AOS CIBERNAUTAS,
Por solicitação de muitos companheiros que leram o livro resultante dos rascunhos e imagens que recolhi em Angola, a anteceder as narrativas das vivências na guerra colonial, entre outras memórias, deixo aqui parte dos textos contidos em:
«O DESPERTAR DOS COMBATENTES... Fotos com estórias em Angola» é o resumo de vários rascunhos escritos durante os primeiros anos da guerra em Angola. É um testemunho com muitos indivíduos vivendo nos extremos entre o amor e o ódio. Os momentos de grande sofrimento, angústia e medo foram protagonizados por seres determinados e fortes; e, quando envolvidos na sociedade, eram os mais sentimentalistas, propensos ao amor e ao prazer. De quando em vez, também apareciam situações que desaguavam na violência ou na patetice desordenada. As contingências da guerra destruíram muitos sonhos e muitos homens bons tornaram-se incongruentes.
Pretendo, assim, dar o meu humilde contributo para que a generalidade dos Portugueses compreenda quão grandioso foi o esforço dos Combatentes nas guerras coloniais ou guerras do ultramar. Naturalmente que, distantes do tempo dos acontecimentos, alguns factos narrados poderão não ser tão rigorosos como o desejamos. Muitos dos nomes são verdadeiros e estiveram lá, embora outros o não sejam, por razões óbvias.
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NOTA PRÉVIAE
Por natureza ou por defeito, sou contra as pantominas nas coisas sérias.
Há muitos testemunhos escondidos que podem trazer mais luz sobre aqueles anos de angústia e de sofrimento – os anos da “guerra do ultramar”. Por desinteresse, por se terem esgotado os valores patrióticos, por se verem injustiçados, por sentirem que a mãe pátria os abandonou na profundeza dos seus traumas terríveis, ou por medo de recordarem o negrume de muitos dias de carências de toda a ordem, são poucos os que se afoitam a atirar um pedregulho para o charco da ingratidão e a contar a verdade nua e crua de toda a vivência em meios hostis e extremamente marcantes.
Os poderes ocultos podem mascarar as pantominas dos vira-casacas da governação, podem até mascarar a pobreza que atira para a miséria muitos portugueses; porém, não vale a pena falar dos chefes e responsáveis intervenientes directos, que se acomodaram com as mordomias em tempo de guerra, porque deles nada mais é de esperar! Mas tentar mascarar a verdade genuína da vida dos combatentes que sofreram e sobreviveram aos anos da guerra que lhes roubou parte dos sonhos da juventude, além de grave injustiça, é blasfémia.
Em memória dos que morreram como heróis inocentes e dos estropiados do corpo e da alma, todos os combatentes do Ultramar merecem esta homenagem. Ao trazer ao domínio público alguns factos susceptíveis de ferir a sensibilidade dos que sempre tentaram mascarar a verdade, estou consciente das pressões que já senti e que continuarão a opor-se à divulgação de pormenores do enredo que enganou muitos combatentes e agravou o grau de ignorância dos bons Portugueses. Analisados os contornos em que se materializava a administração e as dependências aos interesses estrangeiros instalados nos, então, territórios ultramarinos, podemos afirmar que a soberania portuguesa era uma grande mentira.
Estamos a editar os textos que relatam muitas vivências do quotidiano fortemente condicionado pelo ambiente de guerra e que não podem ficar no esquecimento. Talvez seja mais um contributo para que se comece a ver aquele período da História de Portugal com outros olhos. Ainda, porque estão por resgatar algumas centenas de corpos dos combatentes que o Poder renegou e que, por falta de dinheiro para os trasladar e entregar às famílias, ficaram enterrados nos locais mais recônditos das terras de África. Tal como muitos outros, este facto tem sido esquecido pelos chefes com responsabilidades importantes dentro da organização das tropas no tempo da guerra!
Lisboa, Março de 1992
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Serão os sonhos determinantes na vida dos seres humanos? Alguns sonhos podem ser uma espécie de luz que alumia os caminhos mais sinuosos, mesmo quando a claridade de cada dia parece escapar às turbulências dos tempos desta vida.
Na rotina da paradisíaca Granja do Marquês, o Sousa dá os últimos retoques nos paramentos do Tenente-capelão Figueiredo, antes de agarrar as cordas dos sinos que alertam a vizinhança da Base Aérea 1 para o dever dominical. A missa começa às nove horas em ponto e a capela apresenta-se cheia, nas vésperas do Natal de 1960. No final da missa, enquanto o ajudante arruma as galhetas do vinho e da água, o padre deixa transparecer a sua inquietação sobre o futuro das terras ultramarinas: “Sabes, Joaquim, o dr. Vasco Garin já não conseguiu demover as Nações Unidas de aprovarem uma resolução anti-colonialista que impõe a Portugal o reconhecimento da autonomia aos territórios ultramarinos. E tudo indica que Portugal perdeu o apoio dos países da Europa considerados amigos, porque votaram a favor dessa resolução, o que supõe a sua hostilidade à política portuguesa actual.”
O Sousa sente-se confuso com as palavras do capelão, e tenta perceber o efeito da “resolução anti-colonialista”, perguntando:
- Será que a tropa vai sofrer algumas consequências, senhor capelão?
- Meu rapaz, conforme as coisas estão a evoluir, não tarda muito a estarmos todos envolvidos.
Deixando transparecer um sorriso, o capelão deu conta de que as caixas de vinho destinado à consagração nas missas estavam a diminuir a olhos vistos. Pudera! As tardes de sossego, em companhia dos faxinas da messe de oficiais, têm proporcionado bons lanches de pão com bife, regados com o licoroso vinho oferecido pelas casas de vinho do Porto. As quatro semanas a substituir o sacristão deram para baixar os lotes de caixas armazenadas na arrecadação da capela.
O Sousa fica a matutar nas consequências da “resolução”: “Agora que iniciei a especialidade de “circulação aérea” e subi no nível da qualidade do rancho é que a política internacional faz abanar o Governo?”
A alvorada do dia 23 de Janeiro de 1961 deixa uma onda de inquietação em todos os militares da Base. Com algum nervosismo, os chefes determinam a proibição de saídas do aquartelamento, porque está tudo em prevenção. As patrulhas armadas posicionam-se nos pontos estratégicos, duas baterias anti-aéreas são colocadas junto à placa de estacionamento dos aviões de instrução, as metralhadoras pesadas, camufladas atrás da torre de controlo, apontam para a pista principal; os mais antigos dizem nunca ter visto tanto aparato e os comentários nada esclarecem.
Pelas 10 horas, dois cabos das transmissões em criptografia passam pela sala dos alunos pilotos e deixam a informação de que o paquete Santa Maria foi assaltado por gente comandada pelo capitão Henrique Galvão. A notícia espalha-se pela torre de controlo, chegando aos bombeiros e às camaratas. Dias mais tarde, sente-se uma preocupação crescente por causa do pessoal que compõe o pelotão da Polícia Aérea que embarcou para Angola, a fim de dar segurança às obras de construção da Base Aérea do Negage, gente que todos conhecem. A notícia de que o paquete com os “revoltosos” se dirige para Angola não agrada a ninguém. O Vizela pede ao sargento Fernandes que o nomeie para a secção de extintores portáteis, para poder ter fins-de-semana livres. É aí que reúne os amigos fandangueiros, para falar da situação política e militar. As primeiras medidas tomadas pelo presidente John Kennedy sobre África são de apoio à autodeterminação dos territórios portugueses do Ultramar. O aluno piloto Malaquias de Oliveira deixa transparecer alguma inquietação, prevendo que o curso não vai servir só para alargar os horizontes do Minho ao Algarve e ingressar na aviação civil, mas pode passar pelas terras de África. O espectro da guerra começa a condicionar os sonhos do pessoal que escolheu as proveitosas especialidades da Força Aérea para conseguir um futuro mais risonho na vida civil.
