O futuro da crise é a crise do futuro
Para o sociólogo Immanuel Wallerstein, o capitalismo está condenado porque é rejeitado pelas vítimas do capitalismo mas também pelos próprios capitalistas. A saída para a crise não está para breve, argumenta. É preciso procurar uma alternativa política para criar um novo "sistema-mundo". Mas não se sabe qual é
Mundialização ou globalização são palavras que dominam o discurso contemporâneo sobre o estado do mundo. Nenhuma delas vai ser pronunciada pelo homem de óculos e cabelos brancos que se senta à minha frente numa sala do Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (CIDAC). Está uma manhã fria de sol em Lisboa e Immanuel Wallerstein, sociólogo norte-americano de 86 anos, recebe a Revista2para uma conversa sobre a crise, o futuro da crise e as alternativas políticas ao estado de crise, no dia seguinte à conferência que fizera na Fundação Gulbenkian.
Pensador influenciado pelo marxismo, pelo historiador francês Fernand Braudel e pela escola dos Anais, pelo pensamento de Karl Polanyi, mas também por Freud e Schumpeter, Wallerstein vem da sociologia, mas defende que é impossível separar as ciências sociais da história, como afirma no texto O Desenvolvimento de Uma Postura Intelectual, publicado em 2000. Natural de Nova Iorque, formado na Universidade de Columbia, publicou em 1974The Modern World-System [O Sistema-Mundo Moderno], a primeira de uma série de obras dedicadas à teoria do sistema-mundo, o seu contributo mais original para o pensamento contemporâneo.
Mundialização ou globalização são conceitos pouco significativos para o nosso interlocutor, mas é portanto do mundo, da história do mundo e de para onde vai o mundo que vamos falar durante uma hora. Wallerstein construiu a teoria do sistema-mundo, que define os processos históricos como fenómenos transnacionais onde estados nucleares controlam os estados semiperiféricos e periféricos. Para ele, estamos a viver a crise do sistema-mundo capitalista que nasceu no século XV e está a acabar. E se vai acabar é porque as pessoas estão fartas dele. Incluindo os capitalistas.
"O sistema vai desmoronar-se não apenas porque as pessoas que são oprimidas não gostam dele mas porque os capitalistas sentem que já não podem lucrar muito com ele. Se um sistema que existe para acumular capital já não permite acumular capital, qual é o ponto? É esta combinação dos capitalistas que já não gostam do capitalismo e dos grupos populares que já não gostam do capitalismo que está a fazer isto tudo abanar imenso", afirma.
Portanto, esqueçam os amanhãs que cantam do crescimento, da austeridade ou de um mundo globalizado sob o signo do livre comércio. Para Immanuel Wallertstein, nada disso faz sentido. "Nunca existiu um mercado livre em lado nenhum", tinha disparado na véspera, perante a audiência que enchia o auditório 2 da Gulbenkian, onde decorreu a conferência organizada pelo CIDAC, em meados de Fevereiro. Para ele, estamos perante uma crise estrutural do sistema-mundo capitalista e o regresso a um ciclo de crescimento como o do pós-guerra está fora de questão.
Pode-se estar politicamente longe ou perto das ideias de Immanuel Wallerstein, mas as perguntas às quais ele tenta responder são universais. Que mundo está à nossa espera no futuro e que respostas políticas existem para o resolver. Pensador cujo percurso intelectual foi muito influenciado pelo Maio de 68 - que define como "uma revolução mundial que aconteceu em todos os mundos, o primeiro, o segundo e o terceiro" -, Wallerstein tem seguido os movimentos de protesto, dos mexicanos de Chiapas ao Fórum Social de Porto Alegre, aos Indignados espanhóis, ao Occupy anglo-saxónico ou aos grupos de jovens que lançaram a Primavera Árabe. Considera que todos eles foram beber ao "espírito antiautoritário de 68".
E a Primavera Árabe, no fim de contas, no que é que vai dar? Saudada no Ocidente como um exemplo de coragem, a revolta dos que pediram a democracia na Tunísia ou no Egipto e não tiveram receio de enfrentar as balas, a mudança no mundo árabe é agora descrita no tom menos eufórico dos que temem o avanço do Islão radical.
Para o nosso interlocutor, o dilema é mais simples. "Os jovens que começaram a Primavera Árabe foram relativamente bem-sucedidos ao deporem autocratas venais, na Tunísia e no Egipto, mas depois o exército e a Irmandade Muçulmana tentaram dominá-los juntando-se a eles."
