As memórias do barbeiro de Hitler
Um texto de Woody Allen
Expresso 08-04-1978
«Woody Allen está presente hoje nas páginas do Expresso com um texto desopilante e bem característico do seu estilo de humor, que traduzimos da última edição francesa de "PlayBoy". Embora muito humor tenha ficado decerto pelo caminho de duas traduções, eis Woody Allen em plena forma, feito copiógrafo das memórias fabulosas do barbeiro de Hitler.» In, Expresso 1978
Cartoon de António que acompanhava o texto de Woody Allen. Copiado do Expresso.
A TORRENTE aparentemente inesgotável de obras publicadas sobre o III Reich prossegue com a próxima publicação das memórias de Friedrich Schmeed, o barbeiro mais célebre da Alemanha durante a Guerra, que tinha a seu cargo as cabeças de Hitler e de numerosos dignitários do exército e do governo. Como foi referido durante o processo de Nuremberga, Schmeed, que se encontrava sempre no momento oportuno em todos os lugares onde a sua presença era reclamada, tinha uma "visão exaustiva dos acontecimentos" e era por isso particularmente qualificado para redigir este desmistificador guia secreto da Alemanha nazi.
Na Primavera de 1940, um imenso Mercedes parou defronte da minha barbearia, na Koenigstrasse n.º 127, e Hitler entrou, "Quero apenas um "caldinho" — disse-me —, não corte muito por cima". Pedi-lhe para esperar alguns minutos porque Von Ribbentrop estava à sua frente. Hitler replicou que tinha pressa e pediu a Ribbentrop para lhe ceder o lugar, mas Ribbentrop argumentou que o prestígio do Ministério dos Negócios Estrangeiros não lhe permitia fazê-lo. Hitler fez uma rápida chamada telefónica e Ribbentrop foi imediatamente destacado para o Afrika Korps. Hitler teve então direito ao seu corte de cabelo.
Este tipo de incidente era habitual. Acontecia Goering reter Heydrich na polícia sob falsos pretextos, porque queria a cadeira junto à janela. Goering tinha, aliás muitas vezes a mania de cortar o cabelo montado num cavalo de pau. O Alto Comando nazi melindrava-se mas não podia fazer grande coisa. Um dia, Hesse provocou-o: "Hoje, Marechal, sou eu que monto o cavalo de pau". "Impossível, está reservado", retorquiu Goering. "Tenho ordens pessoais do Fuhrer. Foi decidido que eu tinha o direito de montar o cavalo de pau para cortar o cabelo''. Hess lançou imediatamente a mão à pena e escreveu uma carta a Hitler, na frente de Goering, lívido de raiva. Profundamente vexado por Hess, declarou que a partir daquele momento passaria a ser a sua mulher a cortar-lhe o cabelo com uma tijela. Hitler desfez-se a rir com a noticia, mas Goering, que tinha intenções sérias, levaria por diante o seu propósito, não fora o facto de o Ministério do Exército não ter satisfeito a sua requisição de tesouras dentadas.
Perguntaram-me em Nuremberga se eu estava consciente da implicação moral das minhas actividades. Como já afirmara perante o Tribunal, eu não sabia que Hitler era nazi. Na verdade, durante anos pensei que ele era um simples empregado dos telefones. Quando, finalmente, percebi com que monstro lidava, já era demasiado tarde para arrepiar caminho, pois comprara entretanto a mobília a prestações. No fim da guerra. pensei deixar-lhe algumas farripas de cabelo no pescoço, desapertando discretamente a toalha, mas no último instante os meus nervos fraquejaram. Um dia, em Berchtesgaden, Hitler virou-se para mim e disse: "Será que eu ficaria bem de patilhas?". Speer gracejou com a ideia, o que ofendeu Hitler:"Estou a falar a sério, Speer" — declarou — e penso que as patilhas me ficariam bem". O palhaço obsequioso que era Goering atalhou imediatamente: "O Fuhrer com patilhas, que excelente ideia!" Speer continuava a não estar convencido. Ele era, de resto, o único a ter a franqueza de aconselhar ao Fuhrer um bom corte de cabelo sempre que necessário. "Isso dará muito nas vistas — insistiu — além de que é tipicamente o género de coisas que o Churchill é capaz de usar." Hitler entrou em delírio: "Será que Churchill tem mesmo a intenção de deixar crescer as patilhas? Se sim, quanto e quando?", quis saber. Himmler, que, em princípio, dirigia os serviços de Informações, foi convocado de imediato. Goering, aborrecido com a atitude de Speer, segredou-lhe: "Porque é que você se mete nisso? Se ele quer deixar crescer as patilhas é lá com ele". Speer, que geralmente se distinguia por um tacto excessivo, chamou-o hipócrita e qualificou-o de "gordo como um pote em uniforme alemão". Goering jurou que o outro havia de pagar o insulto, e mais tarde correu o rumor de que enviara uma patrulha da S.S. fazer-lhe a cama.