Os aviões Harvard T-6 continuam a levantar voo com os jovens alunos que um dia sonharam confundir-se com os pássaros; são mais de vinte a levantar voo em cada parte do dia, de manhã e de tarde. Os mais determinados saem do perímetro de treino, configurado pelo triângulo entre Mem Martins, Peniche e Praia das Maçãs, e vão mostrar habilidades aos seus conterrâneos ou lançar cartas de amor às namoradas, fazendo acrobacias que lhes estão interditas e abusando da lei da gravidade. Por diversos percalços, nem sempre regressam à base. Os controladores, instalados na torre que domina a planície da Granja do Marquês, tudo registam - quedas por avaria ou por falta de combustível - e anotam as peripécias dos desastrados candidatos a aviadores! Mas também os casos insólitos ficam gravados na memória dos componentes da guarnição, como o que foi denunciado por um telefonema que alertou a torre para o “furacão” que passou sobre a esplanada da Praia das Maçãs, espatifando cadeiras e mesas. Identificado como sendo o avião 1723, pilotado pelo cabo-instrutor Barbosa, logo o comandante, coronel piloto aviador António de Oliveira, ordenou ao oficial de dia que recebesse o “herói” com honras de prevaricador e o metesse na “casa da rata”. Privado da liberdade dos pássaros, que via através das grades, e suspenso de voar, teve tempo para perceber que aquela não foi a maneira correcta para convencer o pai da Nelinha (que ele ama com todas as forças) a mudar de ideias e autorizar o namoro!
Ontem, pelas três da tarde, a perícia do sargento-instrutor Adalberto fez planar o avião, com o motor pifado, desde Pêro Pinheiro até à margem da ribeira que passa ao fundo da pista sul... ficando do outro lado, com as asas partidas e soltas da carlinga que se incendiou. Foi rápida a intervenção dos bombeiros, cujo carro, correndo pela pista em direcção ao desastre, afocinha dentro da ribeira, obrigando à utilização dos extintores portáteis para socorrer os dois ocupantes. Nem todos os extintores funcionaram correctamente, o que implica um processo de averiguações ao azarado Vizela. O major Cerqueira, mais conhecido pelo major “colhões”, instrutor da Isabelinha Bandeira, filha dos condes de Rilvas, manda arquivar o processo por não terem sido apuradas culpas.
Depois de momentos de aflição, os controladores riem às gargalhadas! Na iminência de um grave acidente, lançaram o very-light salvador; o piloto, que se preparava para aterrar em cima de outro avião que ainda rolava na pista, acelera para borregar e vê a carcaça cair e rodar sobre a asa direita, saindo da pista, enquanto o motor percorre mais de cem metros aos trambolhões! Calmamente, o piloto sai da carlinga e vai ver o estado em que ficou o motor. A gargalhada é inevitável.
Ao cair da noite de sexta-feira, para manter os hábitos da roubalheira, o sargento Gabino incumbe o cabo-mecânico Alcides, um matulão de Montalegre, de empurrar pela pista abaixo, até à estrada, o bidão de duzentos litros de gasolina escondido debaixo das ervas da valeta. Em tão má hora o fez que o rapaz foi detido pela guarda da Base e metido na “casa da rata”. Foi o maior azar que algum especialista poderia ter; punido com dez dias de prisão, desencanta-se com a vida e entra no mundo do crime. Em poucas semanas, passa de lorpa a angariador de prostitutas que contrata em Lisboa, aos fins-de-semana, fazendo-as entrar no hangar onde uma cama improvisada serve para consolar os amigos que pagam a respectiva taxa de uso. A meio da tarde, passa pelas camaratas a apregoar a chegada das meninas:
- Eh, pessoal, quem quer “foderi”? São duas gajas boas como milho.
Aquele modo de vida tem curta duração, porque um “oficial de dia” mais atento descobre a marosca e enrola o rapaz numa folha de papel com 25 linhas. Chegado ao comandante, este determina a nomeação do cabo Alcides para Angola, como castigo. Antes do embarque, arranja maneira de legalizar uma das miúdas como sua esposa, com direito a transporte por conta da tropa. Soube-se, mais tarde, que o negócio corre de vento em popa nas terras africanas! Segundo a filosofia de Stendhal, “qualquer bom raciocínio é ofensivo”: porque o raciocínio pode descobrir o mal que dá prazer, sendo por isso que a natureza do ser humano gosta de viver com um pouco de ignorância reconhecida... Será por isso que há burros espertos?
O Sousa sente-se confuso com os estranhos sonhos que lhe tolhem o sono. Nas últimas noites, só vê paisagens africanas, com selva por todos os lados e muitos elefantes rodeados de leões famintos. A noite passada, teve outro sonho, muito mais realista, e escreve à mãe, dando-lhe conta da inquietação:
“Estava um frio cristalino, quando passei pela Baixa de Lisboa, vi muitos mendigos de olhar baço a estender a mão e nem a santa madre igreja lhes dava abrigo na velha Sé Catedral.
Entrei num barco velho, acostado na Gare de Alcântara; no tombadilho escorregadio, andavam umas velhas a limpar os excrementos que as gaivotas cagaram para a guarnição de S. Bento. O timoneiro limpava o leme ao fato acolchoado do homem que brandia a cruz em direcção ao céu. Bem agarrado ao leme, o timoneiro, que foi lente em Coimbra, arregalava os olhos na direcção do sul e cochichava ao ouvido do homem do crucifixo; mas o céu não respondia e ele sorria, sorria... com a cruz dependurada ao peito. Impaciente e temeroso, eu queria voltar para terra e limpar a neblina dos olhos... tomar a vida pela mão e sonhar. Mas o barco, atulhado de morcegos e beatas, perdeu-se no mar e o homem rude, de nariz alongado, deixou cair os olhos sobre as águas, dizendo: «Portugal d’aquém e d’além mar está comigo». Senti um solavanco na carcaça e o barco estava a adornar... Lancei-me à água e nadei, nadei, até me sentir flutuar no tempo, sem nunca mais encontrar o cais. Já muito longe de Lisboa, vi duas ilhas ancoradas! Seriam ilhas? São Tomé e Príncipe? O calor asfixiava naquela paisagem paradisíaca, onde dois homens, calmos como a maresia, pescavam à sombra dos coqueiros que se atiravam para o céu! Ajudaram-me a levantar e comecei a ver com mais claridade: muitos soldados assustados, passavam pelo aeroporto, embarcados na ilusão duma pátria longínqua; meus irmãos desprevenidos e acorrentados às ruínas do império que espera as malfadadas espingardas que uns tipos destemidos lhes tinham prometido. Perdi o pensamento no preciso momento em que chegou o homem do leme, o da cruz vinha atrás –, mandou servir um refresco que me soube a fel; mandou fechar todas as saídas, para o homem da cruz converter os soldados: «Ides combater os infiéis que mataram inocentes polícias!» Todos ficaram a tremer, quando o homem do leme mandou embarcar o povo sob o seu comando. Mal vi uma fresta de luz e comecei a pensar, levei uma pancada na cabeça que me causou arrepios... Era o homem de fato acolchoado a bater com a cruz! Percebi que só os motores podiam falar... o avião seguiu rumo a Luanda, onde encontrei vultos a correr, pareciam macacos; em vez dos elefantes, vi os massacres que deixaram os mortos a ornamentar as ruas, onde as crianças, chorosas, agonizavam, ensanguentadas no sangue dos pais. Um estremecimento arrepiante!... Acordei num sítio com silêncio... tinha o pescoço dorido!”