O que daqui resulta é um confronto esquerda-direita, onde uma direita moderada está sob ameaça de uma direita radical, como acontece na Europa. "A Irmandade Muçulmana, de um modo geral, dá origem a partidos conservadores, do ponto de vista social, económico e geopolítico. Querem boas relações com o Ocidente e abrir os seus mercados. Pode-se pensar neles como algo não muito diferente dos partidos democratas-cristãos na Europa. Tal como os partidos políticos europeus, estes partidos enfrentam grandes dificuldades com a economia e o desemprego. E há um partido à direita deles, um partido de extrema-direita, como os salafistas, que estão a crescer e os partidosmainstream de centro-direita estão divididos quanto à forma de lidar com isto. A situação não está estável e não vai estabilizar", defende.
Mantenhamos o foco na rua que se manifesta - em Lisboa, Atenas, no Cairo ou numa remota cidade chinesa - onde, diz Wallerstein, as vítimas do capitalismo estão a revoltar-se contra um sistema que os próprios capitalistas querem destruir. Quem vai chegar primeiro? Ou, dito de outra maneira, quem vai definir qual será a alternativa a este sistema capitalista em vias de extinção?
"Esses movimentos têm muitos temas comuns, mas um dos problemas é que estão todos separados e falam pouco uns com os outros. O Fórum Social Mundial vai ter a sua próxima reunião em Tunis no fim de Março e há muitos grupos novos que não estavam lá há 12 anos, quando tudo começou. Esse fórum continuará a existir? Surgirão outros tipos de estrutura? Individualmente, estes movimentos concentram-se em primeiro lugar no curto prazo. Isso não é só uma virtude, é uma necessidade. Mas para mudar alguma coisa é preciso ter uma visão a dez, 20 anos", diz à Revista 2.
Encontrar a saída para a crise do capitalismo é, para Immanuel Wallerstein, o combate político mais importante do nosso tempo. Mas, para o sociólogo, os movimentos populares de protesto que combatem a austeridade na Europa, as autocracias no mundo árabe ou os baixos salários na China não têm essa resposta. Na verdade, ninguém tem.
"Digo muitas vezes que se um conjunto de pessoas estivessem a conversar no século XV e uma delas dissesse que o sistema feudal medieval está esgotado e há duas alternativas, uma das quais é o sistema capitalista, quem nessa sala cheia de pessoas inteligentes imaginaria a complexidade das estruturas que iriam ser construídas nos cinco séculos seguintes? Digo o mesmo hoje. Não posso especificar mais do que o impulso de um novo sistema. Construir as fronteiras desse futuro demora tempo e ninguém poderia imaginá-lo em detalhe", explica-nos.
Para Wallerstein, o sistema-mundo capitalista nasceu no século XV e os descobrimentos portugueses e espanhóis foram uma das primeiras etapas da construção desse sistema. Mas o sociólogo não reconhece o estatuto de potência hegemónica a nenhuma das nações ibéricas que foram actores do início da expansão do capitalismo. Esse papel de potências hegemónicas coube à Holanda, à Inglaterra e aos Estados Unidos. Cada um deles consolidou a sua posição após o que o investigador designa como guerras de 30 anos. Primeiro, a guerra com esse nome, no século XVII, na qual os holandeses se impuseram aos espanhóis. No século XVIII, os ingleses derrotaram os franceses na luta pela supremacia global. Na primeira metade do século XX, outra guerra dos 30 anos - para Wallerstein, o conjunto dos conflitos de 1914-18 e de 1939-45, que liga como um só - opôs a Alemanha aos Estados Unidos.
O autor de Decline of American Power: The US in a Chaotic World [O Declínio do Poder Americano: os EUA Num Mundo Caótico] discorda da teoria segundo a qual os Estados Unidos se tornaram uma hiperpotência hegemónica após o colapso da União Soviética, em 1991. Na sua leitura do século XX, como explicou na conferência na Gulbenkian, os acordos de Ialta, em 1945 no final da II Guerra Mundial, são uma partição do mundo entre americanos e soviéticos, em termos largamente favoráveis aos primeiros e aceite por ambos.
A luta entre os sistemas capitalista e socialista que se seguiu foi, segundo Wallerstein, "um falso conflito ideológico", que serviu a Washington e a Moscovo para manterem os seus aliados sob controlo. Com o declínio americano, a passagem a uma situação em que deixou de existir uma potência hegemónica - "o mundo é cada vez menos o problema dos Estados Unidos", afirma Wallerstein - e a crise financeira, entrámos num período de colapso do "sistema mundo-capitalista", que se prolongará durante várias décadas, defende.
