FERNANDO MADAÍL
Além do "rebanho pestífero" dos judeus, como o definiu o Papa Estêvão III, e da "grande heresia do nosso tempo", como Salazar rotulava o comunismo, em Portugal também foram sendo criticados ou perseguidos clérigos e muçulmanos, protestantes e jesuítas, mações e liberais, feministas e americanos.
"Não haverá cardeal tão cheio de honras nem Papa que viesse aí que me desse a mão a beijar que eu não lhe cortasse o braço pelo cotovelo", terá dito D. Afonso Henriques, em pleno conflito entre monarca e Roma, após o episódio do Bispo Negro. Dessa pioneira manifestação do anticlericalismo português até ao, mais ou menos "ritual", antiamericanismo manifestado pelo PCP e pela extrema-esquerda, cujas sedes foram incendiadas na vaga popular de anticomunismo do Verão Quente de 1975, há quase nove séculos de muitas intolerâncias neste país que já foi definido como sendo de "brandos costumes".
O livro A Dança dos Demónios - Intolerância em Portugal (ed. Temas e Debates / Círculo de Leitores), coordenado por António Marujo e por José Eduardo Franco e que foi lançado, terça-feira, na Fundação Mário Soares, em Lisboa, aborda uma dezena de anti-ismos que forjam a nossa identidade - e revelam a intolerância para com o outro: anti-semitismo (Esther Mucznik), anti-islamismo (Faranaz Keshavjee), anticlericalismo (Luís Machado de Abreu), antiprotestantismo (João Francisco Marques), antijesuítismo (José Eduardo Franco), antimaçonismo (Rui Ramos), antifeminismo (Ana Vicente), antiliberalismo (Ernesto Castro Leal) e antiamericanismo (Viriato Soromenho-Marques).
Mas também podia incidir noutros correntes, pois os coordenadores da obra, após terem recenseado 165 "antis" nesta "cartografia da cultura portuguesa em negativo", do anticastelhanismo ao antipombalismo, gostariam de elaborar um dicionário com os vários anti-ismos. E, no entanto, além de poderem ser duas faces da mesma moeda (por exemplo, antimonarquismo versus anti-republicanismo), como adverte no seu prefácio Anselmo Borges, também há diversos "antis" que são positivos, como o antiesclavagismo ou o anti-racismo.
Mas, no caso deste estudo pioneiro, o subtítulo da revista Ordem Nova, lançada em 1926 e dirigida por Marcelo Caetano e Albano Dias de Magalhães, que é referido no capítulo de Ernesto Castro Leal sobre o antiliberalismo, podia sintetizar o objecto deste livro: "Revista antimoderna, antiliberal, antidemocrática, antiburguesa e antibolchevista. Contra-revolucionária; reaccionária; católica, apostólica e romana; monárquica; intolerante e intransigente; insolidária com escritores, jornalistas e quaisquer profissionais das letras, das artes e da imprensa".
Dança dos Demónios, além de mostrar como se foi construindo cada uma destas atitudes em que o outro é encarado com suspeita, permite perceber que há cruzamentos entre as várias manifestações de intolerância, sucedendo-se o mesmo tipo de argumentos ou rótulos e até mostra como as vítimas se tornam carrascos. No fundo, a definição que Goebbels cola ao judeu, e é citada por Esther Mucznik para ilustrar uma fase do anti-semitismo, poderia ser aplicada a qualquer dos visados nas campanhas em que se mostra que o outro não só é nefasto, como também está envolvido num complô: "eis o inimigo universal, o destruidor das civilizações, o parasita dos povos, o filho do caos, a encarnação do mal, o fermento da decomposição, o demónio que provoca a degenerescência da humanidade".
Ao longo desta mais de 600 páginas encontram-se versões que, na actualidade, não fazem sentido: os judeus têm" mau cheiro", os prelados "vivem como porcos e pregam como anjos", "Maomé era um mágico", os protestantes são "mil vezes piores que os ladrões de estrada, que os salteadores e assassinos", "o crânio da mulher é mais infantil (…) do que o crânio do homem", os liberais defendem um "insensato cosmopolitismo", os mações são "os motores invisíveis das calamidades gerais da Europa".
A raiz comum das palavras hóspede e hostil, como explica Anselmo Borges ("há uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado como diabolizado, mitificado positivamente ou negativamente"), permite perceber melhor muito do desconhecimento, mesmo de quem está mais próximo.
"As feministas", escreve Ana Vicente, "são e eram egoístas, más, parvas, inimigas do homem, lésbicas, putas, malucas, ridículas, perigosas, frustradas, feias, com falta de homem, uns seres detestáveis e perturbadores." E os protestantes, recorda João Francisco Marques, são apresentados como "uns vadios, uns perdidos, e preguiçosos entregues a todos os vícios, e os que os seguem uns ignorantes, ou mulheres de mau viver".
