aviagemdosargonautas.net
Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
Publicado por em 27 de fevereiro de 2019
A coligação pluralista de esquerda – ‘engenhoca’ para os seus detratores – em Portugal alterou o discurso político. No entanto, a mudança é menos evidente no terreno.
Estava com pressa, atrasada para onde precisava de estar, que em 4 de outubro de 2015 era a festa pelos resultados eleitorais do Bloco de Esquerda português, no cinema São Jorge, em Lisboa. Então apanhei um táxi.
Os táxis são a melhor forma de saber o que se passa na consciência portuguesa – até mesmo o que se passa no parlamento português.
Os taxistas de Lisboa não têm receio de partilhar a sua opinião e a daqueles que transportam.
Os taxistas, os cabeleireiros e os empregados dos cafés são os barómetros da sociedade portuguesa. E em caso de dúvida, é esta trindade sagrada que consulto.
O que eu não sabia em 4 de outubro de 2015, mesmo depois de ver o Bloco surgir nas sondagens de saída contra todas as probabilidades, mesmo depois de ver amigos tornarem-se deputados e a coligação conservadora perder a sua maioria, era que o paradigma português se iria tornar um enigma para os analistas políticos nos próximos anos.
E mesmo que eu tivesse previsto que a mais dura rodada de medidas de austeridade terminaria com a ascensão da geringonça – um termo depreciativo para o acordo governamental entre o Partido Socialista (PS) e a extrema esquerda na forma de Bloco, o Partido Comunista Português (PCP) e os Verdes – eu nunca teria adivinhado que este novo governo iria levantar tantas questões sobre a natureza da social-democracia no século XXI.
Tudo o que eu sabia era que Portugal, como muitos dos seus confrades do sul da Europa, estava atormentado pela austeridade, desemprego, infra-estruturas sociais em ruínas, agitação social, emigração em massa, descontentamento generalizado e um ligeiro sabor de pânico.
O PS, membro da Internacional Socialista, estava a debater-se indecisamente no terreno e na retórica política. A infame morte do seu homólogo grego, o PASOK, estava ainda fresca. Os católicos conservadores pareciam estar a ir muito bem, a cavalo no (ineptamente chamado) Partido Social-Democrata de centro-direita.
Construindo uma alternativa
“No contexto pós-crise que afectou Portugal, a Europa e o mundo, onde foram impostos cortes nos salários e nos serviços públicos, onde os rendimentos das famílias e o investimento caíram, onde meio milhão de pessoas – na sua maioria jovens qualificados – emigraram, tivemos um caminho enorme e difícil a percorrer“,
disse-me recentemente a diretora nacional do PS, Mariana Vieira da Silva.
“O caminho era construir uma alternativa à política de austeridade defendida pela direita.”
Afirmou que “era, pois, necessário devolver aos cidadãos os seus direitos sociais, inverter os cortes impostos pelos anos de austeridade e também devolver-lhes a confiança num futuro de crescimento e desenvolvimento sustentável“.
Para inverter este “ciclo negativo”, acrescentou, “foi possível encontrar um terreno comum com os outros partidos da esquerda parlamentar e estabelecemos as nossas posições comuns em três acordos históricos“.
Este é o começo da geringonça. E os acordos a que Viera da Silva se refere podem ser vistos como os três orçamentos acordados pelo parlamento português até agora ou as três promessas do PS aos seus parceiros de extrema-esquerda: descongelar as pensões, reformar os impostos que sobrecarregavam muito mais as famílias do que as empresas e parar a privatização desenfreada dos serviços públicos.
A olho nu, estes acordos foram, em geral, respeitados.
À primeira vista, a economia portuguesa parece estar a melhorar e o ritmo da recuperação é, alegadamente, mais rápido do que o da Grécia ou da Espanha. Mas andar pelas ruas da capital portuguesa não se pensaria neste país como um exemplo brilhante de riqueza europeia. Pelo contrário, parece-nos ser o novo “destino turístico quente”.
E, na verdade, essa é uma das coisas que ajudou a criar a miragem que é a recuperação económica portuguesa. No ano passado, um recorde de 20 milhões de estrangeiros visitou o país que tem 10 milhões de habitantes. De acordo com dados recentes do Banco de Portugal, deixaram para trás uns fantásticos 41,5 milhões de euros por dia.
