O legado dos EUA no Iraque, dez anos após a invasão
O Iraque é hoje um Estado parasitário de sua população. A corrupção é regra geral, a violência nas ruas é diária e rarearam bairros mistos com xiitas, sunitas e curdos. Mas o legado dos EUA deixado ao país não começou a ser construído com a invasão de 2003, e sim trinta anos antes, com as sanções econômicas lançadas após Saddam ter invadido o Kuwait.
Patrick Cockburn – The Nation
Dez anos atrás, iraquianos, ainda que originalmente opostos a eles, esperavam que a invasão dos Estados Unidos e a ocupação trariam ao menos um fim ao sofrimento que enfrentavam sob as sanções e outros desastres consequentes da derrota na primeira Guerra do Golfo, de 1991. Hoje, o povo em Bagdá reclama ainda o mesmo estado de permanente crise causada pela violência criminosa e sectária, corrupção estrutural, infraestrutura fragilizada e um governo disfuncional. Muitos iraquianos dizem que o que realmente querem em 2013 é o mesmo que queriam em 2003: a possibilidade de visto para outro país, onde podem conseguir emprego.
Bagdá já foi uma cidade onde sunitas, xiitas e cristãos viviam lado a lado, conscientes de suas crenças distintas, mas não amedrontados um pelo outro. Isso tudo mudou durante a guerra civil de 2006-2008, que, em seu pico, matou mais de 3.700 iraquianos num só mês, e desses mortos a grande maioria era de Bagdá. "Não existem mais tantas áreas mistas hoje", diz uma mulher xiita que vive com sua mãe num distrito de maioria sunita e que tenta esconder sua identidade dos seus vizinhos sunitas. A mulher está preocupada com a possibilidade de ser interrogada a fim de entregar evidências que incriminem um destes vizinhos, que está na prisão acusado de matar um xiita cinco anos atrás. Ela suspeita que o detido tenha deixado munições em frente a sua casa como ameaça; a mulher não quer entregar qualquer evidência, porque isso traria às claras seu grupo (sunita) e a deixaria exposta a retaliações.
A guerra civil entre os grupos islâmicos teve maior intensidade em Bagdá e províncias centrais do Iraque, onde vive um terço dos 33 milhões de iraquianos. Ela terminou com uma derrota decisiva para os sunitas, que foram empurrados e expulsos do leste de Bagdá e foram comprimidos e cercados por xiitas no oeste da mesma cidade. Iraquianos pacíficos dizem que "tudo está seguro agora", mas não agem como se acreditassem de fato nisso; ficam nervosos quando entram em áreas hostis controladas por outra comunidade ou, se vivem num distrito misto, entram em pânico com a menor ameaça, como um slogan agressivo deixado numa parede. Depois de tudo o que aconteceu, ninguém está se arriscando. Ainda hoje, há constantes atentados e assassinatos; 220 iraquianos mortos e 571 feridos só em fevereiro.
Desemprego e corrupção
Ali, Abdul-Karim, um corretor bem-sucedido, disse-me que as pessoas estão constantemente tensas, e fogem por boatos. Mas me contou sobre as dificuldades de finalizar uma venda que ele estava tentando providenciar em Bagdá. Disse-me que seu cliente neste caso era um capitão oficial da inteligência de Saddam Hussein, com uma fazenda numa área sunita muito violenta na periferia sul de Bagdá chamada Arab Jabour. O capitão mudou-se de lá porque fora ameaçado pela Al Qaeda por se recusar a cooperar com eles; no entanto, seu pai octogenário se recusa a deixar a fazenda. Neste entremeio, o capitão foi feito prisioneiro pelo governo por seu cargo na polícia secreta de Saddam.
Um problema na compreensão do Iraque de hoje é que os sucessos militares americanos depois de 2007 foram hiperbolizados afim de não deixar a última retirada militar, no fim de 2011, parecendo uma confissão do fracasso. A insurgência – a ofensiva de 30 mil reforços americanos em 2007 – foi louvada pela mídia ocidental naquela época por acabar com uma guerra civil e ter derrotado os rebeldes sunitas, embora na realidade tenha sido um menor bom acordo. Na prática, o estabelecimento das tropas e grandes prédios com paredes imensas de concreto durante a intervenção simplesmente calcou o novo mapa sectário de Bagdá, deixando os xiitas dominantes. Seus territórios são facilmente identificados por conta dos banners religiosos que cobrem os prédios e pôsteres que mostram líderes e mártires, como Muqtada al-Sadr e seu pai, Imam Ali e Imam Hussein, colados em todas as paredes.
