Os pais da liberdade são os cidadãos livres que a conquistam e a defendem, mas têm quase sempre pela frente aqueles que, graças a usos mais ou menos perversos do poder, sustentam estar escrito no destino haver uns cidadãos mais livres do que outros.
A História para consumo geral é escrita pelos vencedores e suas estruturas de domínio. E quando a História é ainda contemporânea e se confunde com a comunicação social, guiada por mecanismos de propaganda, dos mais grosseiros aos delicadamente sofisticados, a vantagem das forças dominantes torna-se esmagadora, entrando pelos domínios da mitologia inquestionável, servida por axiomas asfixiantes.
A morte não apaga as realidades nem os factos vividos; não os transforma, mesmo quando oportunisticamente manipulados por quem considera legítimo domar consciências, em mandamentos de uma doutrina de obediência colectiva, condenando os que não a aceitam à marginalidade do pariato eterno.
Como se previa ainda em vida, a morte transformou Mário Soares num mito histórico à velocidade da tecnologia de ponta. Para que não entrem em piloto automático os efeitos dos axiomas que balizam a queda no delito de opinião, cabe-me escrever, com toda a honestidade, que não estão minimamente em questão o antifascismo de Mário Soares nem a sua coragem para enfrentar a besta salazarenta, ainda que outros tenham sofrido bem mais dolorosamente as consequências de tal destemor e tantos louvores não tenham recebido, pelo contrário, sejam ainda alvo de insultos e pasto de mentiras difamatórias, mais cruéis ainda quando delas já não se podem defender.
Ponto assente: Mário Soares foi um corajoso antifascista.
Agora «pai da democracia» e «pai da liberdade»?
Os mitos históricos têm progenitores: a propaganda que fabrica a História regimental e os poderes que a alimentam e dela se nutrem, num descarado processo de parasitismo. Quanto ao pai da democracia, outro não é que não o povo que a pratica, quando não há esbirros ou mecanismos cínicos que o impeçam – à bruta ou através de processos de controlo e manipulação; os pais da liberdade são os cidadãos livres que a conquistam e a defendem, mas têm quase sempre pela frente aqueles que, graças a usos mais ou menos perversos do poder, sustentam estar escrito no destino haver uns cidadãos mais livres do que outros.
Decifrando a cacofonia que vem atordoando o país nestes dias, ladainhando mil e um monólogos redondos em torno de duas ou três mensagens propagandísticas feitas e refeitas, concluiu-se que Mário Soares foi, sim, um dos pais fundadores do tipo de regime financeiro, económico e político que hoje se aplica em Portugal, subsidiário do ordenamento não-democrático da União Europeia; e tutor de uma liberdade sem dúvida condicionada, para a maioria dos cidadãos, pelos instrumentos e tentáculos da mesma União Europeia.
A manipulação subjacente a tanto ruído ambiente, gritando para milhões o que poderia resumir-se em meia dúzia de frases simples, é a confusão abusiva entre democracia plena, prometida pela Revolução de 25 de Abril, e o regime de democracia parcial em funcionamento; e entre liberdade humanista e o labirinto de liberdades, condicionamento de direitos civis, laborais e sociais e austeridades em que se transformou a sociedade portuguesa, marioneta dos interesses convergentes que se empanturram em Bruxelas.
«(...) Mário Soares foi, sim, um dos pais fundadores do tipo de regime financeiro, económico e político que hoje se aplica em Portugal, subsidiário do ordenamento não-democrático da União Europeia (...)»
Mário Soares, o antifascista, cedo abandonou a dinâmica transformadora da Revolução de Abril, passando, no âmbito da sua acção e cargos, a desenvolver contactos com o embaixador norte-americano Frank Carlucci – futuro director da CIA – que se ingeria descaradamente, conspirando, nos assuntos portugueses; e do golpe de 25 de Novembro de 1975 ainda hoje sabemos apenas quanto baste do que interessa aos que dele tiraram proveito e proveitos; o soarismo que lhe sucedeu imprimiu marcas indeléveis que pouco correspondem às deixadas para trás por Mário Soares, no período antifascista.
Paradoxalmente, por uma caprichosa ironia a que, pelos vistos, nem os mais cuidados mitos históricos escapam, a figura tutelar do soarismo desaparece fisicamente num período em que o governo de Portugal resulta de uma solução política que contraria um dos mais rígidos axiomas soaristas – estando, até há pouco, rigorosamente bloqueada.
Recordando o percurso de Portugal desde 25 de Abril de 1974, se as realidades vividas pelo país forem encaradas livres de manipulações, enviesamentos e mentiras da propaganda, comprovam que os conceitos de democracia e liberdade aplicados pelo soarismo foram condicionados por um redil político (determinado por poderes financeiros e económicos); uma tal cerca marginalizou os que se afirmaram ideologicamente diferentes, logo acusados, sem provas, de serem adeptos de soluções ditatoriais ou não-democráticas – afastados sumariamente de soluções governativas mesmo que proporcionassem maiorias parlamentares estáveis.