Para o português médio, porém, pouco mudou. Há mais empregos por aí, mas poucos com contratos estáveis. Sob os ditames europeus, muitas empresas públicas continuam a reduzir o seu pessoal sénior e mais bem pago (através da reforma antecipada ou do despedimento voluntário), o emprego precário e sazonal é elevado e sectores vitais como o jornalismo são uma espécie em extinção.
Viragem tática
Foi o colega jornalista e lisboeta Ricardo Cabral Fernandes que me explicou que a viragem à esquerda do governo do PS não passou de um golpe de génio político: “A geringonça foi basicamente uma viragem exclusivamente tática do Partido Socialista“. O meu colega, que trabalha seis dias por semana para duas das maiores publicações de Portugal e gere um escritório de correspondente no estrangeiro com outra pessoa, parece exausto.
“O que aconteceu foi que, por assim dizer, a ala socialista/esquerda do PS aprendeu muito rapidamente as lições do PASOK na Grécia. Por isso, virou a bússola. E [Primeiro-Ministro] António Costa foi essa bússola. Sim, quebrou o arco da governação, fez uma aliança parlamentar com o Bloco e o PCP, mas para tudo o resto, em termos políticos, mantém a mesma política“.
O que o PS foi capaz de fazer, argumenta ele, foi mudar radicalmente a forma como os eleitores entendiam o partido. Enquanto antigamente era atacado tanto pela direita como pela extrema esquerda, com a geringonça o PS criou algum espaço para crescer com pelo menos um cessar-fogo do Bloco e do PCP.
Parte dessa estratégia era uma mensagem forte do PS, argumentando que, afinal, a austeridade não era tão inevitável como antes tinha sido aceite. “Passados quase três anos, estamos em condições de dizer que as nossas políticas funcionaram e que o PS soube afirmar uma alternativa real àqueles que disseram que não existia“, disse Vieira da Silva.
Onde fica o apoio pontual do PS ao memorando da “troika” (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional), ninguém tem a certeza.
“O Partido Socialista é um exemplo da possibilidade de construir uma alternativa sem romper com os compromissos europeus“, insiste ela. “Mostrámos que, mesmo com uma política diferente, é possível construir um país mais equitativo, com mais e melhores empregos, e desfrutar do maior crescimento económico desde a adesão ao euro. Tudo ao abrigo das mesmas regras que se aplicam a outros países da União Europeia“. E acrescenta: “Foi com esta política que eliminámos o défice excessivo e atingimos os seus baixos níveis históricos. É por isso que Portugal tem hoje uma economia e finanças públicas sólidas“.
E no entanto, o investimento público em Portugal é o mais baixo de todas as economias avançadas, de acordo com o FMI. As promessas de melhorar este registo pouco têm surgido no terreno. Os serviços públicos, como as redes de transportes e o serviço nacional de saúde, estão em crise aguda, e os professores declararam guerra ao governo por causa dos aumentos salariais falhados.
As indústrias do país também não mudaram muito desde 2015. Além do turismo, é claro – e muito disso é controlado pelo investimento estrangeiro, particularmente da China. Outros grandes investimentos em infraestrutura portuguesa foram feitos por empresas espanholas, brasileiras e americanas. Poucas receitas públicas se esperam deles nos próximos anos.
Realpolitik
Contudo, há um argumento a fazer valer quanto à Realpolitik que está detrás da geringonça. Ainda que não estando isenta de contradições, a geringonça — enquanto governo que não implementou a austeridade mas que também não é abertamente anti-austeridade — permitiu a Portugal fazer coisas que a troika não permitiu que a Grécia fizesse.
Cabral Fernandes não tem dúvidas de que a União Europeia teria caído sobre Portugal, como caiu sobre a Grécia nos primeiros tempos do governo Syriza, se o geringonça se tivesse tornado um governo mais radical, pronto a falar de reestruturação da dívida ou de renacionalização dos serviços públicos: “Os dogmas da União Europeia continuam, na Grécia e em toda a parte.”
“Foi esta política que permitiu uma vida melhor para os portugueses e lhes devolveu a confiança que tinham perdido nas instituições, na União Europeia e na democracia em geral“, disse a diretora nacional do PS. “De acordo com o último Eurobarómetro, 75 por cento dos portugueses estão satisfeitos com a democracia em Portugal, o que contrasta com 15 por cento em 2013. A confiança no governo, no parlamento e nas instituições europeias também tem vindo a aumentar desde que formamos um governo“.