O problema é ao mesmo tempo geopolítico e financeiro. O envolvimento militar no Iraque e no Afeganistão enfraqueceu a imagem global da superpotência. "O uso da força militar é negativo para a potência hegemónica", defende Wallerstein. Enquanto fica por utilizar, o poder dessa força permanece em aberto e o seu valor de dissuasão é maior. As duas guerras lançadas por George W. Bush no Médio Oriente, após o 11 de Setembro, mostraram os limites do uso da força, mesmo tratando-se da maior potência militar do mundo. Foi fácil ocupar pela força o Iraque ou o Afeganistão, mas não estabilizar esses territórios. Essa fragilidade reflecte-se na hesitação em avançar na Síria ou no facto de os Estados Unidos terem ficado de fora das intervenções na Líbia ou no Mali.
"Podemos ver toda a gente a hesitar dentro e fora da Síria, tanto ao nível dos países vizinhos como das grandes potências. Leio debates a favor do Exército Livre da Síria e outros a dizer o contrário, que isso é abrir a porta à Al-Qaeda ou ajudar os americanos a espremer o Irão. No Bahrein, na Síria, no Egipto, no Mali, as questões não são fáceis", afirma o sociólogo. "O mundo já não simpatiza muito com estas intervenções que já não são muito populares. Há uma guerra civil horrorosa a acontecer e ninguém vai enviar tropas e muito poucos estão a enviar armas. Talvez o Qatar. Todos estão assustados, sobretudo os sauditas, com a possibilidade de um grupo pró-Al-Qaeda assumir o controlo. O inimigo número 1 da Al-Qaeda é o regime saudita", afirma.
Num primeiro momento, Immanuel Wallerstein escreveu um texto crítico sobre a intervenção militar francesa no Mali, mas na conversa com a Revista 2, ocorrida em meados de Fevereiro, antes da conquista das cidades ocupadas pelos rebeldes islamistas, admitiu que a decisão do Presidente francês, François Hollande, era justificada. "Havia um problema imediato: os grupos salafistas ameaçavam ocupar a capital, Bamako, e controlar o Estado. Era agora ou nunca e ele decidiu avançar. Talvez isso tenha feito sentido. O que não faz sentido é ficar indefinidamente. É mais fácil entrar num país do que sair de lá. Vai ser muito difícil sair do Mali e não se sabe se os franceses querem sair."
O mundo, entretanto, tornou-se multipolar. Mas Immanuel Wallerstein está convencido de que o crescimento dos países emergentes, como a China, a Índia ou o Brasil, tem limites. Antes de começar a escrever sobre a história global do capitalismo, estudou intensamente a evolução do continente africano na transição para o pós-colonialismo. Visitou o continente pela primeira vez nos anos 1950 e começou a compreender aí a mudança que iria conduzir ao movimento dos países não-alinhados do então chamado Terceiro Mundo. "Nessa altura, tive o instinto de que a coisa mais importante que estava a acontecer no século XX era a luta para acabar com o controlo pelo mundo ocidental do resto do mundo", escreveu em O Desenvolvimento de Uma Postura Intelectual. No entanto, Wallerstein não encontra uma continuidade entre as nações terceiro-mundistas que se organizaram contra a hegemonia dos blocos capitalista e soviético e a actual ascensão económica das potências emergentes, como a China ou a Índia, num sistema que tem sido dominado pelos países ocidentais.
"As dificuldades económicas que a Europa ocidental e os Estados Unidos estão a enfrentar são normais; estão em declínio e outros povos, que têm vantagens económicas, como Brasil, a China ou a Índia, tiram partido da situação e apresentam boas taxas de crescimento", explica Immanuel Wallerstein.
E o sociólogo acrescenta: "Num sentido imediato, taxas de crescimento elevadas não são um fenómeno invulgar e não costumam durar muito tempo. Um dos problemas que estamos a enfrentar a nível mundial é a ausência crescente de procura efectiva. Isso é um problema para um país como a China, e a sua taxa de crescimento continua a ser melhor do que a dos países ocidentais, mas está a cair radicalmente nos últimos dois ou três anos."
O futuro da crise, portanto, é a crise do futuro. Um horizonte de incerteza no qual é possível esperar por realinhamentos geoestratégicos e pelo arrefecimento global da economia. "A principal característica de uma crise estrutural é uma série de flutuações caóticas e selvagens de tudo - dos mercados, das alianças geopolíticas, da estabilidade das fronteiras dos Estados, do emprego, da dívida, dos impostos. A incerteza, mesmo no curto prazo, torna-se crónica. E a incerteza tende a congelar as decisões económicas, o que torna tudo pior", escreveu em Janeiro deste ano num dos comentários que publica regularmente na imprensa internacional, intitulado Global Turmoil in the Middle Run [O Tumulto Global a Meio Caminho].