Não foram raros os casos como esses registados ao longo de décadas, com a agravante perversa de os excluídos serem também acusados de não pretenderem governar, apesar de multiplicarem apelos ao entendimento, acabando o sistema patrocinado pelo soarismo de se enquistar no «arco da governação» só recentemente quebrado.
Os conceitos de liberdade e democracia do soarismo tiveram aplicações práticas orientadas pela vontade de tolher o potencial de desenvolvimento do país libertado popularmente em 25 de Abril de 1974, encafuando Portugal num colete-de-forças de bastidores no qual, durante tempo excessivo, foi privado das suas principais energias económicas, culturais e criativas, delapidado do património estatal, minado por interesses alheios. Enquanto isso, a vontade manifestada livremente pelo povo, em sucessivas eleições, foi ficando refém de entidades e organismos não-eleitos, ao serviço de poderes transnacionais nefastos para o povo, para os cidadãos que se crêem livres.
A integração na CEE sem qualquer auscultação da opinião popular, o arranque da liberalização sem fim do mercado de trabalho – com o seu cortejo de inseguranças e perda de direitos dos trabalhadores –, a abertura das portas ao FMI, a destruição da Reforma Agrária, o enfraquecimento do movimento sindical concertado através de uma coligação institucional com o PPD/PSD, a passadeira estendida às privatizações, com os resultados que estão bem à vista, as responsabilidades perante a desastrosa integração no euro – novamente sem que fosse pedida opinião ao povo – são marcos indeléveis no itinerário soarista até um país que continua a sofrer de desigualdades profundas, enquanto é vítima de ataques de entidades não-democráticas que menosprezam a sua soberania.
«Os conceitos de liberdade e democracia do soarismo tiveram aplicações práticas orientadas pela vontade de tolher o potencial de desenvolvimento do país libertado popularmente em 25 de Abril de 1974 (...)»
O ser e o parecer muitas vezes não coincidem, e assim foi em Mário Soares quando, apesar do inflamado discurso anti-neoliberal dos últimos anos, não aproveitou, quando podia, as oportunidades para combater a ascensão e implantação interna do neoliberalismo, uma vez que dispôs dos instrumentos governativos e presidenciais para o fazer.
O caminho do país sujeito à influência soarista foi percorrido sob uma governação restringida sectariamente a um bloco bipartidário na prática, excluindo da democracia as forças que propunham alternativas de facto e não uma alternância que se foi institucionalizando, favorecendo interesses minoritários, a vertente privada e encorajando a corrupção atrelada a um processo nocivo de privatização do próprio Estado.
A imposição do chamado bloco central, apesar – repete-se – das numerosas propostas para materializar uma vontade popular maioritária que proporcionaria frequentes entendimentos governativos do PS com forças à sua esquerda, é a marca mais negativa para o país resultante das opções de Mário Soares, e da qual decorrem praticamente todas as outras. Com a agravante de ter permitido que esse procedimento fosse camuflado com a enorme mentira, resistente até há pouco, segundo a qual partidos como o PCP não tinham interesse em associar-se à acção governativa, remetendo-se a um papel «contestatário», logo decorativo.
Neste aspecto, ao corajoso antifascista que foi Mário Soares faltou o destemor para fazer vingar os interesses reais dos portugueses como cidadãos livres usufruindo de uma democracia plena. O soarismo rendeu-se às normas antidemocráticas impostas surdamente através da NATO, impedindo qualquer Partido Comunista de um país ocidental de chegar a plataformas governativas.
É certo que o humanista democrata-cristão italiano Aldo Moro pagou com a vida a ousadia de estabelecer acordos de incidência parlamentar com o PCI, comparáveis aos que existem agora em Portugal entre o PS e o PCP. A coragem que atribuem a Mário Soares na defesa da democracia teria sido então de uma importância determinante para os portugueses se a ela tivesse recorrido, até às últimas consequências, na interpretação da vontade popular.
Por ironia do destino, foi ainda em vida de Mário Soares que se deu a primeira ruptura com o edifício do soarismo limitador das potencialidades democráticas do sistema multipartidário. Quando se constrói um mito histórico, a obra só poderá dar-se por terminada quando reflectir a realidade global do percurso percorrido em vida, e não apenas os troços parciais de que alguns pretendem continuar a extrair vantagens, mesmo que seja à custa dos interesses de muitos e dos direitos de todos à democracia e liberdade plenas.
Nesse caso restrito, pode ser um mito histórico sectariamente útil; mas é incompleto, impreciso e, mais grave ainda – o que será insultuoso para o próprio – nocivo para o país, insuficientemente democrático, manipulador de consciências, enganador das gerações mais jovens e das que virão.
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