A mitificação do jesuíta, como sintetiza José Eduardo Franco, deixou-nos "diferentes versões criminosas e imorais: o jesuíta assassino, incendiário, fabricante de armas, comerciante, avaro, sedutor, sensual, sedicioso, regicida, conspirador da ruína dos indivíduos e das instituições mais nobres, devasso, hipócrita, perverso." Sem esquecer a visão sobre o comunista, que Miguel Real mostra através do Decálogo do Legionário (cartilha para os militantes da Legião Portuguesa, organização paramilitar fascista), onde se diz que ele absolutiza "a exaltação dos prazeres e vantagens de ordem material, o aniquilamento da pessoa humana em holocausto aos mitos colectivos, o repúdio absoluto de todas as razões sobrenaturais, a escravatura às directrizes imperiosas, totalitárias, duma dialéctica de partido".
Há também muita ignorância, de que é exemplo a relação com os muçulmanos, como vai esclarecendo Faranaz Keshavjee. "Nos vários relatos e crónicas da Europa medieval e até aos séculos XVI-XVII os Xiitas foram vistos como 'judeus disfarçados', por pretenderem assassinar a fé de Cristo, ou como 'assassinos', que consumiam coisas proibidas pela lei islâmica, incluindo haxixe." Além disso, os infiéis não são mouros, a não ser os "vindos da Mauritânia e [nessa acepção] equivalentes a 'escuros'". Nem sequer sarracenos. "Beda (m. 735), o mestre da Bíblia dos primórdios da Idade Média no Norte da Europa, tornou corrente a designação de Sarracenos atribuindo-a aos muçulmanos por achar que eram filhos de Sara e de Abraão, quando na verdade eram descendentes de Agar, a outra mulher de Abraão." E muito menos podem ser tratados por maometanos, "como se o Profeta a quem foi revelada a mensagem divina passasse a ser ele mesmo o fundador e o centro da religião dos muçulmanos".
Existe também um grande esquecimento, de que é exemplo - mesmo frisando, como faz Esther Mucznik, que, "apesar de todos os excessos, a Inquisição não era a Gestapo" - o velho ódio aos judeus. A marca na roupa foi-lhes imposta pelo Concílio de Latrão, em 1215; a "limpeza de sangue" pelas leis aprovadas em Toledo, em 1449; o primeiro gueto nasceu em 1349, em Frankufurt; o pogrom ("palavra russa que significa 'destruição'") pioneiro data de 1648 e foi perpetrado por cossacos russos e tártaros na Polónia; a acusação dos médicos envenenadores, associada a Estaline, surgiu após a morte dos reis francos Carlos, O Calvo (877) e Hugo Capeto (996). Em contrapartida, também os judeus se enganaram ao longo da História, nomeadamente quando acolheram a conquista da Espanha pelos árabes a partir de 711 "como uma libertação", viram em Napoleão "o Libertador que anunciava a vinda do Messias" ou foram "os mais entusiásticos adeptos da Revolução Soviética".
E, ao percorrer este desfilar de intolerâncias, também se descobrem situações, no mínimo, absurdas. Os protestantes condenados a dois anos de prisão pelo "crime de vender Bíblias", como se lê no capítulo de João Francisco Marques. Ou o paradoxo, como regista Miguel Real, do regime salazarista, "fundado numa ditadura de partido único", se afirmar "como última vanguarda na defesa do 'mundo livre'". E Ana Vicente lembra que quando Maria Teresa Horta publicou, em 1971, o livro de poesia Minha Senhora de Mim, "chegou a ser atacada por dois homens numa rua de Lisboa, que, enquanto lhe batiam com a sua cabeça no chão e lhe davam pontapés, gritavam: 'Levas estas pelas porcarias que escreves e que dão a volta à cabeça das mulheres'.
Um longa História em que os judeus eram apresentados como o "povo ímpio", os jesuítas representavam um "sistema de perversão", a maçonaria constituía o "flagelo da humanidade", o comunismo era o "mundo de Satã". Enquanto as mulheres - como escreveu, em 1900, um universitário alemão - , "como os animais, fazem sempre as mesmas coisas desde tempos imemoriais, e assim o ser humano estaria estancado num estado originário se só existissem mulheres. Cada progresso é obra de um homem."
Mas não são apenas os ditadores mais odiosos, os panfletários de todas as ortodoxias, a turba fanatizada que vilipendiam o estranho e, no limite, o querem destruir. Também os escritores têm, ao longo da História, multiplicado os protótipos sobre o outro. Esther Mucznik, evocando exemplos deste anti-semitismo, lembra "a figura do usurário Shylock em O Mercador de Veneza, de Shakespeare, ou o Fagin, de Oliver Twist [de Dickens], tantas figuras de Balzac ou de Gil Vicente".
