pedro ali ao lado, sereno e familiar, e em especial a imobilidade paquidérmica do grande cargueiro cumpliciavam-se para dar ao local e ao momento um ar mais de Cabo da Boa Esperança que das Tormentas. O Cunene parecia colaborar tapando a luz dos candeeiros da doca e deixando na sombra o barco a remos. Gabriel Pedro aproximou ainda mais o barco do graneleiro. Carlos Coutinho apalpou o costado do navio para verificar se estaria suficientemente limpo para a ele aderirem os ímanes. Já que trouxera uma escova de aço achou melhor tornar útil o instrumento e dar uma escovadela na chapa pintada do barco, uns palmos abaixo da linha de água. A colocação da lata com o TNT não foi fácil por ter de ficar toda debaixo de água. O plano não previa que Carlos Coutinho saísse à água nem fizesse de mergulhador. Nem convinha molhar a roupa, pois tinha de sair enxuto à cidade e sem aspecto marítimo. No local as dificuldades revelaram-se maiores. Aí tiveram de conjugar esforços e saberes e depois de várias ameaças do barco em atirar o Carlos à água, este conseguiu finalmente colocar a carga no sítio certo com a ajuda hábil do seu companheiro na manobra do barco. Gabriel Pedro remou então para a popa do Cunene e aproximou-se do hélice para que Carlos Coutinho pudesse situar a segunda carga explosiva próxima do veio daquela montanha de aço. Com a experiência da primeira colocação Carlos Coutinho sentia-se quase um veterano e foi à primeira tentativa que colou junto do veio do barco a lata de tinta agora reciclada em poderosíssima bomba naval. Verificou que estava bem presa e não se soltava.
O Gabriel Pedro remou forte para junto dos batelões que descansavam dentro da doca. O barco deslizava em segredo pelas sombras do cais. Os remos entravam na água sem ruído e a compasso, guiados por mão experiente. O Carlos ainda se ofereceu para remar mas o Gabriel Pedro, apesar de muito cansado da viagem de milhas e milhas, abanou, negativo, com a cabeça.
- Ele não percebia nada daquilo, dizia-me o Gabriel Pedro, no dia seguinte. Dei-lhe os remos quando vínhamos para baixo, para descansar um bocadinho, mas ele não sabia remar. Tirei-lhos logo das mãos.
Quando mais tarde comentei com o Coutinho o seu fraco estilo de remar, protestou. Que não senhor, até rema muito bem, o Gabriel Pedro é que é um picuinhas, que os remos não entravam na água como devia ser e outras chinesices.
Enfim, critérios, pensei, dando razão ao Gabriel Pedro, que é quem sabe de remos. Na doca não conseguiram encontrar as escadas de pedra na amurada, porque toda a muralha estava ocupada com navios e batelões. A subida para terra tornou-se de repente uma dificuldade inesperada. A única possibilidade era trepar aos batelões. Assim fizeram depois de abandonarem o valoroso barco a remos a uma vida livre e sem dono. Tiveram de saltar duma para outra embarcação, e, com o balancear, despertaram em sobressalto o habitante solitário duma delas que dormia debaixo dum oleado e não ganhou para o susto. Valeu-lhe o Gabriel Pedro com um gesto rápido a responder de rijo e com voz calma: que durma bem que eles vão fazer o mesmo depois da missão cumprida. Mais à frente tiveram de saltar como uns fantasmas por cima dum pescador assustado que se aquecia numa fogueirinha no fundo dum batelão, enquanto preparava iscos.”
(Do Capítulo I – A Sabotagem do Cunene)
O atraso deve-se a duas razões fundamentais: as sucessivas ofensivas da PIDE contra o PCP,
A decisão política de criar a ARA data de 1964, mas ela só começou a actuar seis anos depois. Porquê esta demora?
|
Raimundo Narciso, com Manuel Santos Guerreiro, ao volante da sua furgoneta que serviu para o transporte de explosivos e várias operações da ARA.
|
desmantelando várias organizações e levando à prisão numerosos quadros - entre os quais Rogério de Carvalho, o primeiro dirigente da ARA, detido em finais de 1965. A segunda razão foi o relativamente fraco empenhamento da direcção bdo PCP na concretização das chamadas «acções especiais».
Começou por frequentar um curso de guerrilha em Cuba.
Em 1965. Saí legalmente do país, no comboio Sud-Express, e fui até Moscovo, onde me reencontrei com o meu controleiro, Rogério de Carvalho, e encontrei pela primeira vez Álvaro Cunhal. Estive em Moscovo cerca de 15 dias, com o Francisco Miguel, o Manuel Rodrigues da Silva e outros dirigentes do PCP. Fui depois para Cuba, onde estive três meses e meio, com o Rogério. Estava previsto que fossem mais dois militantes.
Que preparação receberam em Cuba?
Não foi propriamente instrução militar. Foi mais manejo de armas e explosivos - mas isso já eu dominava, da minha longa experiência militar. O mais aliciante foi conhecer o país, de lés a lés. Fomos instalados numa vivenda, num bairro de luxo mais ou menos equivalente ao nosso Restelo, que antes de Fidel Castro estava vedado a cubanos pretos - à excepção da criadagem.