Na conversa com a 2, Immanuel Wallerstein discorre sobre o que aconteceria se o dólar perdesse o seu papel no sistema financeiro internacional, que ainda é um dos grandes trunfos geoestratégicos dos Estados Unidos. "Ficaríamos numa situação pior porque nada vai substituir o dólar e teremos cinco ou seis moedas fortes e isso congela o investidor; se o investidor não investe, as coisas pioram. Isso é o que tem acontecido nos últimos anos e não vejo razão por que isso não continue assim. Esta grande incerteza é uma incerteza de longo prazo que se torna uma incerteza de curto prazo sobre a geopolítica. Será que daqui a um ano a Rússia se vai questionar sobre se é mais importante ser amiga da China, da União Europeia ou dos Estados Unidos?"
Wallerstein prevê um realinhamento das alianças internacionais, nomeadamente uma aproximação entre a Rússia e a UE e uma confederação asiática ligando a China, a Coreia reunificada e o Japão, com uma ligação forte aos Estados Unidos. O cenário de uma guerra entre Pequim e Washington não encaixa nas suas previsões. Nem o de uma guerra em larga escala entre Estados como consequência da crise. Como tendências de futuro, antecipa sim o aumento da proliferação de armas nucleares, do proteccionismo económico e das crises ecológicas.
"As pequenas guerras nunca desaparecem. Uma grande guerra não é plausível, mas não é impossível. Mas vai haver proliferação nuclear, isso para mim é muito claro. Para mim, não é muito importante que haja cinco, dez, 20 ou 30 potências nucleares. As armas nucleares são basicamente defensivas. Mas há a possibilidade de a Al-Qaeda ter acesso a armas de destruição maciça. Ou de um país que tenha essas armas não ser capaz de as proteger. O cenário de uma guerra não me preocupa muito. Preocupa-me mais a destruição ecológica ou as pandemias. Seria preciso um outro tipo de sistema-mundo para os enfrentar e talvez não possamos esperar", afirma.
Precisaríamos de um governo mundial, que pudesse tomar decisões sobre questões como o aquecimento global, as pandemias, o terrorismo, a proliferação nuclear? O novo sistema-mundo que sucederá ao sistema capitalista contemplaria instituições globais?
"Está a perguntar se devíamos ter um governo mundial? Provavelmente, mas de novo hesito. A pergunta mais interessante é saber se teremos estados como os que existem hoje. Os estados tal como existem não são eternos, surgiram com a economia capitalista e são estruturas peculiares que teoricamente são soberanas, convocam a lealdade emocional dos seus habitantes. Em 2100 ou 2200, esses estados existirão sequer? É uma pergunta aberta, saber que estruturas políticas, locais, regionais e mundiais existirão."
Para Wallerstein, as pressões secessionistas no espaço europeu são um sintoma dessa desagregação dos Estados que antevê. "Hoje ninguém consegue imaginar não ser um cidadão de um estado mas também é verdade que estão a desmoronar-se e a desmoronar-se mais depressa do que pensávamos. Veja o que está a acontecer na Catalunha, na Escócia ou na Padania [designação que agrupa as zonas mais ricas do Norte de Itália]."
A questão em aberto é a de saber, afinal de contas, que tipo de sistema político sucederá àquele em que vivemos. E com essa pergunta voltamos ao início da conversa. Ao ponto em que as pessoas reagem na rua contra um sistema que consideram injusto por causa de políticas para as quais alegadamente não há alternativas. Sendo que quem contesta não consegue encontrar uma resposta credível em termos de governação.
Wallerstein olha para a crise do sistema-mundo capitalista como tendo duas saídas possíveis: "Há duas alternativas, às quais dou nomes. Uma não é capitalista na sua estrutura, não se baseia na acumulação de capital através do mercado, mas partilharia algumas características do sistema capitalista, como a exploração e a polarização. E poderia, do ponto de vista de muitas pessoas, ser pior do que o sistema capitalista. É uma alternativa. A outra é um sistema relativamente democrático e igualitário que, sublinho, nunca existiu, mas pode existir."