Com a chegada do pessoal que vem de Lisboa, nota-se um ar sombrio, mesmo de inquietação. Os murmúrios começam a espalhar-se pelas salas dos pilotos, nas oficinas e na torre de controlo: “Os jornais de Lisboa trazem notícias alarmantes do terror em Angola!” “Consta que são aos milhares os corpos barbaramente mutilados pelos terroristas”. A notícia espalha-se por todos os lados, causando alarme entre o pessoal mais antigo.
Ninguém quer acreditar no que está publicado na Ordem de Serviço: “Todos os militares com menos de 18 meses de serviço devem apresentar-se na Secretaria das respectivas esquadras, durante esta semana”. Os especialistas mal classificados nos cursos e outros militares do serviço geral devem preparar-se para embarcar com destino à Base Aérea 3, a fim de frequentar um estágio de Polícia Aérea com a duração de três semanas! O desânimo é geral, sem ninguém perceber o alcance de tal determinação. São várias dezenas de inconformados com a situação, cada um a pensar no futuro empenhado. Polícia Aérea! Três semanas de preparação para a guerra? Por entre olhares sisudos e palavras balbuciadas a conta-gotas, vai-se espalhando a notícia de que grande parte dos componentes do pelotão de Polícia Aérea que defendia a Base do Negage foi aniquilada pelos terroristas. “Mas que fim tão inglório”, dizem alguns; “que azar do caraças”, dizem outros.
Entre embarcar, com grandes probabilidades de ser esquartejado, ou desertar, abandonando o futuro e uma vida normal, é uma escolha muito complicada para o Sousa. Mesmo sabendo que jurou defender a pátria e a bandeira, não vê esse compromisso estender-se para além da Lusitânia; no entanto, entende que desertar é um acto de cobardia e de abandono dos portugueses que estão sendo massacrados.
Passando por um percurso cheio de peripécias, o Sousa chega a Luanda com vontade de ajudar a combater as hordas de selvagens terroristas que estriparam e esquartejaram inocentes no Norte de Angola. Preparado na dura instrução de caçador pára-quedista, embarca no avião da noite, sem ter ninguém a dizer adeus, sem se despedir dos familiares e dos amigos. Cultiva a ideia de que as lamechices só servem para esmorecer a vontade de vencer! Meses depois, enviou uma mensagem para o “Notícias de Penafiel”:
“Neste momento de dúvida e de tristeza, sinto a nostalgia da ausência que me dá saudade. Vou abandonar a mãe-Pátria e partir para a nossa querida província de Angola. Apodera-se de mim o desejo de abraçar todos os entes queridos, os grandes amigos e colegas. Estou sensibilizado, mas não desejo ser herói nem famoso, não pretendo conquistar o que quer que seja. Sou chamado a defender a Pátria, a manter a soberania portuguesa. Parto confiado na protecção omnipotente. Será sempre essa a minha defesa, o meu refúgio. Agora que me afasto de vós, pedi a Deus que eu não tarde a voltar. É meu dever; por isso vou com a fronte erguida.”
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OS RESISTENTES DE MUCABA
Os pedidos de socorro chegavam de todos os lados. Instalado no posto de escuta do Negage, o furriel Nascimento, perturbado pelo pesadelo dos ataques das hordas terroristas, já não dorme há três noites. Os poucos que resistem na Damba, pedem mais reforços de pára-quedistas; mas o comandante tem que fazer avançar para Mucaba uma coluna preparada com os Voluntários e a única força que resta formada por uma patrulha de pára-quedistas comandada pelo alferes Mota da Costa que parte de Luanda em viaturas. Chegados ao Negage, juntam-se os voluntários e outros civis proprietários de fazendas da zona do Bungo até Mucaba, com mais viaturas; partem cerca das onze da noite, percorrendo a picada até ao Bungo sem problemas de maior. Aí juntam-se mais viaturas civis, tendo como organizador o fazendeiro Caras Lindas que se propõe indicar o caminho à dita coluna mista. As dificuldades de progressão aparecem na primeira ponte sobre a ribeira do Lucunga, com abatises e valas a cortar o caminho. Ainda na madrugada são vencidos esses obstáculos, e deixam a picada para 31 de Janeiro, cortando à esquerda para as difíceis e acidentadas picadas dos contrafortes da serra de Mucaba. O objectivo é socorrer os brancos que se tenham refugiado nas fazendas da região e, fundamentalmente, apoiar os resistentes de Mucaba, que nas últimas mensagens davam mostras de desespero, por nem os aviões lhes poderem valer, devido à densa neblina que cobre parte da serra de Mucaba até à parte norte da povoação.
Mais de uma dúzia de carrinhas e camiões são imobilizados devido às abatises impeditivas do andamento da coluna. A segunda ponte sobre o rio Lucunga está destruída, e o fazendeiro Caras Lindas, reúne um punhado de homens duros para o acompanharem até à sua propriedade, distante dali uns escassos quilómetros, e que teve de abandonar corrido pela sanha do terrorismo. Encontra um tractor em condições de funcionar, o qual deu uma grande serventia no transporte de madeira para reparar a ponte. Olha em volta e pensa na família que conseguiu salvar da sanha dos bárbaros do Holden Roberto, as lágrimas correm-lhe pelo rosto; mesmo assim, incentiva o pessoal na azáfama do trabalho em prol dos sitiados na igreja. Parte do pessoal descansa ao lado das viaturas, enquanto outros aproveitam para lavar o rosto ressequido pela poeira encrostada. Deitam mãos à obra e apressam-se de modo a chegarem antes da noite a Mucaba, onde os esperam em desespero. Dando condições de passagem, à ordem do alferes Mota da Costa, as viaturas vão seguindo uma a uma até todas terem passado a ponte, prosseguindo a grande epopeia a caminho de Mucaba, sem ninguém prever o dramático desastre!
Inesperadamente, uma chuva de balas e chumbo de canhangulos começa a bater nas viaturas. Acompanhando os tiros, ouvia-se uma estranha gritaria vinda da confusão da mata: “ulalá, UPA, UPA, mata branco”. Sentindo um estremecimento no corpo do Domingues, o Ornelas fica estarrecido quando vê na testa o efeito do impacto mortífero duma bala que furou a cabeça do companheiro que, de olhos revirados caiu para o lado direito. Tinha acabado de saltar da viatura. Os tiros não foram muitos, mas não deixaram dúvidas sobre a intenção dos bandidos – além de causarem baixas ao pessoal da coluna, atrasaram mais a chegada a Mucaba. Logo à frente, um condutor e mais um civil eram traiçoeiramente abatidos por aqueles a quem, provavelmente, deram trabalho nos meses anteriores à chacina. Confiaram demais e, agora, agonizavam às mãos dos seus dilectos empregados!
O tiroteio denso, não permitia manobras de diversão; mas o alferes Mota da Costa vendo a coluna partida a meio, chamou meia dúzia de pára-quedistas, em melhores condições de progredirem para posições dominantes, que avançam de árvore em árvore até desalojarem os terroristas. A dramática situação agudiza-se quando o tempo escasseia e a morte embrulhada na bruma se apodera da vida daqueles três resistentes ao massacre. Uma onda de consternação estende-se sobre o pessoal que não consegue libertar-se do amontoado de dificuldades que comem o tempo e cobrem de angústia os homens que se batem até à exaustão. Com o sol a inclinar-se para a serra de Mucaba, mais se agudizam os receios sobre a sorte dos que resistem dentro da igreja. Enquanto é pedido o apoio aéreo, o cabo Dário comenta:
- Eh pá, olha se o Domingues não teimasse em ocupar aquele lugar na frente do caminho, era eu que tinha lerpado!