Isto, considera ela, frustrou também os “projectos populistas, nacionalistas e desestabilizadores” que se multiplicaram por toda a Europa. “Estas narrativas não cresceram em Portugal porque acreditamos que o cerne das políticas do governo deve ser a confiança. Os portugueses sentem que regressaram ou estão a regressar à normalidade. Ao dar-lhes segurança e esperança no futuro, estamos simultaneamente a combater a ameaça do “populismo“.
O meu barómetro de confiança, o próximo taxista, concordou com ela. Era um homem de meia-idade chamado Tó Vieira e disse-me prontamente que “só há dois verdadeiros políticos em Portugal“. Um era o Costa. Sentiu que as coisas estavam a mudar lentamente, mas não para todos. Dos seus dois filhos, um estava no estrangeiro. O outro estava inseguro quanto às probabilidades de encontrar um emprego depois de se formar.
Mais importante, porém, ele disse-me que costumava ser um militante da PS. “Eu era membro do Partido Socialista no tempo de Lopes Cardoso e de Salgado Zenha, mas quando eles saíram, eu saí“, disse ele numa espécie de resignação alegre. António Lopes Cardoso e Francisco Salgado Zenha foram dois heróis da revolução portuguesa, fundadores do PS e membros das suas fileiras mais esquerdistas.
Ambos abandonaram o partido quando a sua essência socialista se transformou na natureza social-democrata que adoptou até hoje.
Para muitos portugueses como Vieira, certamente para aqueles que o apoiaram nos primeiros anos do novo Portugal democrático, o PS deixou de ser um partido de transformação e esperança e passou a ser um partido do status quo e “empregos para os rapazes”.
Mas desde a geringonça há uma esperança recém-nascida. Não necessariamente esperança de uma vida melhor, como sugeriu Vieira da Silva, mas esperança de que as coisas em São Bento (leia-se o establishment político português) estão a avançar numa direção diferente.
A mais forte lição
E essa é talvez a lição mais forte da geringonça – tanto para o PS como para os analistas políticos fascinados pelo seu anacrónico renascimento. Numa altura em que os seus partidos irmãos na Alemanha e em França estão com sondagens de 17 por cento e 4,5 por cento, respetivamente, o PS tem-se situado consistentemente cerca de 40 por cento desde a sua viragem à esquerda.
O único outro caso de sucesso de um partido social-democrata nestes termos é o do Partido Trabalhista Britânico. Também aí, embora em circunstâncias diferentes, se verificou uma viragem brusca da social-democracia para o socialismo democrático.
Na última década, os partidos social-democratas, defendendo reformas menores, muitas vezes promovendo políticas como a “luz da austeridade”, ou encobrindo privatizações em linguagem programada e chamando-lhes parcerias público-privadas, tornaram-se irrelevantes para um eleitorado ávido por um novo sistema.
Novos partidos com bases de apoio menores começaram a proliferar por toda a Europa, apelando não para o capitalismo ético, mas para o fim do capitalismo. E à medida que a situação socioeconómica piorou, também esses movimentos se tornaram maiores, como vimos com o nascimento de Syriza na Grécia e Podemos na Espanha.
As reformas menores foram repudiadas em favor de promessas políticas mais ousadas, incluindo a inversão de muitas das políticas implementadas pela última geração de social-democratas. Na verdade, essas promessas, como muitos críticos assinalaram, não eram revolucionárias, mas regressivas na sua essência – um retorno, de facto, ao bem nutrido Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra.
Tal como com Syriza e Podemos, também o PS e o Partido Trabalhista conseguiram mais uma vez apelar ao eleitorado, virando à esquerda e oferecendo um socialismo que, mais do que utópico, é, em última análise, nostálgico.
De facto, o PS e o Labour beneficiaram do facto de terem uma história mais longa, uma estrutura firme e os recursos para fazer mais e chegar mais longe do que os novos movimentos. E por recursos não me refiro apenas a doações, ou a voluntários que batem à porta e folhetos, mas também a ligações e relações com o resto das suas instituições nacionais e internacionais.
No entanto, existem grandes diferenças entre o PS e o Partido Trabalhista. Para começar, os números do partido português no terreno estão longe de aumentar como os do Partido Trabalhista.
Por outras palavras, o apoio ao PS baseia-se no seu desempenho como governo. Enquanto navega pelas pressões dos seus parceiros de extrema-esquerda, o PS tem de ser eficaz para o eleitorado e produzir resultados palpáveis, de modo a garantir o seu controlo do poder.
A sua viragem à esquerda não é ideológica, mas tática. Por essa razão também, a reação dos principais meios de comunicação e instituições financeiras ao seu governo tem variado de descontente a indulgente, em vez de hostilidade violenta.