Mas como seria, então, esse outro sistema-mundo do futuro que o sociólogo imagina? "É muito difícil especificar quais seriam as estruturas organizacionais destes dois sistemas. Mas seria um sistema relativamente desmercantilizado, relativamente democrático e relativamente igualitário, onde toda a gente tem uma palavra a dizer e os direitos das minorias são respeitados. Digo sempre "relativamente", porque não acredito em sistemas perfeitos. Podemos imaginar possibilidades mas hesitaria em ir além disso, em dizer como é que o mundo seria em 2150 ou em 2200."
Pensador influenciado pelo marxismo, pelo historiador francês Fernand Braudel e pela escola dos Anais, pelo pensamento de Karl Polanyi, mas também por Freud e Schumpeter, Wallerstein vem da sociologia, mas defende que é impossível separar as ciências sociais da história, como afirma no texto O Desenvolvimento de Uma Postura Intelectual, publicado em 2000. Natural de Nova Iorque, formado na Universidade de Columbia, publicou em 1974The Modern World-System [O Sistema-Mundo Moderno], a primeira de uma série de obras dedicadas à teoria do sistema-mundo, o seu contributo mais original para o pensamento contemporâneo.
Mundialização ou globalização são conceitos pouco significativos para o nosso interlocutor, mas é portanto do mundo, da história do mundo e de para onde vai o mundo que vamos falar durante uma hora. Wallerstein construiu a teoria do sistema-mundo, que define os processos históricos como fenómenos transnacionais onde estados nucleares controlam os estados semiperiféricos e periféricos. Para ele, estamos a viver a crise do sistema-mundo capitalista que nasceu no século XV e está a acabar. E se vai acabar é porque as pessoas estão fartas dele. Incluindo os capitalistas.
"O sistema vai desmoronar-se não apenas porque as pessoas que são oprimidas não gostam dele mas porque os capitalistas sentem que já não podem lucrar muito com ele. Se um sistema que existe para acumular capital já não permite acumular capital, qual é o ponto? É esta combinação dos capitalistas que já não gostam do capitalismo e dos grupos populares que já não gostam do capitalismo que está a fazer isto tudo abanar imenso", afirma.
Portanto, esqueçam os amanhãs que cantam do crescimento, da austeridade ou de um mundo globalizado sob o signo do livre comércio. Para Immanuel Wallertstein, nada disso faz sentido. "Nunca existiu um mercado livre em lado nenhum", tinha disparado na véspera, perante a audiência que enchia o auditório 2 da Gulbenkian, onde decorreu a conferência organizada pelo CIDAC, em meados de Fevereiro. Para ele, estamos perante uma crise estrutural do sistema-mundo capitalista e o regresso a um ciclo de crescimento como o do pós-guerra está fora de questão.
Pode-se estar politicamente longe ou perto das ideias de Immanuel Wallerstein, mas as perguntas às quais ele tenta responder são universais. Que mundo está à nossa espera no futuro e que respostas políticas existem para o resolver. Pensador cujo percurso intelectual foi muito influenciado pelo Maio de 68 - que define como "uma revolução mundial que aconteceu em todos os mundos, o primeiro, o segundo e o terceiro" -, Wallerstein tem seguido os movimentos de protesto, dos mexicanos de Chiapas ao Fórum Social de Porto Alegre, aos Indignados espanhóis, ao Occupy anglo-saxónico ou aos grupos de jovens que lançaram a Primavera Árabe. Considera que todos eles foram beber ao "espírito antiautoritário de 68".
E a Primavera Árabe, no fim de contas, no que é que vai dar? Saudada no Ocidente como um exemplo de coragem, a revolta dos que pediram a democracia na Tunísia ou no Egipto e não tiveram receio de enfrentar as balas, a mudança no mundo árabe é agora descrita no tom menos eufórico dos que temem o avanço do Islão radical.
Para o nosso interlocutor, o dilema é mais simples. "Os jovens que começaram a Primavera Árabe foram relativamente bem-sucedidos ao deporem autocratas venais, na Tunísia e no Egipto, mas depois o exército e a Irmandade Muçulmana tentaram dominá-los juntando-se a eles."
O que daqui resulta é um confronto esquerda-direita, onde uma direita moderada está sob ameaça de uma direita radical, como acontece na Europa. "A Irmandade Muçulmana, de um modo geral, dá origem a partidos conservadores, do ponto de vista social, económico e geopolítico. Querem boas relações com o Ocidente e abrir os seus mercados. Pode-se pensar neles como algo não muito diferente dos partidos democratas-cristãos na Europa. Tal como os partidos políticos europeus, estes partidos enfrentam grandes dificuldades com a economia e o desemprego. E há um partido à direita deles, um partido de extrema-direita, como os salafistas, que estão a crescer e os partidosmainstream de centro-direita estão divididos quanto à forma de lidar com isto. A situação não está estável e não vai estabilizar", defende.