Os PV2 lançam umas bombas sobre o inimigo que foge em direcção a Mucaba. Avisam que vão dar uma ajuda aos que estão lá sitiados. Mas a neblina que cobre parte da serra e a zona baixa da povoação não permite grandes ajudas. Reorganizada a coluna, seguem aos solavancos até ao reencontro com os resistentes que, a medo, vão saindo da igreja que lhes serviu de fortaleza. Já na véspera, o major piloto Diogo Neto havia fornecido munições aos portugueses e bombas aos inimigos. Dissipados os medos e a neblina, aterrou uma Dornier com o coronel pára-quedista Videira que animou o pessoal e deu instruções ao piloto para transportar os feridos até Luanda. Quanto aos mortos, como já nada valem, são transportados nas viaturas que regressam a Negage. Um grupo de voluntários, negros bailundos, fica estacionado em Mucaba até à chegada das tropas do Exército. Não há tempo para comentários, porque a jornada é longa e perigosa. Antes que o inimigo se recomponha do susto das bombas e comece a fazer estragos no caminho, “está a andar, pessoal”!
A MORTE ÀS PORTAS DE MUCABA!
Quiseste trocar de lugar por ordem do destino! Ninguém sabe se terias a chance de resistir a uma bala que te atingisse noutra parte do corpo. A carne, sem a seiva da vitalidade, não tem mais préstimo. Nem a pátria te contempla, como garantem aos heróis! Com a cabeça ensanguentada, o teu sofrimento não interessa a mais ninguém senão aos teus amigos. O sangue assim derramado cortou o elo que te ligava aos teus pais, e a tua morte deixará um lugar vazio em seus corações. Os que conviveram contigo saberão enaltecer a tua generosidade de companheiro e amigo.
Agora na tumba, cabe-te a honra de seres combatente condecorado, amortalhado! Antes foste desterrado para terras distantes, sem desejo de conquista, embrenhado nas matas do Lucunga, sentiste o corpo orvalhado pela neblina da noite de breu, e a recusa na garganta quando te preparavas para o combate naquela mata com palhotas guardadas pelo inimigo. Aí, tiveste a sorte de vencer, atirando com precisão, porque o inimigo apareceu de frente. Desta vez, o teu infortúnio esteve na terrível emboscada onde o inimigo atacou com raiva e proveito, sabendo que só assim atrasaria o socorro aos resistentes de Mucaba; e, nesse dia de desespero, a morte despertou cedo.
Em vez da música dos pássaros na sua liberdade, sentimos o matraquear das armas destruidoras de sonhos e de vidas. Foi assim que terminou o teu destino! Nem a nossa raiva contra os desígnios da má sorte nos fez desistir do combate, mesmo sabendo que ninguém nos poderia devolver a tua vida ceifada pelos chumbos vomitados do cano dum canhangulo ferrugento!
MISSÃO NO BUNGO – Alferes Mota da Costa, em Maio de 1961
Fica para a nobre história dos pára-quedistas a determinação deste jovem oficial.
Sendo reduzidos os efectivos de pára-quedistas para acorrer à defesa das populações mais afectadas pelos ataques da UPA, os contingentes actuavam em grupos de sete a dez elementos, comandados por oficiais ou sargentos pára-quedistas. Como tantas outras povoações, o Bungo era uma das situações complicadas devido aos constantes ataques das hordas terroristas da UPA. O Alferes pára-quedista, Manuel Jorge Mota da Costa, avançou para o Bungo em socorro das poucas dezenas de colonos brancos que lá permaneciam, já esgotados e desmoralizados. Tendo em conta a povoação situada num planalto, logo tratou de dispor de todos os meios na defesa mais eficaz e segura. Percebendo que o pessoal civil estava desgastado e confuso, em 8 de Maio de 1961, pela manhã, redigiu um comunicado à população, que ajudou a melhorar o moral e a desanuviar o desânimo:
“DEFESA DO TERRITÓRIO NACIONAL PORTUGUÊS – à População do Bungo
Vai-se acentuando, de dia para dia, uma experiência que pode levar a certos desmandos e desatinos, o que, aliás, já se tem verificado. Peço, portanto, a todos que se mantenham calmos, que não saiam da área dos seus postos e que, em caso de alarme, os ocupem rapidamente em vez de se juntarem à minha volta. Também se vai criando um movimento de desconfiança que a todos prejudica. O momento actual não é de se porem problemas; proponham-se soluções, mas que não fiquem susceptibilidades.
A situação é de guerra e ninguém o ignora. Medo todos nós sentimos, o que precisamos é saber dominá-lo no devido momento. Aqueles que se não sentirem com condições físicas e principalmente morais, que retirem, pois aqui só prejudicam os que sabem o que querem. Aqui não há lugar para covardes, esses que retirem também, que nós apenas os olhamos com piedade. Se tivermos que cair que caiamos de pé, pois nas nossas veias corre sangue português, o mesmo de há oito séculos.
A bem da defesa do território português, em qualquer parte do mundo.”
assinou o Alferes pára-quedista Manuel Jorge Mota da Costa.
Foi lido e distribuído à população; mais tarde publicado na imprensa e na Ordem de serviço do Batalhão.
Com Normalidade... apareceu a MORTE!
Na orgânica montada para a reparação da ponte que ficava a umas centenas de metros e ligava a povoação ao sul, a caminho de Negage, constava o aproveitamento da madeira das instalações duma fábrica das proximidades. Tendo a patrulha que comandava na segurança aos que reparavam a ponte, o alferes Mota da Costa mandou recolher alguma água para gasto na povoação, pois, presumia que as diarreias e indisposições nos militares se devessem a algum químico deixado por prováveis infiltrados da UPA. A grande debandada das populações da sanzala que ficava na direcção do rio não deixou dúvidas a ninguém de que havia muitos coniventes com as atrocidades de Março. A enorme quantidade de palhotas podia albergar mais de mil habitantes, dos quais não ficou um!
Enquanto o grupo do cabo Frias se ocupava da segurança do pessoal que reparava a ponte, o alferes Mota da Costa, acompanhado do soldado Ribeiro e do civil Caras Lindas, foi fazer o reconhecimento à entrada da sanzala, de modo a manter a ligação entre os dois grupos de pára-quedistas. O cabo Belchior deslocou-se à fábrica, acompanhado do senhor António, da firma Andreas Costa, Ldª., para procurar madeira que servisse na reparação da ponte. Inesperadamente, descobriram um posto com elementos da UPA e abriram fogo, que atingiu alguns inimigos. Na perseguição aos bandidos, foram emboscados no meio do capim e, na confusão do combate, desorientaram-se e, já feridos, ficaram no meio do capim. O alferes Mota da Costa apercebeu-se do perigo que corriam aqueles homens e avançou com o soldado Norberto e o guia civil Caras Lindas; mas, o inimigo persistente, metido no meio dos arbustos, disparava continuamente não dando condições de avanço. Mesmo não sabendo do cabo Belchior e do civil António, mandou recuar o soldado ficando ele a dar cobertura à retirada. Antes da chegada do pessoal que estava na ponte, sem que alguém esperasse, a desgraça veio nas balas disparadas por armas inimigas que, do meio do capim, atingiram mortalmente o alferes Mota da Costa e o civil Caras Lindas que tombaram mesmo ao virar da esquina da primeira palhota fronteira ao largo de entrada na sanzala.
Os restantes elementos do grupo, tendo à frente o cabo Frias, deixaram a zona da ponte e deslocaram-se para o local dos confrontos, onde se bateram com garra e determinação até à debandada dos atacantes. Perante o drama dos atingidos, recolheram os corpos do alferes e do civil, transportando-os até à ponte. Com a chegada de mais uma secção de pára-quedistas, que fazia a segurança da povoação, encetou-se a busca para encontrar o cabo Belchior e os civis desaparecidos. Só algumas horas mais tarde foram encontrados, muito ensanguentados. Entretanto, uma viatura vinda do Bungo, conduzida pelo Lima Querido, levou os feridos para a povoação onde foram tratados, ficando aí a aguardar a chegada do helicóptero que os levaria para Negage.