Em toda a existência da ARA, só você e António Pedro Ferreira se mantiveram sempre ligados à organização.
Fomos os únicos. Houve muitas prisões, logo de início. Seis meses depois de entrarmos no país o Rogério de Carvalho foi preso. O mesmo sucedeu a várias pessoas que nos deviam apoiar. Fiquei nove meses na clandestinidade sem qualquer ligação ao partido. E sem dinheiro. Tive de viver da quotização de uns poucos militantes que tinha e recorri à família, através da minha irmã. Só no Verão de 1966 é que a direcção do partido conseguiu encontrar-me - e por mero acaso. Foi o Ângelo Veloso quem foi ao encontro combinado, na mata de Sintra.
Foi então frequentar um segundo curso, de formação política, na URSS.
A direcção do partido propôs que eu fizesse uma pausa no meu trabalho. Estive nove meses na Escola Central da Konsomol, em Moscovo, onde conheci a minha futura mulher, Maria Machado. Quando regressei, em 1967, retomei os contactos com Ângelo Veloso e com os quadros com quem tinha trabalhado.
Entretanto, há um segundo grupo que vai receber formação de guerrilha em Cuba.
Julgo que seriam uns quatro. Nenhum regressou a Portugal. Uns desistiram, outro foi preso em Espanha
Em 1968, há um terceiro grupo a receber formação militar, desta vez em Moscovo.
Era um grupo de três ou quatro, entre os quais Francisco Miguel e o «Almendra». Mais tarde, entre Julho de 71 e Maio de 72, haverá um quarto curso, também na URSS.
É o curso frequentado por Jaime Serra...
... e por outros operacionais já experimentados, como o Carlos Coutinho, o Ângelo de Sousa e o António Eusébio.
Mas nem por isso a ARA suspendeu as suas acções.
Exacto. Eu e o Francisco Miguel assegurámos a direcção da ARA, que nesse período desencadeou três acções: o assalto ao paiol na serra da Amoreira, a sabotagem do Comiberlant (o quartel da NATO) e o rebentamento do armamento no navio Muxima.
Operacionais da ARA
notas biográficas
Gabriel Pedro
Em 1971
Nasceu em 1898. Faleceu em 1972,em Paris. Natural de Lisboa.. Casado com Margarida Tavares Fernandes Ervedoso. Pai de Edmundo Pedro, de mais dois filhos e uma filha. Deportado para Timor, em 1925 e para a Guiné Bissau, em 1928, evadiu-se ambas as vezes. Preso 9 anos no Campo de concentração do Tarrafal. Exilado em Paris veio a Portugal clandestinamente participar na acção do Cunene. Entrou e saiu do PCP várias vezes sendo militante quando faleceu.
| ||
Carlos Alberto da Silva Coutinho
Em 1970 e 2000
Pseudónimo Meneses. Natural de Fornelos, Vila Real. Nasceu em 1943. Casado com a Antonieta. Pai da Ana e da Marta. Arquivista em O Século em 1970. Na guerra colonial de 1966 a 69, em Moçambique. Ligação à ARA desde Julho 70. Preso de Fevereiro de 73 a 25 Abril de 74. Participou nas acções do Cunene, Escola da PIDE, Tancos, Corte das Telecomunicações – reunião da NATO, Corte da rede eléctrica em 1971 e 72. Jornalista. Obra publicada: duas novelas, dois volumes de prosa jornalística, cerca de uma dezena de peças de teatro.
| ||
Ângelo Manuel Rodrigues de Sousa
Em 1970 e 1987
Pseudónimos: Tavares e Miguel
Natural de Espinho. Nasceu em 1948 e faleceu em 1990. Casado com Fernanda Castro. Pai da Sara, da Rute e da Raquel. Empregado bancário. Piloto de helicópteros. Procurado pela PIDE com fotografia na televisão, jornais e postos de todas as polícias. Clandestinidade de Março de 1971 a 25-04-74. Ligação à ARA desde Agosto 70.
Participou na Acção de Tancos 8-3-71) e do corte da electricidade na eleição do Presidente da República Américo Tomás (8-72).
| ||
António João Eusébio
Em 1968 e em 1980
Natural de Corte Gafe de Baixo, Mértola. Nasceu em 1943. Operário estucador da construção civil. Esteve na guerra colonial, em Angola de 1964 a 66. Ligado à ARA desde Junho 70.