Os banners e pôsteres não são só presos nas casas civis, mas em postos militares e polícias, quartéis e até prisões. Não nos deixam qualquer dúvida de que grupo governa. Isso é importante, não menos porque a folha de pagamento do governo é de três milhões de pessoas, e pagar esses empregados absorve grande parte dos 100 bilhões/ano que o governo recebe do petróleo. Acesso à influência política é critério para conseguir um emprego – embora a propina também seja necessária – num país onde pelo menos um terço da população trabalhadora está desempregada. O sistema funciona como uma gigante máquina Tammany Hall (sociedade política), em que os trabalhos são distribuídos de acordo com a lealdade partidária, independente do mérito. Todo ministério é o feudo de um partido ou outro, o que rigorosamente exclui os outros demais partidos ou membros de outras comunidades. Ao fim, os xiitas são incluídos e os sunitas excluídos. Um sunita pacífico tem emprego num ministério onde a norma é que só com propina consegue-se algo, nega que receba tais propinas, mas diz isto porque os outros trabalhadores de sua seção são xiitas, "eu sou aquele quem será acusado de corrupção".
Existem expansão e enraizamento da corrupção em todos os níveis no Iraque. Pessoas na prisão, ainda que inocentes de suas acusações, devem pagar para serem libertos; oficiais que querem ser promovidos na polícia ou exército devem pagar; um civil pacífico trabalhou muito e fez de tudo o que era necessário para entrar e ascender no exército e ser coronel dentro de meses, mas terá de subornar onze pessoas antes de isso acontecer. Um ministro oficial descreve o sistema como uma "cleptocracia institucionalizada". O governo de Nouri al-Maliki, primeiro ministro desde 2006, manobra contratos para aliados e facções políticas que ele quer cultivar. Dinheiro é dado para contratos independente de terem sido tratados ou não. Os efeitos podem ser vistos por toda Bagdá, onde não existe nenhuma nova construção. Eu estive lá recentemente durante dois dias de chuva pesada. Desde 2003, sete bilhões de dólares têm sido gastos num novo sistema de esgoto, que deveria cuidar da água pluvial. Mas ficou evidente que ou não há novos encanamentos de esgoto ou eles não funcionam, porque foi preciso algumas horas para as ruas de Bagdá tornarem-se piscinas escuras de água e esgoto. Eletricidade sofre comumente com 2 horas funcionando e outras duas não, e existe racionamento de água potável.
De fato, há pouco que se mostrar quando levamos em conta os 60 bilhões de dólares que o EUA gastou em projetos de reconstrução. Prova disso é que muitos desses projetos foram levianos ou fraudulentos (para mais leia o artigo de Peter Van Buren, "Why the invasion of Iraq was the single worst foreign policy decision in American History", no TheNation.com), mas isto vai além. A corrupção no Iraque é tão destrutiva ao desenvolvimento por sua natureza ser maior que meramente a de boletos de pagamentos. Maliki ameaça com medidas anticorrupção para intimidar seus inimigos e manter seus aliados na linha. Um empresário americano me contou num ministério que ele estava negociando, pensava que 90% dos oficiais não aceitassem propina, possivelmente porque não lhes eram oferecidas, mas estes 90% estavam tão vulneráveis à corrupção quanto os outros 10%. O caminho mais seguro para aqueles que não recebem propinas é negar seus salários, não fazer nada, não assinar qualquer documento e não concordar com nenhum novo projeto sequer. O resultado desse cenário é a paralisia do sistema administrativo (o governo de Maliki tem um exército, polícia e inteligência fortes, além de controlar milhões de empregos e o orçamento estatal. Ao mesmo tempo, não tem nenhuma autoridade em territórios curdos e poder limitado em províncias de maioria árabe-sunita).
Colapso
O avanço de um Estado tão parasitário de seu povo tem mais a ver com as ações americanas anteriores do que com as posteriores à invasão de 2003. A destruição da economia e sociedade iraquianas começou trinta anos antes, em 1990, quando sanções das Nações Unidas foram impostas, sob pressão dos EUA, depois de Saddam ter invadido Kuwait. O que levou a um cerco econômico de trinta anos impiedoso que não tirou Saddam do poder, e no entanto levou à pobreza milhões de iraquianos. Saúde e educação entraram em colapso e o crime se tornou frequente. O programa "Petróleo para Comida" durante esse período permitiu supostamente suprimentos essenciais de chegarem no Iraque, mas nunca era o bastante. Em 1996, visitei um vilarejo chamado Pejwin na parte curda do Iraque, fora dos controles de Saddam, onde o povo foi dizimado por tentar sobreviver desarmando e extraindo explosivos da mina altamente perigosa, Mina Valmara. Eles venderiam os explosivos, e lâminas de alumínio (o que envolve o explosivo) por alguns dólares. Muitos destes moradores perderam mãos e pés.
Por causa das sanções, a sociedade iraquiana estava já em dissolução quando os Estados Unidos invadiu o país em 2003. O colapso foi contido graças ao braço forte de Saddam. Quando este foi removido, já havia uma ferocidade social revolucionária instalada pelo saque de Bagdá. Um oficial de alto escalão disse que "o Iraque acabou por viver sob um sistema que combina alguns dos piores elementos da gestão de Saddam Hussein e da ocupação americana". Levará, é evidente, muito tempo para se recuperar.
Tradução: Caio Sarack, para Carta Maior
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