Foi a consternação geral no Bungo. Enquanto pediam ajuda pela rádio, um avião PV2 sobrevoou a zona, até à evacuação dos feridos.
Quanto aos mortos, também foram levados para o Negage, mas de viatura, onde se misturavam homens cansados e cobertos de poeiras com os defuntos de camuflados empastados de sangue.
DIAS NEGROS... da Damba a 31 de Janeiro
Percorrer quilómetros de picadas cheias de obstáculos e matas quase intransponíveis era uma odisseia de gente ousada e determinada a vencer. Todo o norte de Angola estava a recompor-se dos dias de terror daquele Março mal digerido. As tropas iam tomando posições e instalando os soldados em precárias condições de sobrevivência; depois era a insegurança e a incerteza dos reabastecimentos, nos primeiros meses, com sucessivos ataques às colunas e a remoção de abatises esgotavam as forças dos militares. Mas a esperança é mantida à custa de grandes esforços! Batidas na picada para Sanza Pombo; as difíceis missões para o Bungo e Mucaba, Damba e 31 de Janeiro, só podiam ser concluídas com apoio das tropas especiais. Estando os caçadores mais para sul, os pára-quedistas avançavam para norte. Percursos agrestes em ambientes hostis, seguem as terras até ao fim... da picada!
Chegam à Damba onde os espera a desolação duma povoação sitiada e entregue à pilhagem. Mal o sol caía para os lados de Lucunga, os colonos resistentes acomodavam-se nas casas à volta do posto e aprontavam as espingardas junto aos parapeitos das janelas. A Damba era o ponto de recurso para tentar suster os ataques dos facínoras vindos de ex-Congo Belga. Para ali convergiam as populações das fazendas e roças de Quibocolo e das encostas do rio Ladi. Apenas meia dúzia de pára-quedistas, com dois cães de guerra, garantiam o mínimo de segurança contra as investidas dos bandidos da UPA.
O Castanheira atou a trela do seu cão à grade da varanda da casa do chefe de posto, enquanto ajudava o Venâncio na confecção do petisco para o jantar. As duas galinhas apanhadas no meio da sanzala abandonada chegam para os seis pára-quedistas aconchegarem o estômago. O tenente Martins Veríssimo dá as últimas instruções sobre a melhor posição na defesa contra os prováveis ataques. Os ruídos vindos da mata parecem chinfungos misturados com batuque em ritmos malucos. Percebia-se o toque a convocar os bandidos para a última chamada dos cazimbas (fantasmas) que os hão-de imunizar às balas dos brancos.
Enquanto os mabecos não limparem os últimos corpos espalhados em redor da povoação, o cheiro pestilento continuará a incomodar os sobreviventes à chacina do mês passado. Nos morros à volta, os bandidos aproveitam para se recompor dos primeiros embates. Mas a vida dos resistentes tem que ser defendida no reduto avançado da Damba, embora pareça uma missão impossível, as vontades teimam em vencer as dificuldades.
Os rostos sombrios mostram os efeitos dos dias de sono em trânsito; as peles tisnadas e os corpos chupados denunciam o definhar dos ânimos para continuar. Três fazendeiros de Pungo Andongo vieram visitar os familiares quando rebentou a hecatombe e foram apanhados na encruzilhada dos ataques de Março. O Manuel Santos lamenta não ter possibilidade de contactar com os que ficaram longe: “Dois meses nesta incerteza deixam-me o sangue a palpitar... Mas tenho o pressentimento de que tudo estará bem. Pelo menos sabemos que a chacina não chegou a Pungo Andongo. E se chegasse, a velha fortaleza daria um grande fortim para acolher as populações da zona.”
O ganir dos cães mostra um nervosismo que o Venâncio tenta descodificar. De orelhas arrebitadas, fitam as casas da entrada. O primeiro grupo de bandidos entra pela estrada de 31 de Janeiro, brandindo as catanas. O Garcês, agarrado à metralhadora Dreyse, montada no parapeito da janela, com dois movimentos varre todos os turras que vinham na frente, tendo um deles ficado quase cortado pela cintura. Um turbilhão de seres embrutecidos, armados de catanas e canhangulos, investira contra a metralha dos defensores da Damba; muitos fugiram para as redondezas, deixando rastos de sangue em todas as direcções. Os corpos feridos de morte nem tiveram tempo de perceber a dimensão do trágico acontecimento. Meia hora mais tarde, já se respirava fundo, sem que alguém tivesse coragem de comentar o horror da inconcebível brutalidade. Ninguém sabia sequer se nas próximas horas estariam perante uma nova carnificina.
Nos dois dias seguintes os ataques pareciam mais ferozes e a matança deixou várias dezenas de cadáveres espalhados no terreiro de terra pardacenta. A massa pestilenta tornava o ambiente insuportável; a água potável e víveres começavam a escassear. Era imperioso alterar o cenário para melhorar as condições de sobrevivência à peste e à doença que se adivinhava próxima. O tenente Veríssimo procura organizar a defesa local, fazendo batidas nos terrenos circundantes da povoação, como forma de prevenir a surpresa. Impressionante o que os olhos viam: cadáveres com marcas das balas permaneciam no meio do capim e dos arbustos, já inchados e deformados; restos de corpos carcomidos, de onde os mabecos já tinham tirado alguns nacos! Dos comentários sobre a situação aparecem ideias oblíquas, tão desconexas como irreais: tentar enterrar aqueles corpos ou metê-los dentro duma palhota, juntar lenha e chegar o fogo? A noite seguinte adensava o pesadelo encadeado no dia atribulado.
Das conversas em tempo de vigília, apareceu o civil António Rola a falar do relacionamento entre os pretos das fazendas. Salientou que os bacongos do Norte nunca se deram bem com os bailundos do Sul de Angola; que a rivalidade joga em favor dos brancos, porque os bailundos, além de bons trabalhadores, são mais amigos dos brancos e respeitam as suas ordens. Desde os ataques de Março, os bailundos são atacados pelos bacongos que têm feitiço para não morrer com as balas dos brancos; dizem os bailundos que eles perdem essa magia se lhes cortarem a cabeça. O Venâncio, que ouvia as palavras do civil Rola, chama o tenente e dá uma ideia:
- Meu tenente, por que não aproveitamos a deixa do senhor Rola e cortamos meia dúzia de cabeças para espetar em paus à entrada da Damba, a ver se os gajos se assustam?
- Realmente, está na altura de respondermos com acções mais pensadas e com impacto. Temos reagido por causa dos ataques que nos fazem, o que começa a ser perigoso. Os gajos continuam com a iniciativa e nós podemos ficar mais vulneráveis a essa pressão psicológica. Mas eu não me quero meter nisso das cabeças!
Não foram muitas as cabeças que apareceram espetadas nos paus; em três pontos laterais à estrada, as carapinhas ensanguentadas espelhavam a raiva que por ali andava e que levou à cumplicidade de alguns para a concretização daquele acto macabro. Os dias seguintes foram de uma estranha calma e permitiram que se começasse a enterrar os cadáveres que permaneciam nas proximidades do posto de defesa. Mas os corpos dos feridos que morreram por ali davam a dimensão da horrenda embriaguês com que se lançavam no ataque de peito aberto contra as balas. Os sinais dos banquetes das hienas agoniavam o estômago dos mais fortes, e o cheiro pestilento era insuportável, mas começava a dissipar-se.