O Partido Trabalhista fez quase o oposto. Começou uma luta no seu âmago pelo coração e alma do partido. É liderada por pessoas que acreditam na viragem política como o caminho ideológico a seguir, em vez do útil passo em frente. E embora ambos sejam permitidos no jogo político, parece que o primeiro é de natureza duradoura, considerando as posições políticas tomadas pelas gerações mais jovens – os Millennials e a Geração Z.
Caprichos do capital
Com efeito, a lição dos novos partidos mais pequenos, do Bloco e do Podemos, e mesmo do Syriza, é que as organizações políticas sem um trabalho sério de construção de bases ideológicas, sem institucionalização – não em termos de política parlamentar, mas em termos de cristalização de estruturas internas – não sobrevivem aos caprichos do capitalismo. Porque o capital está disposto a acomodar a sua sobrevivência, o tempo que for necessário, até que volte a mostrar a sua cabeça feia na oportunidade mais próxima. Mas isto, em vez de entregar um novo sistema, perpetua um ciclo existente que não terminará se não o quisermos. No entanto, o futuro exige que nós devemos querer, se é que deve haver um futuro.
Para vencer as alterações climáticas e a xenofobia violenta, para alargar a solidariedade internacional e resolver conflitos, para erradicar a pobreza e trazer abundância, o Partido Socialista, como salientou Vieira da Silva, deve cooperar internacionalmente. Mas, num mundo polarizado, as escolhas de com quem trabalhar para alcançar estes objetivos estão a diminuir. Por isso, é sem dúvida essencial que o PS dê as mãos e aprenda com os trabalhistas, encorajando outros partidos social-democratas a abrir os braços ao socialismo democrático e aos seus apoiantes.
Só assim o Partido Socialista, e por extensão o paradigma português, poderá deixar de ser um enigma político – uma geringonça – e passar a ser o futuro da Europa.
Esta é uma versão editada da contribuição da autora para What’s Left? The State of Global Social Democracy and Lessons for UK Labour, publicado por Compass.
Texto disponível em https://www.socialeurope.eu/portugals-contraption-government
A autora: Joana Ramiro é jornalista (1988-), escritora independente e comentadora política. Mudou-se para Londres em 2006, onde se licenciou em Publicidade em 2009, e trabalhou em relações públicas de moda durante algum tempo, tendo escrito para Fashion 156 e WWD. Manteve o seu amor pelas roupas mas cansou-se das dietas de salada impostas pela indústria da alta costura. Tem uma pós-graduação em Middle East Politics pela School of Oriental and African Studies, de Londres. Fluente em Português e Alemão, a maior parte do seu trabalho é feito em inglês. Fala também francês e espanhol. Uma das fundadoras em 2010 de National Campaign Against Fees and Cuts, bem como o seu Chefe de Imprensa – um posto que manteve até depois do colapso do movimento estudantil. Nessa altura começou a escrever para uma série de blogs e publicações. No verão de 2010 visitou a Palestina, de onde escreveu sobre o drama de pessoas que vivem em campos de refugiados internos e os efeitos do muro de Apartheid. Em fevereiro de 2011 viajou ao Cairo para fazer a cobertura da ocupação da praça Tahrir. Regressou do Cairo após a queda do Presidente Mubarak que lhe permitiu fazer o relato do rescaldo da “Primavera Árabe”. De regresso à Grã-Bretanha, foi a primeira repórter a cobrir a luta de Focus E15, um grupo de mães solteiras em campanha para serem realojadas, depois de terem sido despejadas de um hostel pelo Newham Council em 2014. Fez também a reportagem de uma série de demonstrações de massa, ocupações, deportações e greves, centrando-se nos efeitos das políticas de austeridade na sociedade britânica. Cobriu também as eleições gregas em janeiro de 2015, o campo de refugiados de Calais e uma série de peças sobre questões sociais, económicas e políticas portuguesas. Como comentadora política, Joana destacou-se em Channel 4 News, BBC e LBC radio, assim como em debates contra colegas especialistas como Peter Oborne, Michael White and Peter Hitchens. Trabalhou como assistente editorial em Pluto Press, como correspondente para assuntos sociais no Morning Star, como reporter online e apresentadora na RT UK, e também para Associated Press, Sunday Mirror, Independent, New Statesman, e Vice.