Mantenhamos o foco na rua que se manifesta - em Lisboa, Atenas, no Cairo ou numa remota cidade chinesa - onde, diz Wallerstein, as vítimas do capitalismo estão a revoltar-se contra um sistema que os próprios capitalistas querem destruir. Quem vai chegar primeiro? Ou, dito de outra maneira, quem vai definir qual será a alternativa a este sistema capitalista em vias de extinção?
"Esses movimentos têm muitos temas comuns, mas um dos problemas é que estão todos separados e falam pouco uns com os outros. O Fórum Social Mundial vai ter a sua próxima reunião em Tunis no fim de Março e há muitos grupos novos que não estavam lá há 12 anos, quando tudo começou. Esse fórum continuará a existir? Surgirão outros tipos de estrutura? Individualmente, estes movimentos concentram-se em primeiro lugar no curto prazo. Isso não é só uma virtude, é uma necessidade. Mas para mudar alguma coisa é preciso ter uma visão a dez, 20 anos", diz à Revista 2.
Encontrar a saída para a crise do capitalismo é, para Immanuel Wallerstein, o combate político mais importante do nosso tempo. Mas, para o sociólogo, os movimentos populares de protesto que combatem a austeridade na Europa, as autocracias no mundo árabe ou os baixos salários na China não têm essa resposta. Na verdade, ninguém tem.
"Digo muitas vezes que se um conjunto de pessoas estivessem a conversar no século XV e uma delas dissesse que o sistema feudal medieval está esgotado e há duas alternativas, uma das quais é o sistema capitalista, quem nessa sala cheia de pessoas inteligentes imaginaria a complexidade das estruturas que iriam ser construídas nos cinco séculos seguintes? Digo o mesmo hoje. Não posso especificar mais do que o impulso de um novo sistema. Construir as fronteiras desse futuro demora tempo e ninguém poderia imaginá-lo em detalhe", explica-nos.
Para Wallerstein, o sistema-mundo capitalista nasceu no século XV e os descobrimentos portugueses e espanhóis foram uma das primeiras etapas da construção desse sistema. Mas o sociólogo não reconhece o estatuto de potência hegemónica a nenhuma das nações ibéricas que foram actores do início da expansão do capitalismo. Esse papel de potências hegemónicas coube à Holanda, à Inglaterra e aos Estados Unidos. Cada um deles consolidou a sua posição após o que o investigador designa como guerras de 30 anos. Primeiro, a guerra com esse nome, no século XVII, na qual os holandeses se impuseram aos espanhóis. No século XVIII, os ingleses derrotaram os franceses na luta pela supremacia global. Na primeira metade do século XX, outra guerra dos 30 anos - para Wallerstein, o conjunto dos conflitos de 1914-18 e de 1939-45, que liga como um só - opôs a Alemanha aos Estados Unidos.
O autor de Decline of American Power: The US in a Chaotic World [O Declínio do Poder Americano: os EUA Num Mundo Caótico] discorda da teoria segundo a qual os Estados Unidos se tornaram uma hiperpotência hegemónica após o colapso da União Soviética, em 1991. Na sua leitura do século XX, como explicou na conferência na Gulbenkian, os acordos de Ialta, em 1945 no final da II Guerra Mundial, são uma partição do mundo entre americanos e soviéticos, em termos largamente favoráveis aos primeiros e aceite por ambos.
A luta entre os sistemas capitalista e socialista que se seguiu foi, segundo Wallerstein, "um falso conflito ideológico", que serviu a Washington e a Moscovo para manterem os seus aliados sob controlo. Com o declínio americano, a passagem a uma situação em que deixou de existir uma potência hegemónica - "o mundo é cada vez menos o problema dos Estados Unidos", afirma Wallerstein - e a crise financeira, entrámos num período de colapso do "sistema mundo-capitalista", que se prolongará durante várias décadas, defende.
O problema é ao mesmo tempo geopolítico e financeiro. O envolvimento militar no Iraque e no Afeganistão enfraqueceu a imagem global da superpotência. "O uso da força militar é negativo para a potência hegemónica", defende Wallerstein. Enquanto fica por utilizar, o poder dessa força permanece em aberto e o seu valor de dissuasão é maior. As duas guerras lançadas por George W. Bush no Médio Oriente, após o 11 de Setembro, mostraram os limites do uso da força, mesmo tratando-se da maior potência militar do mundo. Foi fácil ocupar pela força o Iraque ou o Afeganistão, mas não estabilizar esses territórios. Essa fragilidade reflecte-se na hesitação em avançar na Síria ou no facto de os Estados Unidos terem ficado de fora das intervenções na Líbia ou no Mali.