O Jacinto acendeu a fogueira para espantar os espíritos ruins para a mata. Com o seu gesto inocente nem percebeu que a noite se tornou mais calma e o crepitar das chamas embala os que repousam com dificuldades de serenarem o sono reparador de medos. O clarão inunda as casas vizinhas por onde pode andar a morte escondida. Os relógios perderam o sentido da contagem do tempo que retém as horas longas, longas, das vidas improvisadas na obscuridade das noites tormentosas. Só o Jacinto continua a alimentar a fogueira que consome o ar irrespirável da povoação. Pelo menos, o fascínio das labaredas tem a dupla função de purificar o ar e ajuda a esvaziar a memória aprisionada aos horrores dos primeiros dias da carnificina.
O que parecia prevenir os ataques dos bandidos e criar condições para algum sossego, tornou-se num novo pesadelo para a saúde. Passados dias, as cabeças infestavam o ar com as moscas embriagadas nas porcarias provocadas pela contínua decomposição, sendo visíveis chusmas de bichos nas cavidades dos olhos e dos ouvidos. Num arremesso de raiva e determinação em vencer as adversidades, reuniram-se esforços e a peste foi arrastada para longe do posto. Os resistentes da Damba continuaram a sofrer os efeitos do isolamento, mas não houve mais ataques em massa. Com a chegada do destacamento de tropas do Exército, os pára-quedistas avançaram para outro reduto a precisar de apoio: a povoação de 31 de Janeiro.
Apesar da ferocidade dos ataques terroristas, a população que conseguiu reagrupar-se no posto de 31 de Janeiro, teve a sorte de encontrar um chefe bem organizado, o que facilitou a vida aos que se acolheram à sua volta. O chefe Rodrigo José Baião deu mostras de grande serenidade e foi um óptimo colaborador do tenente pára-quedistas Martins Veríssimo. Tal como na Damba, os ataques frequentes deixavam um rasto de destruição e morte, tornando a vida muito difícil. Os ensinamentos de outras situações semelhantes servem para aperfeiçoar o engenho de sobrevivência, e alguém se lembrou das cabeças dos mortos para quebrar o ímpeto ao inimigo, com evidentes resultados práticos! A pressão sobre a povoação durou várias semanas, mas diminuíram as escaramuças. E alguém comentou: “Por aqui se percebe como é fácil aos agitadores angariar adeptos para as suas hordas assassinas. Sendo pessoas muito ligadas a preconceitos dos feiticeiros, são instruídos para enfrentar as nossas balas, porque não lhes causarão nenhum mal. Depois é vê-los por aí a estrebuchar, feridos de morte. Bem instalado e protegido, o Holden Roberto comanda este bando de facínoras sedentos de sangue. Um dia hão-de perceber que o terrorismo também lhes cai em cima!”
Depois de assegurada a tomada do posto de 31 de Janeiro, foram feitas batidas nas matas do rio Zadi para tentar apanhar os bandoleiros que, de lá, organizavam os ataques e cercavam a povoação. Uma coluna de reabastecimento vinda de Negage, foi atacada e sofreu dois mortos e cinco feridos, sendo os atacantes interceptados pela patrulha de pára-quedistas que batia a zona. Pedido o apoio da Força Aérea, saíram dois aviões de Luanda em seu auxílio e deram protecção aérea até ao Bungo. Os PV2 com bombas certeiras neutralizam o grupo de atacantes.
Ultimamente, as batidas a Sanza Pombo a partir do Negage ou de 31 de Janeiro, feitas por pequenos grupos de pára-quedistas vão assegurando a reposição da ordem nas povoações mais próximas, sem descorar o reconhecimento das estradas, até à instalação de tropas do Exército. Os acessos às lavras também são importantes e devem ser assegurados.
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LOUVORES aos Resistentes:
(Publicado na Ordem de Serviço do BCP21)
“Ministério do Ultramar
- O posto de 31 de Janeiro, num espaço de 6 dias, foi atacado 3 vezes pelos terroristas, em grande massa e usando todas as formas de destruição ao seu alcance. A população chegou a retirar da sede, mas voltou a reocupá-la com grande coragem, sentido de dever e patriotismo. Distinguiu-se particularmente nessas acções o chefe de posto Rodrigo José Baião e o pessoal seu dependente, pelo que o louvo pela coragem, tenacidade e espírito de sacrifício demonstrados. É digno do mesmo louvor o Tenente pára-quedista Manuel Claudino Martins Veríssimo, que, com uma secção de pára-quedistas, demonstrou muito elevadas qualidades militares, o que será comunicado a Sua Exª. o Ministro da Defesa Nacional.”
MADIMBA
Quando entro na mata em silêncio
a memória atenta logo me desperta
a proximidade da morte que desliza
na ribeira ondulante e fico alerta;
o inimigo espia cada movimento
esquivando-se ao golpe de mão
mas ataca sempre à traição.
O medo que nos envolve no vento
parece persistir no espaço da vigília
e até no ar que respirámos...
cada caminhada é uma perícia
dentro da madrugada silenciosa
este penetrar na mata adormecida
numa busca atenta, dolorosa
natureza que esventrámos
para combater os inimigos da paz,
com profunda certeza, sonhámos,
nesta Angola que muito nos apraz.
DAMBA – HÁ DIAS DE SORTE!
As missões sucediam-se, sem tempo para descanso. As semanas de contínuas batidas nas matas e picadas da zona da Damba já deixavam marcas nos corpos que emagreciam a olhos vistos. Os pára-quedistas, constituídos em dois grupos destacados para as movimentadas missões de apoio às povoações em perigo, encontraram-se, casualmente, na Damba, com destino a rumos diferentes. O grupo do tenente Martins Veríssimo regressava à povoação de 31 de Janeiro, onde se destacou na defesa das populações; o grupo do tenente Proença aguardaria o avião para embarcar com destino a Maquela do Zombo, onde o esperava uma espinhosa missão de reconhecimento na zona de Luvaca, fronteira com o Congo Belga. As informações disponíveis apontavam para uma grande quantidade de bandidos infiltrados a partir do Congo, pelo que teriam de ser montadas emboscadas aos grupos de facínoras referenciados como estando bem armados e treinados de “fresco”. Os pára-quedistas aproveitaram para comer algumas bolachas da Manutenção Militar e saborear umas latas de conserva. Para animar os espíritos amortiçados, os mais palradores trocaram opiniões sobre os percalços das operações e, numa toada de brincadeira, ironizaram sobre os desgostos dos aventureiros com amores em Luanda.
O grupo que chegou da zona de Lemboa preparou as mochilas para embarcar com destino a Maquela, já que o avião Nordatlas fez uma passagem sobre a pista para avisar da iminência da aterragem. Com a deslocação do ar na aterragem, levantou-se uma densa nuvem de poeiras que obrigou a tapar as narinas. O avião parou na improvisada pista e o pelotão embarcou de imediato, porque a noite caía a olhos vistos. Após várias tentativas, os pilotos contactaram com o controlo de Maquela, e a resposta foi uma inesperada decepção: “Não há condições para aterragem nocturna, porque muitos dos candeeiros a petróleo estão vazios e não há pessoal para os encher”. Depois de meia hora numa espera inquietante, o tenente piloto ordenou:
- Toda a gente a desembarcar. O avião vai para o Negage e voltamos amanhã, de manhã cedo.
Com um sussurrar de palavras de descontentamento, o desânimo foi só de alguns! E todos desembarcam para voltar a acantonar. O tenente pára-quedista mandou o pessoal para o local de pernoita, ali junto dos taipais do posto, onde cada um descartou a sua manta para dormir no aconchego da barraca, defendido da cacimbada da noite fria. As más notícias vieram pelo ar – o sargento das comunicações do avião falou ao sargento Ribeiro e este transmitiu ao pessoal:
- Por muito que nos custe, temos de aceitar que a morte anda por aí! Desta vez, foi o soldado Ricardo, depois de ferido, acabou por morrer... Paz à sua alma.