Seleção de Júlio Marques Mota e tradução de Francisco Tavares
13. O Governo “engenhoca” de Portugal: há substância para além da retórica?
Por Joana RamiroPublicado por em 27 de fevereiro de 2019
A coligação pluralista de esquerda – ‘engenhoca’ para os seus detratores – em Portugal alterou o discurso político. No entanto, a mudança é menos evidente no terreno.
Estava com pressa, atrasada para onde precisava de estar, que em 4 de outubro de 2015 era a festa pelos resultados eleitorais do Bloco de Esquerda português, no cinema São Jorge, em Lisboa. Então apanhei um táxi.
Os táxis são a melhor forma de saber o que se passa na consciência portuguesa – até mesmo o que se passa no parlamento português.
Os taxistas de Lisboa não têm receio de partilhar a sua opinião e a daqueles que transportam.
Os taxistas, os cabeleireiros e os empregados dos cafés são os barómetros da sociedade portuguesa. E em caso de dúvida, é esta trindade sagrada que consulto.
O que eu não sabia em 4 de outubro de 2015, mesmo depois de ver o Bloco surgir nas sondagens de saída contra todas as probabilidades, mesmo depois de ver amigos tornarem-se deputados e a coligação conservadora perder a sua maioria, era que o paradigma português se iria tornar um enigma para os analistas políticos nos próximos anos.
E mesmo que eu tivesse previsto que a mais dura rodada de medidas de austeridade terminaria com a ascensão da geringonça – um termo depreciativo para o acordo governamental entre o Partido Socialista (PS) e a extrema esquerda na forma de Bloco, o Partido Comunista Português (PCP) e os Verdes – eu nunca teria adivinhado que este novo governo iria levantar tantas questões sobre a natureza da social-democracia no século XXI.
Tudo o que eu sabia era que Portugal, como muitos dos seus confrades do sul da Europa, estava atormentado pela austeridade, desemprego, infra-estruturas sociais em ruínas, agitação social, emigração em massa, descontentamento generalizado e um ligeiro sabor de pânico.
O PS, membro da Internacional Socialista, estava a debater-se indecisamente no terreno e na retórica política. A infame morte do seu homólogo grego, o PASOK, estava ainda fresca. Os católicos conservadores pareciam estar a ir muito bem, a cavalo no (ineptamente chamado) Partido Social-Democrata de centro-direita.
Construindo uma alternativa
“No contexto pós-crise que afectou Portugal, a Europa e o mundo, onde foram impostos cortes nos salários e nos serviços públicos, onde os rendimentos das famílias e o investimento caíram, onde meio milhão de pessoas – na sua maioria jovens qualificados – emigraram, tivemos um caminho enorme e difícil a percorrer“,
disse-me recentemente a diretora nacional do PS, Mariana Vieira da Silva.
“O caminho era construir uma alternativa à política de austeridade defendida pela direita.”
Afirmou que “era, pois, necessário devolver aos cidadãos os seus direitos sociais, inverter os cortes impostos pelos anos de austeridade e também devolver-lhes a confiança num futuro de crescimento e desenvolvimento sustentável“.
Para inverter este “ciclo negativo”, acrescentou, “foi possível encontrar um terreno comum com os outros partidos da esquerda parlamentar e estabelecemos as nossas posições comuns em três acordos históricos“.
Este é o começo da geringonça. E os acordos a que Viera da Silva se refere podem ser vistos como os três orçamentos acordados pelo parlamento português até agora ou as três promessas do PS aos seus parceiros de extrema-esquerda: descongelar as pensões, reformar os impostos que sobrecarregavam muito mais as famílias do que as empresas e parar a privatização desenfreada dos serviços públicos.
A olho nu, estes acordos foram, em geral, respeitados.
À primeira vista, a economia portuguesa parece estar a melhorar e o ritmo da recuperação é, alegadamente, mais rápido do que o da Grécia ou da Espanha. Mas andar pelas ruas da capital portuguesa não se pensaria neste país como um exemplo brilhante de riqueza europeia. Pelo contrário, parece-nos ser o novo “destino turístico quente”.
E, na verdade, essa é uma das coisas que ajudou a criar a miragem que é a recuperação económica portuguesa. No ano passado, um recorde de 20 milhões de estrangeiros visitou o país que tem 10 milhões de habitantes. De acordo com dados recentes do Banco de Portugal, deixaram para trás uns fantásticos 41,5 milhões de euros por dia.