Participou nas acções do Cunene, Escola Técnica da PIDE, Tancos, Corte das Telecomunicações, Corte da Rede Eléctrica em 1971 e em 1972. Na clandestinidade de 1972 a 25-4- 1974.Funcionário do PCP.
| ||
António Pedro Ferreira
Em 1968 e em 2000
Pseudónimo Jordão. Nasceu em 1936. Natural de Lisboa. Casado com a Maria José. Pai do Pedro, do Sérgio e da Catarina. Serviço militar entre 1958 e 69. Esteve na guerra colonial em Angola, de 1961 a 63. Ligação à ARA desde 1965. Participou no apoio às acções do Cunene, Cais da Fundição, Muxima, Corte Rede Eléctrica em 1971 e em 1972. Economista. Foi Presidente da Câmara dos Despachantes. Militante do PCP de 1958 a 1989. Fundador da Plataforma de Esquerda. Aderiu ao PS em 1999.
| ||
Manuel Policarpo Guerreiro
Em 1971 e em 2000
Nasceu em 1943. Natural de Odemira. Divorciado. Pai da Vera e da Tânia. Pintor da construção civil nos anos 70. Esteve na guerra colonial em Moçambique, como furriel, de 1966 a 69. Ligação à ARA desde Julho de 1970. Participa nas acções do Cunene, Assalto ao Paiol, Comiberlant, corte da rede eléctrica em 1971 e em 1972. Preso de Fevereiro 1973 a 25-4-74. Empresário da construção civil em Faro e dirigente da Confederação das PME da Construção Civil
| ||
Manuel dos Santos Guerreiro
Em 1970 e em 2000
Nasceu em 1943. Natural de Grândola. Motorista nos anos setenta. Casado com a Luísa. Pai do Carlos e da Tânia. Serviço Militar Obrigatório de Janeiro de 64 a Outubro de 69. Ligação à ARA desde 1971. Participa no corte da rede eléctrica em 1971 e 72, Assalto ao Paiol, Comiberlant. Preso em Março de 1973 a 25-04-74. Empresário. Vive em Grândola.
| ||
Ramiro Rodrigues Morgado
Em 1968 e em 2000
Nasceu em 1940. Natural de Manique do Intendente, Azambuja. Casado com a Maria Emília Pai da Sílvia. Lapidador de diamantes na DIALAP. Serviço Militar Obrigatório em Moçambique, de 1962 a 64 onde a guerra se iniciou alguns meses antes de regressar. Ligação à ARA em Julho de 1970. Participou no Corte da Rede Eléctrica, em 71 e em 1972 e no apoio às acções do Cunene, de Tancos, e do Muxima. Preso de Março de 1973 a 25-04-74.
| ||
Amado de Jesus Ventura da Silva
Em 1970 e em 2000
Nasceu em 1945. Natural de Lisboa. Casado com a Isabel Sequeira. Pai do Pedro, do Manuel e do Francisco. Estudante de Coimbra na República dos 1000-y-Onários e depois em Lisboa no Instituto Superior de Agronomia. Sem filiação partidária. Oficial miliciano «Ranger», de 1967 a 70. Ligado à ARA desde 1971. Participou no Assalto ao Paiol, Corte da Rede Eléctrica em 1971 e em 1972. Preso de Fevereiro de 1973 a 25-4-74. Engenheiro agrónomo na Zona
Agrária de Caldas da Rainha.
| ||
Victor d’Almeida d’Eça
Em 1975 e em 1992
Nasceu em 1937. Faleceu em 1998. Divorciado. Dois filhos. Funcionário do Ministério da Agricultura. Actividade na área da Defesa do Consumidor, nomeadamente em programas radiofónicos. Ligação à ARA desde 1966. Participou na preparação e apoio das acções do Cunene, corte da corrente eléctrica em 1971 e 72, Central de Telecomunicações, Assalto ao Paiol e Comiberlant.
| ||
Jorge Trigo de Sousa
Em 1970 e em 1999
Pseudónimo Abel. Nasceu em 1941. Natural de Lisboa. Estudante do IST, em Lisboa. Casado. Um filho. Ligação à ARA desde 1966 como independente. Participou no assalto ao Paiol, no apoio às acções do Comiberlant e do Muxima. Esteve na guerra colonial, em Moçambique de 1972 a 74. Praticante de Judo e «Aikidô», professor e Presidente da Federação Nacional de «Aikidô». Membro da Associação Damião de Góis, promotor e quadro do PRD na sua fase inicial. É engenheiro civil, vive em Lisboa.
| ||
Mário Wren Abrantes da Silva
Nasceu em 1950. Natural de Lisboa, Estudante de Agronomia no ISA em Lisboa. Ligação à ARA em 1972. Participou no corte da Rede Eléctrica em 1972. Preso de Março de 1973 a 25-04-74. Membro do PCP a partir de 1975. Casado. Funcionário do PCP nos Açores. Membro do Comité Central do PCP desde 1988.
| ||
José Augusto de Jesus Brandão
Em 1999
Nasceu em 1948. Natural de Lisboa. Operário metalúrgico. Esteve na guerra em Moçambique de 1969 a 1971. Ligado à ARA desde 1972 como independente. Participou no reconhecimento de vários objectivos.
Preso em 27-03-73. Depois de 25 de Abril de 1974 empregado da Carris e dirigente sindical. Membro da Comissão Nacional (1980-88) e da Comissão Política (1985-87) do PS.
Obra publicada: quatro ensaios sobre temas de História.
raimundo.no.sapo.pt
|
Sem comentários:
Enviar um comentário