Himmler chegou num estado de grande exaltação. O telefonema convocando-o para a Berchtesgaden surpreendera-o no meio de uma lição de sapateado. Além disso, receava que a razão da chamada fosse o desvio de um carregamento de chapéus ponteagudos que prometera a Rommel para a ofensiva de Inverno (Himmler não era habitualmente convidado a jantar em Berchtesgaden porque tinha vista curta e Hitler não suportava vê-lo deixar cair os talheres para debaixo da mesa). Himmler pressentia que alguma coisa não estava a correr bem pois Hitler chamou-o "míope", o que fazia sempre que estava aborrecido.
Bruscamente, o Fuhrer voltou-se para ele e perguntou de chofre: "É verdade que o Churchill vai deixar crescer as patilhas?"
Himmler corou de surpresa e confusão, gaguejando que, com efeito, corriam rumores em relação às patilhas de Churchill — mas nada de oficial. Quanto ao tamanho e ao número, a estimativa apontava para duas patilhas de tipo médio, mas não havia informações detalhadas. Hitler berrava, batendo com o punho na mesa (o que fazia rejubilar Goering supondo triunfar sobre Speer). Em seguida, Hitler puxou de uma carta de operações e mostrou-nos corno tencionava cortar o abastecimento de toalhas quentes à Inglaterra. Bloqueando os Dardanelos, Doenitz poderia impedir que as toalhas quentes fossem desembarcadas e colocadas sobre as caras dos britânicos impacientes. Mas a questão fundamental continuava a ser a de saber se Hitler poderia derrotar Churchill no terreno das patilhas. Himmler objectou que Churchill tinha um bom avanço e que seria talvez impossível alcançá-lo. O imbecil optimista que era Goering deu a entender que as patilhas do Fuhrer cresceriam certamente mais depressa, em particular se reuníssemos todas as forças vivas da nação num esforço supremo.
Von Runstedt declarou numa reunião do Estado-Maior que. na sua opinião, era um erro deixar crescer as patilhas simultaneamente nos dois lados e aconselhou a concentrar todos os esforços sobre uma única patilha de cada vez. Mas Hitler afirmou que se podia ocupar das duas patilhas ao mesmo tempo. Rommel apoiou Von Rundstedt: "Se se apressar muito, meu Fuhrer — disse — elas não vão crescer por igual". Hitler tornou-se louco furioso e anunciou que este assunto apenas dizia respeito a ele próprio e ao seu barbeiro. Speer prometeu triplicar a nossa produção de creme de barbear até ao próximo outono, o que pôs Hitler de bom humor. Depois, durante o Inverno de 1942, os russos lançaram uma contra-ofensiva e o projecto "patilhas" foi abandonado. Hitler estava deprimido, receando que Churchill aparecesse brevemente em todo o seu esplendor enquanto ele permaneceria "vulgar". No entanto, Churchill acabaria por abandonar, por sua vez, o projecto "patilhas' porque muito oneroso. Uma vez mais, o Fuhrer tivera razão.