Faranaz Keshavjee mostra como, em O Árabe e o Vizinho, António Botto permite que passe a imagem do muçulmano desonesto, enquanto Ana Vicente demonstra que Raul Proença estava convicto da "inferioridade intelectual da mulher". E se há toda uma literatura anticlerical, explanada por Luís Machado de Abreu, das cantigas de escárnio e maldizer até Tolentino, Abade de Jazente e Bocage, também os autores da Geração de 70 (Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós) , como sublinha José Eduardo Franco, "enfatizam a responsabilidade dos Jesuítas pelo atraso de Portugal".
Miguel Real lembra que Oliveira Martins explicava que "o comunismo é uma característica colectivista dos povos eslavos, bárbaros, servis, desprovidos do requinte da civilização, atreitos a crenças místicas". E Viriato Soromenho-Marques cita o antiamericanismo de Eça de Queirós, expresso neste extracto de Prosas Bárbaras: "Nós entrevemos a América como uma oficina sombria e resplandecente, perdida ao longe nos mares, cheia de vozes, de coloridos, de forças, de cintilações. Entrevemo-la assim: movimentos imensos de capital; adoração exclusiva e única do deus Dólar; superabundância de vida; exageração de meios; violenta predominância do individualismo; grande senso prático; atmosfera pesada de positivismos estéreis; uma febre quase dolorosa do movimento industrial; aproveitamento avaro de todas as forças; extremo desprezo pelos territórios [...] e por fim um profundo tédio pelo vazio que deixa nas almas a adoração do deus Dólar."
No fundo, as palavras mais utilizadas em qualquer destes anti-ismos são as que escolhe Ana Vicente: "proibir, dificultar, perseguir, caluniar, ignorar, prender, iludir, impedir, ridicularizar, desprezar foram e são métodos adoptados com notável energia e persistência".
Um dos aspectos curiosos do livro coordenado por António Marujo e por José Eduardo Franco é que se podem descobrir demasiadas coincidências. A mesma religião ou ideia, nação ou género pode ser o bode expiatório em diversos períodos da História (um dos exemplos é o antijesuitismo, primeiro pombalino e, depois, da I República); os inimigos podem ser os mais divergentes possíveis (eram simultaneamente anticomunistas os anarco-sindicalistas e os integralistas lusitanos); uma corrente pode combater a outra (Lutero publicou uma obra intitulada Contra os Judeus e as Suas Mentiras); vários ismos podem ser apresentados como estando conluiados entre si ("o panfleto Os Protocolos dos Sábios do Sião, datado do final do século XIX, que denunciava um complô judaico de domínio do mundo, através da aliança do sionismo, do bolchevismo e da alta finança"); o mesmo comportamento é usado contra inimigos distintos ("não por acaso histórico, os dois países em que mais fortemente dominou o absolutismo da Inquisição - Portugal e Espanha -, foram, igualmente, no século XX, os dois países onde mais forte se fez sentir a perseguição das forças comunistas").
A convicção das rejeições, no plano das construções mentais e das atitudes concretas também são muito diferentes, conforme o momento histórico e a importância que se atribui ao outro. Enquanto os muçulmanos infiéis, após a Reconquistas, eram vendidos como escravos, "com valor equiparado ao do gado ou a objectos de decoração e ornamento" , e os judeus convertidos à força seriam apelidados de marranos (isto é, porcos, em espanhol), já as demonstrações mais evidentes de antiamericanismo nunca passaram de uma "hostilidade funcional", como a define Viriato Soromenho-Marques, entre um velho império em desagregação e uma nova potência hegemónica.
E o leitor moderno, se não tem qualquer "paixão fanática" - e os autores não acreditam que as intolerâncias sejam um capítulo histórico já encerrado - nem é um "homem-manequim nas mãos do padre-arlequim" (glosando-se a forma como o republicano e anticlericalista Heliodoro Salgado se referia à crucificação de Cristo), percebe que tudo o que se aplica a uma das correntes pode ser usada para atacar outra heresia ou "execranda seita".
"A mesma tendência medieval que existia para fundar o saber e o conhecimento sobre o Islão em relatos orais", sustenta Faranaz Keshavjee, "persiste ainda hoje no senso comum - são sempre imagens exóticas, fantasiosas, extravagantes, bizarras e cheias de mistérios." E esta frase pode aplicar-se também aos mações ou aos americanos, aos protestantes ou aos judeus, sendo sempre fácil criar novos e improváveis Anticristos, inventar ameaçadoras conspirações, desencadear movimentos segregacionistas.
A receita intolerente é sempre a mesma: "a Companhia de Jesus, os seus membros e a sua crença", sintetiza José Eduardo Franco, " são qualificados pelo recurso aos adjectivos que expressam o lado mais negro e perigoso da realidade: o nefasto, o doentio, o contagioso, o conspirador, o cobiçoso, o intriguista, o hipócrita, o sedicioso, o simulado, o maquinador." Eis, pois, a eterna dança dos demónios!
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