Para o português médio, porém, pouco mudou. Há mais empregos por aí, mas poucos com contratos estáveis. Sob os ditames europeus, muitas empresas públicas continuam a reduzir o seu pessoal sénior e mais bem pago (através da reforma antecipada ou do despedimento voluntário), o emprego precário e sazonal é elevado e sectores vitais como o jornalismo são uma espécie em extinção.
Viragem tática
Foi o colega jornalista e lisboeta Ricardo Cabral Fernandes que me explicou que a viragem à esquerda do governo do PS não passou de um golpe de génio político: “A geringonça foi basicamente uma viragem exclusivamente tática do Partido Socialista“. O meu colega, que trabalha seis dias por semana para duas das maiores publicações de Portugal e gere um escritório de correspondente no estrangeiro com outra pessoa, parece exausto.
“O que aconteceu foi que, por assim dizer, a ala socialista/esquerda do PS aprendeu muito rapidamente as lições do PASOK na Grécia. Por isso, virou a bússola. E [Primeiro-Ministro] António Costa foi essa bússola. Sim, quebrou o arco da governação, fez uma aliança parlamentar com o Bloco e o PCP, mas para tudo o resto, em termos políticos, mantém a mesma política“.
O que o PS foi capaz de fazer, argumenta ele, foi mudar radicalmente a forma como os eleitores entendiam o partido. Enquanto antigamente era atacado tanto pela direita como pela extrema esquerda, com a geringonça o PS criou algum espaço para crescer com pelo menos um cessar-fogo do Bloco e do PCP.
Parte dessa estratégia era uma mensagem forte do PS, argumentando que, afinal, a austeridade não era tão inevitável como antes tinha sido aceite. “Passados quase três anos, estamos em condições de dizer que as nossas políticas funcionaram e que o PS soube afirmar uma alternativa real àqueles que disseram que não existia“, disse Vieira da Silva.
Onde fica o apoio pontual do PS ao memorando da “troika” (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional), ninguém tem a certeza.
“O Partido Socialista é um exemplo da possibilidade de construir uma alternativa sem romper com os compromissos europeus“, insiste ela. “Mostrámos que, mesmo com uma política diferente, é possível construir um país mais equitativo, com mais e melhores empregos, e desfrutar do maior crescimento económico desde a adesão ao euro. Tudo ao abrigo das mesmas regras que se aplicam a outros países da União Europeia“. E acrescenta: “Foi com esta política que eliminámos o défice excessivo e atingimos os seus baixos níveis históricos. É por isso que Portugal tem hoje uma economia e finanças públicas sólidas“.
E no entanto, o investimento público em Portugal é o mais baixo de todas as economias avançadas, de acordo com o FMI. As promessas de melhorar este registo pouco têm surgido no terreno. Os serviços públicos, como as redes de transportes e o serviço nacional de saúde, estão em crise aguda, e os professores declararam guerra ao governo por causa dos aumentos salariais falhados.
As indústrias do país também não mudaram muito desde 2015. Além do turismo, é claro – e muito disso é controlado pelo investimento estrangeiro, particularmente da China. Outros grandes investimentos em infraestrutura portuguesa foram feitos por empresas espanholas, brasileiras e americanas. Poucas receitas públicas se esperam deles nos próximos anos.
Realpolitik
Contudo, há um argumento a fazer valer quanto à Realpolitik que está detrás da geringonça. Ainda que não estando isenta de contradições, a geringonça — enquanto governo que não implementou a austeridade mas que também não é abertamente anti-austeridade — permitiu a Portugal fazer coisas que a troika não permitiu que a Grécia fizesse.
Cabral Fernandes não tem dúvidas de que a União Europeia teria caído sobre Portugal, como caiu sobre a Grécia nos primeiros tempos do governo Syriza, se o geringonça se tivesse tornado um governo mais radical, pronto a falar de reestruturação da dívida ou de renacionalização dos serviços públicos: “Os dogmas da União Europeia continuam, na Grécia e em toda a parte.”
“Foi esta política que permitiu uma vida melhor para os portugueses e lhes devolveu a confiança que tinham perdido nas instituições, na União Europeia e na democracia em geral“, disse a diretora nacional do PS. “De acordo com o último Eurobarómetro, 75 por cento dos portugueses estão satisfeitos com a democracia em Portugal, o que contrasta com 15 por cento em 2013. A confiança no governo, no parlamento e nas instituições europeias também tem vindo a aumentar desde que formamos um governo“.