Compreensivamente, todos sentiram a tristeza envolver-lhes a alma e, consternados pela perda de mais um camarada de armas, a noite custará mais a passar.
Alvorada tristonha mas tranquila, sem alaridos nem mosquitos, todos manducaram o mata-bicho depois do despertar sereno. Mas o sossego não durou muito. Uma barulheira estranha de vozes em movimento, vinda da mata, pôs os pára-quedistas em guarda. Poucos minutos passados, irromperam pela estrada central da povoação várias centenas de bandidos a gritar “UPA... UPA... UPA” e outras palavras imperceptíveis, armados de catanas e canhangulos em riste para matar.
Sem esperar por ordens, os pára-quedistas tomaram posições de defesa e as rajadas certeiras e bem compassadas foram abatendo os facínoras que avançavam a peito descoberto contra as balas mortíferas. Alguns, cambaleando, iam caindo trespassados; outros continuavam em debandada, mesmo feridos, passando para o outro lado da povoação e embrenhando-se nas matas. Só uns minutos depois, quando se esperava outra investida, como já era habitual, se percebeu que o ataque foi preparado para varrer o que restava de habitantes brancos e bailundos na povoação! As informações que, certamente, partiram de bandidos escondidos na sanzala local não contaram que o pelotão de pára-quedistas voltasse a desembarcar do avião e permanecesse ali mais uma noite! “Limpeza à povoação e reconhecimento da sanzala”, ordenou o tenente Proença, que entrou na sanzala à frente do seu grupo e disparou duas rajadas de aviso, tal era a sua raiva. O tenente Veríssimo, mais habituado a estes ataques, cauteloso para ser eficiente sem colocar o pessoal em situações de risco desnecessário, e mais contido nas decisões, ordenou ao seu pessoal para fazer uma batida nas imediações da povoação da Damba. Quanto aos bandidos mortos, o chefe do povo da sanzala iria providenciar a sua sepultura.
- Para provar que as balas de branco matam mesmo, terá de se cortar a cabeça a alguns dos mortos – reclamou o cabo Almeida, fazendo fé na convicção de que eles poderiam nascer por feitiço.
- Pois, já é tempo dos chefes da UPA entenderem que estão a mandar os seus apaniguados às “molhadas” para ataques que lhes causam autênticas chacinas – atestou o sargento Saldanha.
JURAMENTO
Juraste um voto constante
de obediência e servidão
até à libertação do espírito.
A salvação está em saberes
defender a honra desse voto
que te redime até à morte,
sem perderes o rumo norte.
Tens a luz da esperança
para venceres a adversidade
e com a pureza duma criança
vais encontrar a liberdade...
com o empenho da tua vida
vais lutar para a não perder
por uma razão qualquer!
Jamais deixarás de saborear
tudo quanto a natureza oferta...
deita fora aquilo que não presta
e o destino saberás desafiar.
S. Salvador do Congo
MAQUELA DO ZOMBO – Emboscadas
Já bem dentro da mata, nas proximidades dos trilhos marcados pela presença de "caminhantes”, os pára-quedistas prepararam as emboscadas planeadas com rigor. A secção do Groselha estava colocada mesmo no enfiamento do trilho que vem da fronteira, a uns dois quilómetros do marco limite do norte de Angola. Passadas duas horas, alguns bandidos carregando sacos, encheram os olhos do soldado Serôdio, que guardava o flanco esquerdo, que logo chamou a atenção do sargento Ferreira:
- Eh pá! Meu sargento, olhe só para aquela clareira debaixo da mangueira!
- São mais de dez, diz o Fonseca.
- Os gajos trazem um lança-granadas e armas às costas!
Num tom mais conformado, o cabo Pastilhas, mostrou o seu espanto:
- São armas novas a brilhar, com o peso, os gajos nem conseguem andar direitos. Ainda não toparam que estamos aqui.
Confiantes no domínio do terreno, os bandidos subiram a encosta sem se aperceberem que estavam a ficar ao alcance da mira das armas dos pára-quedistas.
- Estão a chegar à zona de morte, diz o sargento Ribeiro.
Ainda não tinha acabado de falar e já o estrondo das rajadas de metralhadora violentava o sossego da mata. Os da frente foram atingidos em cheio e tombaram trespassados pelas balas de cabeça cortada – que fazem um rombo irreparável. Os dois retardatários, lançaram os sacos ao chão e fugiram mata dentro, mesmo feridos. Em cinco minutos foram abatidos sete inimigos do povo de Angola, e as armas que carregavam ficaram no chão, impunes... até se confirmar que não havia mais ninguém no grupo.
Demorou mais de meia hora até que a calma regressasse à floresta; tempo mais que suficiente para cinco pára-quedistas recolherem as preciosas armas “finas” num total de onze peças. Distribuída a carga pelas secções, foi retomada a picada para mais uma longa caminhada até Maquela do Zombo. Essa deve ter sido a maior apreensão de material desde Março de 1961, o que muito animou o pessoal.
Quibocolo – ATAQUES EM MASSA
A chegada a Quibocolo foi uma surpresa aterradora. Logo na entrada da estrada que vem de Maquela do Zombo, há cabeças cortadas à catanada espalhadas pelo chão. São dos bailundos que ficaram para ajudar os brancos que tiveram de fugir para a Damba.
– Mas que selvajaria – diz o Alfredo!
Logo o Quaresma atalhou:
– Os turras do Holden Roberto são mesmo sanguinários para com as outras etnias de pretos. Até parece que nem são angolanos.
– Olha Quaresma, dizem que são bacongos do Congo Belga, e até andam com alguns missionários dos evangélicos.
As duas secções de pára-quedistas organizam-se em grupos de cinco para bater as casas e palhotas destruídas. Alguns sacos de terra são colocados em cima do terraço de uma das casas ainda seguras, a que se juntam uns blocos de adobe para servir de parapeito e abrigo contra os atacantes. Ficar em abrigos no chão é o suicídio, atendendo à grande quantidade de terroristas que costumam atacar.
Chegada a noite instalam-se os primeiros pára-quedistas. As granadas e as provisões são dispostas ao lado dos abrigos, enquanto o sargento Assis dá as últimas instruções para a defesa daquele posto: “Muita atenção ao gasto de munições; não quero que nos aconteça o mesmo que aconteceu à malta que esteve no Bungo, se não fossem reabastecidos pela Dornier, ao fim de três ataques já estavam a ficar sem munições.”
Durante a noite, ouve-se um murmúrio longínquo cujo alarido indicia movimentos de terroristas nas imediações. A alvorada traz alguma inquietação, mas não se esperam surpresas; as experiências dos dias anteriores dão alguma confiança ao grupo. Esta calma aparente manteve-se durante todo o dia, de vez em quando quebrada pelo chilreio das aves no meio da mata. E o Alfredo olha fixamente para a floresta, e pergunta ao Serôdio:
– Quando foste cagar ao pé daqueles tufos verdes, não viste se havia lá água?
– Debaixo daquelas mangueiras nasce um pequeno fio de água.
O Alfredo sorri, puxa do cantil e bebe umas boas goladas da última reserva. Limpa a boca, calmamente e dispara:
– Eh malta, temos água ali ao lado daquela plantação de feijões! – Virado para o sargento, dá um recado inteligente:
– Meu sargento, é melhor enchermos os cantis enquanto isto está calmo.
– Pessoal, em grupos de três, vão reabastecer-se de água.