"Podemos ver toda a gente a hesitar dentro e fora da Síria, tanto ao nível dos países vizinhos como das grandes potências. Leio debates a favor do Exército Livre da Síria e outros a dizer o contrário, que isso é abrir a porta à Al-Qaeda ou ajudar os americanos a espremer o Irão. No Bahrein, na Síria, no Egipto, no Mali, as questões não são fáceis", afirma o sociólogo. "O mundo já não simpatiza muito com estas intervenções que já não são muito populares. Há uma guerra civil horrorosa a acontecer e ninguém vai enviar tropas e muito poucos estão a enviar armas. Talvez o Qatar. Todos estão assustados, sobretudo os sauditas, com a possibilidade de um grupo pró-Al-Qaeda assumir o controlo. O inimigo número 1 da Al-Qaeda é o regime saudita", afirma.
Num primeiro momento, Immanuel Wallerstein escreveu um texto crítico sobre a intervenção militar francesa no Mali, mas na conversa com a Revista 2, ocorrida em meados de Fevereiro, antes da conquista das cidades ocupadas pelos rebeldes islamistas, admitiu que a decisão do Presidente francês, François Hollande, era justificada. "Havia um problema imediato: os grupos salafistas ameaçavam ocupar a capital, Bamako, e controlar o Estado. Era agora ou nunca e ele decidiu avançar. Talvez isso tenha feito sentido. O que não faz sentido é ficar indefinidamente. É mais fácil entrar num país do que sair de lá. Vai ser muito difícil sair do Mali e não se sabe se os franceses querem sair."
O mundo, entretanto, tornou-se multipolar. Mas Immanuel Wallerstein está convencido de que o crescimento dos países emergentes, como a China, a Índia ou o Brasil, tem limites. Antes de começar a escrever sobre a história global do capitalismo, estudou intensamente a evolução do continente africano na transição para o pós-colonialismo. Visitou o continente pela primeira vez nos anos 1950 e começou a compreender aí a mudança que iria conduzir ao movimento dos países não-alinhados do então chamado Terceiro Mundo. "Nessa altura, tive o instinto de que a coisa mais importante que estava a acontecer no século XX era a luta para acabar com o controlo pelo mundo ocidental do resto do mundo", escreveu em O Desenvolvimento de Uma Postura Intelectual. No entanto, Wallerstein não encontra uma continuidade entre as nações terceiro-mundistas que se organizaram contra a hegemonia dos blocos capitalista e soviético e a actual ascensão económica das potências emergentes, como a China ou a Índia, num sistema que tem sido dominado pelos países ocidentais.
"As dificuldades económicas que a Europa ocidental e os Estados Unidos estão a enfrentar são normais; estão em declínio e outros povos, que têm vantagens económicas, como Brasil, a China ou a Índia, tiram partido da situação e apresentam boas taxas de crescimento", explica Immanuel Wallerstein.
E o sociólogo acrescenta: "Num sentido imediato, taxas de crescimento elevadas não são um fenómeno invulgar e não costumam durar muito tempo. Um dos problemas que estamos a enfrentar a nível mundial é a ausência crescente de procura efectiva. Isso é um problema para um país como a China, e a sua taxa de crescimento continua a ser melhor do que a dos países ocidentais, mas está a cair radicalmente nos últimos dois ou três anos."
O futuro da crise, portanto, é a crise do futuro. Um horizonte de incerteza no qual é possível esperar por realinhamentos geoestratégicos e pelo arrefecimento global da economia. "A principal característica de uma crise estrutural é uma série de flutuações caóticas e selvagens de tudo - dos mercados, das alianças geopolíticas, da estabilidade das fronteiras dos Estados, do emprego, da dívida, dos impostos. A incerteza, mesmo no curto prazo, torna-se crónica. E a incerteza tende a congelar as decisões económicas, o que torna tudo pior", escreveu em Janeiro deste ano num dos comentários que publica regularmente na imprensa internacional, intitulado Global Turmoil in the Middle Run [O Tumulto Global a Meio Caminho].