Isto, considera ela, frustrou também os “projectos populistas, nacionalistas e desestabilizadores” que se multiplicaram por toda a Europa. “Estas narrativas não cresceram em Portugal porque acreditamos que o cerne das políticas do governo deve ser a confiança. Os portugueses sentem que regressaram ou estão a regressar à normalidade. Ao dar-lhes segurança e esperança no futuro, estamos simultaneamente a combater a ameaça do “populismo“.
O meu barómetro de confiança, o próximo taxista, concordou com ela. Era um homem de meia-idade chamado Tó Vieira e disse-me prontamente que “só há dois verdadeiros políticos em Portugal“. Um era o Costa. Sentiu que as coisas estavam a mudar lentamente, mas não para todos. Dos seus dois filhos, um estava no estrangeiro. O outro estava inseguro quanto às probabilidades de encontrar um emprego depois de se formar.
Mais importante, porém, ele disse-me que costumava ser um militante da PS. “Eu era membro do Partido Socialista no tempo de Lopes Cardoso e de Salgado Zenha, mas quando eles saíram, eu saí“, disse ele numa espécie de resignação alegre. António Lopes Cardoso e Francisco Salgado Zenha foram dois heróis da revolução portuguesa, fundadores do PS e membros das suas fileiras mais esquerdistas.
Ambos abandonaram o partido quando a sua essência socialista se transformou na natureza social-democrata que adoptou até hoje.
Para muitos portugueses como Vieira, certamente para aqueles que o apoiaram nos primeiros anos do novo Portugal democrático, o PS deixou de ser um partido de transformação e esperança e passou a ser um partido do status quo e “empregos para os rapazes”.
Mas desde a geringonça há uma esperança recém-nascida. Não necessariamente esperança de uma vida melhor, como sugeriu Vieira da Silva, mas esperança de que as coisas em São Bento (leia-se o establishment político português) estão a avançar numa direção diferente.
A mais forte lição
E essa é talvez a lição mais forte da geringonça – tanto para o PS como para os analistas políticos fascinados pelo seu anacrónico renascimento. Numa altura em que os seus partidos irmãos na Alemanha e em França estão com sondagens de 17 por cento e 4,5 por cento, respetivamente, o PS tem-se situado consistentemente cerca de 40 por cento desde a sua viragem à esquerda.
O único outro caso de sucesso de um partido social-democrata nestes termos é o do Partido Trabalhista Britânico. Também aí, embora em circunstâncias diferentes, se verificou uma viragem brusca da social-democracia para o socialismo democrático.
Na última década, os partidos social-democratas, defendendo reformas menores, muitas vezes promovendo políticas como a “luz da austeridade”, ou encobrindo privatizações em linguagem programada e chamando-lhes parcerias público-privadas, tornaram-se irrelevantes para um eleitorado ávido por um novo sistema.
Novos partidos com bases de apoio menores começaram a proliferar por toda a Europa, apelando não para o capitalismo ético, mas para o fim do capitalismo. E à medida que a situação socioeconómica piorou, também esses movimentos se tornaram maiores, como vimos com o nascimento de Syriza na Grécia e Podemos na Espanha.
As reformas menores foram repudiadas em favor de promessas políticas mais ousadas, incluindo a inversão de muitas das políticas implementadas pela última geração de social-democratas. Na verdade, essas promessas, como muitos críticos assinalaram, não eram revolucionárias, mas regressivas na sua essência – um retorno, de facto, ao bem nutrido Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra.
Tal como com Syriza e Podemos, também o PS e o Partido Trabalhista conseguiram mais uma vez apelar ao eleitorado, virando à esquerda e oferecendo um socialismo que, mais do que utópico, é, em última análise, nostálgico.
De facto, o PS e o Labour beneficiaram do facto de terem uma história mais longa, uma estrutura firme e os recursos para fazer mais e chegar mais longe do que os novos movimentos. E por recursos não me refiro apenas a doações, ou a voluntários que batem à porta e folhetos, mas também a ligações e relações com o resto das suas instituições nacionais e internacionais.
No entanto, existem grandes diferenças entre o PS e o Partido Trabalhista. Para começar, os números do partido português no terreno estão longe de aumentar como os do Partido Trabalhista.
Por outras palavras, o apoio ao PS baseia-se no seu desempenho como governo. Enquanto navega pelas pressões dos seus parceiros de extrema-esquerda, o PS tem de ser eficaz para o eleitorado e produzir resultados palpáveis, de modo a garantir o seu controlo do poder.