Depois do desembarque dos Aliados, Hitler começou a ficar com os cabelos secos e despenteados, o que, embora motivado em parte pelo sucesso dos adversários, era também devido ao facto de, a conselho de Goebbels, ter passado a lavar a cabeça todos os dias. Quando foi posto ao corrente do assunto o general Gudrian abandonou o seu posto na frente russa para vir dizer ao Fuhrer que deveria lavar o cabelo apenas três vezes por semana. Este processo de modificar uma decisão tinha sido utilizado com sucesso pelo Estado-Maior nas duas guerras precedentes. Mas uma vez mais Hitler ignorou a opinião dos seus generais e continuou a lavar a cabeça todos os dias, Boorman ajudava-o na operação e consta que permanecia sempre atrás do Fuhrer de pente em riste. Em definitivo, Boormann tornou-se indispensável a Hitler, que passou a não se ver ao espelho sem pedir a Boormann que o fizesse primeiro. À medida que os exércitos aliados avançavam, a qualidade dos cabelos de Hitler degradava-se. Reagindo ao facto, o Fuhrer proclamava que depois da vitória faria um corte e uma lavagem esplêndidos e um tratamento revigorante. Mas suponho hoje que a sua intenção não era verdadeiramente essa.
Hess apoderou-se um dia do frasco do tónico capilar de Hitler e fugiu para Inglaterra. O Alto Comando alemão estava desvairado, receando que Hess tivesse a intenção de entregar o frasco aos ingleses em troca da amnistia. Hitler ficou particularmente furioso ao tomar conhecimento da notícia quando saia do duche, e portanto no momento dos seus cuidados capilares. (Hess explicou depois em Nuremberga que o seu plano era aplicar a Churchill um tratamento do couro cabeludo, numa tentativa para parar a guerra; ele estava já em vias de o fazer inclinar-se sobre o lavatório quando foi preso).
Em fins de 1944, Goering deixou crescer o bigode. fazendo correr o boato de que tomaria em breve o lugar de Hitler. Hitler, enraivecido, acusou Goering de deslealdade: "Só deve haver um bigode entre os leaderes do Reich, o meu!"Goering argumentou que um segundo bigode daria nova confiança ao povo alemão (no momento em que o desfecho da batalha era incerto), mas sem convencer Hitler. Foi então que em Janeiro de 1945 vários generais conspiraram com vista a rapar o bigode a Hitler, e substitui-lo por Doenitz; a conspiração fracassou porque Von Stauffenberg rapou uma das sobrancelhas do Fuhrer, confundindo-a, na obscuridade do quarto de dormir, com o bigode. O estado de emergência foi proclamado, e Goebels apareceu na minha barbearia. "Foi cometido um atentado contra o bigode do Fuhrer — disse a tremer — mas fracassou'. Goebels levou-me à Rádio onde pronunciei uma alocução ao povo alemão, recorrendo a muito poucas notas escritas: "O Fuhrer está bem — declarei. — Ele conserva o seu bigode. Repito: o Fuhrer está bem. Ele conserva o seu bigode. A conspiração para rapá-lo foi desmascarada".
Nos últimos dias da guerra, fiz uma visita a Hitler, que estava no seu bunker. Os exércitos aliados tinham cercado Berlim e Hitler pensava que se os russos fossem os primeiros a entrar teria necessidade de uma "carecada", ao passo que se fossem os americanos bastaria um "caldinho". A batalha estava no auge. No meio do tiroteio, Boormann quis fazer uma "tosquia" e eu prometi-lhe trabalhar sobre um protótipo. Hitler mostrava-se moroso e distante. Falava de fazer um risco de cabelo de orelha a orelha, declarando em seguida que a invenção da máquina de barbear eléctrica iria fazer voltar a sorte da batalha a favor da Alemanha. "Poderemos cortar o cabelo em alguns segundos, não é verdade Schmeed?", murmurou. Entretanto, confiava-nos outros projectos sublimes e afirmou que em breve já não se contentaria com um simples corte e que exigiria uma permanente. Sempre obcecado em dar nas vistas, anunciou-nos que traria uma cabeleira estilo Pompadour, o que "faria estremecer o mundo" e pediria "um destacamento de honra para penteá-lo". Por fim apertei-lhe a mão antes do último "caldinho". Hitler deu-me uma gorjeta de um pfennig, murmurando: "Eu gostaria de fazer mais, mas desde que os Aliados invadiram a Europa, estou verdadeiramente lixado".
Woody Allen
Expresso
08-04-1978
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