Um a um, descem do posto de vigia, passam pelo meio dos escombros e das cabeças espalhadas no caminho, pedindo aos céus que chova para abafar o cheiro que invade o ambiente. Cem metros abaixo, encontram a água a correr por entre os feijoeiros.
Partilham a frescura da água e a sombra das mangueiras que os protegem dos raios solares, envoltos no silêncio da mata, que nem pensam na guerra. O Santos, que parece estar noutras latitudes, interrompe a quietude do Serôdio e diz:
– Como estará o meu puto, agora com seis meses? Já ando nesta merda há mais de três meses, missões umas atrás das outras, e a mulher nem uma fotografia me mandou!
O sargento, com a sua voz autoritária, manda:
– Quem quiser ir à água, é para despachar; aqui em cima do pátio estamos mais seguros.
Ao segundo dia plantados neste sítio longe de toda a civilização, e pouco depois da recolha de alguma água nas imediações da estrada, um barulho de vozes vindas da mata desperta a atenção da tropa. A meio da manhã, uma gritaria louca põe os nervos em riste e as armas apontadas em todas as direcções. Um numeroso grupo de pretos entra pela povoação dentro, uns a disparar canhangulos contra as posições dos pára-quedistas, outros com as catanas ao alto. Numa correria tresloucada, descarregam toda a sua raiva contra o que resta das casas, indiferentes às balas que atingem aquela horda de bandidos suicidas. É uma avalanche de inconscientes facínoras que, sendo muitos, uma grande quantidade consegue passar para o outro lado da povoação; parte deles dizimados ou esfacelados pelos rebentamentos de algumas granadas lançadas com precisão para cima dos maiores aglomerados de carne para canhão, e as balas, de pontas cortadas, fazem um furo descomunal nos corpos que estrebucham por entre as ruínas das casas.
Ainda mal refeitos do espectacular morticínio, os que restam daquela horda de bestas embriagadas pelo ódio, e que conseguiram passar a barreiras de fogo, já organizam um bando com algumas centenas e voltam a atacar nas mesmas condições, deixando mais umas dezenas de corpos espalhados no meio das ruínas do campo desta batalha desmesurada e incrivelmente estúpida. Vista de cima do terraço, a estrada mais parece um campo de extermínio, com manchas de sangue e cadáveres com os braços e as pernas em posições dantescas, à mistura com as cabeças dos bailundos lambiscadas pelos mabecos e pelas hienas – senhores da selva. O panorama era tão desagradável que o pessoal procurava desviar os olhos para a mata, só para se livrar de sonhar com os fantasmas.
– Onde havíamos de vir parar... Fazer segurança a cabeças de preto, nunca esperei! Agora mais estes que vão ficar a cheirar mal – argumenta o Alfredo.
O Serôdio, virado para o Santos, pergunta:
– Então casaste antes da tropa?
– Oh pá, quando casei já andava nos pára-quedistas a fazer o curso de combate. Antes dos pára-quedistas já tinha seis meses de tropa no Regimento de Infantaria de Évora. Comia-se muito mal no arre-macho, e o meu primo Faísca, que era pára-quedista de 1959, disse-me que aquilo era muito bom, uma tropa com nível e boa alimentação. Arranjou-me uma inscrição, fiz as provas com bons resultados e agora estou aqui.
– Mas porque casaste antes de saíres da tropa?
O Santos responde com um sinal de saudade:
– Ela trabalhava comigo num restaurante de Loulé. O namoro até corria bem, mas ela engravidou e a família pressionou que era melhor casar. Também achei bem e casei. Só que os ataques às roças do café aqui no Norte de Angola começaram umas semanas depois, e cá vim parar.
Já a tarde se faz sentir com o rigor do sol a aquecer os camuflados que queimam a pele, quando algumas latas de conserva servem para alimentar os corpos que ali estão expostos a vários perigos. Com tantos cadáveres espalhados no chão, não há apetites para saborear o almoço que vem tarde, mas o esforço exige alguma reposição de energias. Em retrospectiva das horas passadas neste pesadelo, mais parece que se visiona um filme daqueles onde os atacantes cercam os sitiados dentro das muralhas dos castelos, faltando apenas as escadas de assalto para serem iguais.
O resto do dia foi uma acalmia estranha, com alguns cães macaco a rondar os cadáveres. De noite, a presença de outros animais desejosos de comer a sua refeição – porque a fome toca a todos – ajudou na remoção daqueles corpos que já cheiravam mal e incomodavam as narinas dos pára-quedistas. O contacto rádio com uma Dornier que passou em voo baixo deu para avisar dos perigos das carnes em decomposição, razão por que a continuação do avanço até à Damba era urgente. E foi isso que o comandante do grupo deixou perceber:
– Avisar maior que só temos “morfos” para hoje.
E continuou agarrado ao rádio:
– Se não mandam tropa do exército para ajudar a enterrar os mortos, queimamos esta merda toda e seguimos para a Damba, esperando lá ordens das operações.
E mais um dia despontou sem que os facínoras voltassem a atacar. O cheiro nauseabundo é insuportável, até os olhos começam a lacrimejar tal é o fedor! Do comando de operações não há sinal; nem uma ordem só para passar o tempo, mesmo que seja para mandar o pessoal pescar no rio Bridge, que nasce no morro virado a Sul. O soldado Marcelo já começa a temer os fantasmas:
– Meu sargento, aqueles olhos estão a dar cabo do meu pensamento. A cara do preto não deixa de me fitar, está sempre a olhar p’ra mim!.
Ao fim de três dias naquele ambiente de morte, o cheiro pestilento entranhava-se nas roupas e já mal se respirava! O tempo passa sem que haja sinais da tropa do exército, que deveria ter chegado à povoação três dias antes! Os brancos que em Maquela se dizia estarem em Quibocolo, já devem estar longe... talvez na Damba. A solução mais racional é continuar a abrir caminho até à Damba, onde há água para lavar estes camuflados encrostados de poeira com o suor dos corpos sofridos pelo desgaste, mas também fedorentos com o cheiro dos cadáveres putrefactos a causar náuseas de tirar o apetite.
Mal o sol aparece por entre as árvores viradas aos picos do Béu e já o comandante do grupo manda preparar o equipamento para arrancar numa caminhada difícil e perigosa. Aqui, o perigo é mais grave, porque a peste ronda os nossos corpos. Mesmo em contravenção às regras, aqueles dezoito homens avançam em direcção à Damba, numa jornada de mais de 60 quilómetros de terra batida. Os facínoras do Holden Roberto podem não chatear, mas obrigam a cuidados redobrados para contornar algumas árvores derrubadas sobre a picada. Durante 14 horas de penosa marcha, alguns já começam a fraquejar, tal é a sua debilidade. Mas a tenacidade do corpo e a abnegação do espírito ajudam a fortalecer as pernas para um derradeiro esforço suplementar. Lá ao longe, na Damba, sempre há um ambiente muito mais civilizado: com tropas do Exército, alguma comida de panela, marmita e garfo; e também há mulheres... para passear a vista e sentir o cheiro a catinga! Às sete da tarde terminava esta jornada, que ficará na memória de todos como o pesadelo de dormir com os mortos das cabeças sem corpo!
O ASSALTO
Atirados contra o adobe da sanzala
que rompemos à força de catanas,
nem ouvimos o clamor dos ausentes
das palhotas onde o fogo estala
e chamusca alguns sacanas…
Dois corpos ficaram devolutos
e outros três com mais sorte
nos ardis e bem astutos
encrisparam-se contra as balas
que lhes rasgavam a pele forte…
O estômago encolhido
secou-me os olhos molhados
e a moldura do retrato
ficou na minha memória
rastejando entre o mato
para poder contar a estória.
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