Na conversa com a 2, Immanuel Wallerstein discorre sobre o que aconteceria se o dólar perdesse o seu papel no sistema financeiro internacional, que ainda é um dos grandes trunfos geoestratégicos dos Estados Unidos. "Ficaríamos numa situação pior porque nada vai substituir o dólar e teremos cinco ou seis moedas fortes e isso congela o investidor; se o investidor não investe, as coisas pioram. Isso é o que tem acontecido nos últimos anos e não vejo razão por que isso não continue assim. Esta grande incerteza é uma incerteza de longo prazo que se torna uma incerteza de curto prazo sobre a geopolítica. Será que daqui a um ano a Rússia se vai questionar sobre se é mais importante ser amiga da China, da União Europeia ou dos Estados Unidos?"
Wallerstein prevê um realinhamento das alianças internacionais, nomeadamente uma aproximação entre a Rússia e a UE e uma confederação asiática ligando a China, a Coreia reunificada e o Japão, com uma ligação forte aos Estados Unidos. O cenário de uma guerra entre Pequim e Washington não encaixa nas suas previsões. Nem o de uma guerra em larga escala entre Estados como consequência da crise. Como tendências de futuro, antecipa sim o aumento da proliferação de armas nucleares, do proteccionismo económico e das crises ecológicas.
"As pequenas guerras nunca desaparecem. Uma grande guerra não é plausível, mas não é impossível. Mas vai haver proliferação nuclear, isso para mim é muito claro. Para mim, não é muito importante que haja cinco, dez, 20 ou 30 potências nucleares. As armas nucleares são basicamente defensivas. Mas há a possibilidade de a Al-Qaeda ter acesso a armas de destruição maciça. Ou de um país que tenha essas armas não ser capaz de as proteger. O cenário de uma guerra não me preocupa muito. Preocupa-me mais a destruição ecológica ou as pandemias. Seria preciso um outro tipo de sistema-mundo para os enfrentar e talvez não possamos esperar", afirma.
Precisaríamos de um governo mundial, que pudesse tomar decisões sobre questões como o aquecimento global, as pandemias, o terrorismo, a proliferação nuclear? O novo sistema-mundo que sucederá ao sistema capitalista contemplaria instituições globais?
"Está a perguntar se devíamos ter um governo mundial? Provavelmente, mas de novo hesito. A pergunta mais interessante é saber se teremos estados como os que existem hoje. Os estados tal como existem não são eternos, surgiram com a economia capitalista e são estruturas peculiares que teoricamente são soberanas, convocam a lealdade emocional dos seus habitantes. Em 2100 ou 2200, esses estados existirão sequer? É uma pergunta aberta, saber que estruturas políticas, locais, regionais e mundiais existirão."
Para Wallerstein, as pressões secessionistas no espaço europeu são um sintoma dessa desagregação dos Estados que antevê. "Hoje ninguém consegue imaginar não ser um cidadão de um estado mas também é verdade que estão a desmoronar-se e a desmoronar-se mais depressa do que pensávamos. Veja o que está a acontecer na Catalunha, na Escócia ou na Padania [designação que agrupa as zonas mais ricas do Norte de Itália]."
A questão em aberto é a de saber, afinal de contas, que tipo de sistema político sucederá àquele em que vivemos. E com essa pergunta voltamos ao início da conversa. Ao ponto em que as pessoas reagem na rua contra um sistema que consideram injusto por causa de políticas para as quais alegadamente não há alternativas. Sendo que quem contesta não consegue encontrar uma resposta credível em termos de governação.
Wallerstein olha para a crise do sistema-mundo capitalista como tendo duas saídas possíveis: "Há duas alternativas, às quais dou nomes. Uma não é capitalista na sua estrutura, não se baseia na acumulação de capital através do mercado, mas partilharia algumas características do sistema capitalista, como a exploração e a polarização. E poderia, do ponto de vista de muitas pessoas, ser pior do que o sistema capitalista. É uma alternativa. A outra é um sistema relativamente democrático e igualitário que, sublinho, nunca existiu, mas pode existir."
Mas como seria, então, esse outro sistema-mundo do futuro que o sociólogo imagina? "É muito difícil especificar quais seriam as estruturas organizacionais destes dois sistemas. Mas seria um sistema relativamente desmercantilizado, relativamente democrático e relativamente igualitário, onde toda a gente tem uma palavra a dizer e os direitos das minorias são respeitados. Digo sempre "relativamente", porque não acredito em sistemas perfeitos. Podemos imaginar possibilidades mas hesitaria em ir além disso, em dizer como é que o mundo seria em 2150 ou em 2200."
Por Miguel Gaspar
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