A sua viragem à esquerda não é ideológica, mas tática. Por essa razão também, a reação dos principais meios de comunicação e instituições financeiras ao seu governo tem variado de descontente a indulgente, em vez de hostilidade violenta.
O Partido Trabalhista fez quase o oposto. Começou uma luta no seu âmago pelo coração e alma do partido. É liderada por pessoas que acreditam na viragem política como o caminho ideológico a seguir, em vez do útil passo em frente. E embora ambos sejam permitidos no jogo político, parece que o primeiro é de natureza duradoura, considerando as posições políticas tomadas pelas gerações mais jovens – os Millennials e a Geração Z.
Caprichos do capital
Com efeito, a lição dos novos partidos mais pequenos, do Bloco e do Podemos, e mesmo do Syriza, é que as organizações políticas sem um trabalho sério de construção de bases ideológicas, sem institucionalização – não em termos de política parlamentar, mas em termos de cristalização de estruturas internas – não sobrevivem aos caprichos do capitalismo. Porque o capital está disposto a acomodar a sua sobrevivência, o tempo que for necessário, até que volte a mostrar a sua cabeça feia na oportunidade mais próxima. Mas isto, em vez de entregar um novo sistema, perpetua um ciclo existente que não terminará se não o quisermos. No entanto, o futuro exige que nós devemos querer, se é que deve haver um futuro.
Para vencer as alterações climáticas e a xenofobia violenta, para alargar a solidariedade internacional e resolver conflitos, para erradicar a pobreza e trazer abundância, o Partido Socialista, como salientou Vieira da Silva, deve cooperar internacionalmente. Mas, num mundo polarizado, as escolhas de com quem trabalhar para alcançar estes objetivos estão a diminuir. Por isso, é sem dúvida essencial que o PS dê as mãos e aprenda com os trabalhistas, encorajando outros partidos social-democratas a abrir os braços ao socialismo democrático e aos seus apoiantes.
Só assim o Partido Socialista, e por extensão o paradigma português, poderá deixar de ser um enigma político – uma geringonça – e passar a ser o futuro da Europa.
Esta é uma versão editada da contribuição da autora para What’s Left? The State of Global Social Democracy and Lessons for UK Labour, publicado por Compass.
Texto disponível em https://www.socialeurope.eu/portugals-contraption-government
A autora: Joana Ramiro é jornalista (1988-), escritora independente e comentadora política. Mudou-se para Londres em 2006, onde se licenciou em Publicidade em 2009, e trabalhou em relações públicas de moda durante algum tempo, tendo escrito para Fashion 156 e WWD. Manteve o seu amor pelas roupas mas cansou-se das dietas de salada impostas pela indústria da alta costura. Tem uma pós-graduação em Middle East Politics pela School of Oriental and African Studies, de Londres. Fluente em Português e Alemão, a maior parte do seu trabalho é feito em inglês. Fala também francês e espanhol. Uma das fundadoras em 2010 de National Campaign Against Fees and Cuts, bem como o seu Chefe de Imprensa – um posto que manteve até depois do colapso do movimento estudantil. Nessa altura começou a escrever para uma série de blogs e publicações. No verão de 2010 visitou a Palestina, de onde escreveu sobre o drama de pessoas que vivem em campos de refugiados internos e os efeitos do muro de Apartheid. Em fevereiro de 2011 viajou ao Cairo para fazer a cobertura da ocupação da praça Tahrir. Regressou do Cairo após a queda do Presidente Mubarak que lhe permitiu fazer o relato do rescaldo da “Primavera Árabe”. De regresso à Grã-Bretanha, foi a primeira repórter a cobrir a luta de Focus E15, um grupo de mães solteiras em campanha para serem realojadas, depois de terem sido despejadas de um hostel pelo Newham Council em 2014. Fez também a reportagem de uma série de demonstrações de massa, ocupações, deportações e greves, centrando-se nos efeitos das políticas de austeridade na sociedade britânica. Cobriu também as eleições gregas em janeiro de 2015, o campo de refugiados de Calais e uma série de peças sobre questões sociais, económicas e políticas portuguesas. Como comentadora política, Joana destacou-se em Channel 4 News, BBC e LBC radio, assim como em debates contra colegas especialistas como Peter Oborne, Michael White and Peter Hitchens. Trabalhou como assistente editorial em Pluto Press, como correspondente para assuntos sociais no Morning Star, como reporter online e apresentadora na RT UK, e também para Associated Press, Sunday Mirror, Independent, New Statesman, e Vice.
Sem comentários:
Enviar um comentário