(Henrique Monteiro, in Expresso Diário, 28/09/2016)
A conclusão desta história poderia ser: a Justiça tarda, mas exerce-se. Infelizmente terá de ser outra: a injustiça demora muito tempo a ser corrigida. Falo de Liliana Melo, uma cabo-verdiana há 20 anos em Portugal, a quem retiraram, sem razão, os filhos, apenas pelo crime de ela ser pobre. Por vezes, as mesmas pessoas que se indignam com a pobreza e dizem não a tolerar, aplaudem quando se criminaliza a pobreza. Por vezes, as mesmas pessoas que se orgulham da sua tolerância e não discriminação aplaudem quando o Estado criminaliza certas diferenças.
Escrevo sobre este tema pela quarta vez e espero que ele fique definitivamente encerrado a favor da família de Liliana Melo. Recordo que em 2012 (há quatro anos) o prédio em Mem Martins onde Liliana vivia foi cercado pela polícia a pedido da Comissão de Proteção de Menores e, entre diversas acusações inqualificáveis (uma delas era a de não recorrer ao Rendimento Social de Inserção) e recomendações bárbaras que a ‘perigosa’ mãe se recusava a seguir (laquear as trompas) por ter uma inacreditável religião (muçulmana), lhe levaram cinco dos seus filhos. Sem mais…
Na primeira sentença do Tribunal, sobre a qual escrevi neste espaço em janeiro de 2013, referia: “Não há, na sentença, a prova de maus tratos, de um delito que seja. Pelo contrário, o acórdão reconhece que há afetividade entre os irmãos e entre mãe e filhos. Apenas se prova o que é evidente – que Liliana é pobre. Num assomo da mais pura desumanidade, a sentença refere que falta higiene, que – meu Deus! – a luz chegou a estar cortada por falta de pagamento! E que há um quarto para cinco crianças! E que Liliana não laqueou as trompas e ainda teve mais filhos já depois de a família começar a ser acompanhada pela assistência social.”
Liliana, que na altura estava desempregada, não teve direito a defesa. Mas, perante esta desumanidade, duas advogadas (Maria Clotilde Almeida e Paula Penha Gonçalves) decidiram defendê-la de graça (pro bono). O caso era obviamente mau de mais para ser verdade. Mas foi a vergonhosa sentença confirmada na Relação com uma frase que, quando escrevi sobre o caso em abril de 2014, não sabia (e continuo sem saber) como classificar:
“A falta de empenho dos progenitores em proporcionar desafogo material aos menores é por si próprio uma grande violência que legitima a decisão tomada pela 1ª instância.” Não sei se percebem que este palavreado quer dizer que os pobres têm falta de empenho em proporcionar desafogo material aos filhos. E que, apesar de os filhos terem amor familiar pelos progenitores e entre si, isso não interessa nada, face ao “desafogo material”.
Escrevi essa crónica a propósito da indignação com que em Portugal se assistiu à Segurança Social inglesa retirar cinco filhos a um casal português. E afirmava: “Pela Europa fora, como se vê, o Estado arroga-se o direito de fazer o que quiser com uma família. A família, que fez o Estado, está hoje em dia às mãos do monstro que criou. Sobretudo as mais pobres.”
Mas refira-se que a Relação só se pronunciou porque o Tribunal Constitucional deu razão ao caso de Liliana. Numa primeira decisão disseram-lhe que tinha recorrido fora de prazo. Como escrevi na altura, “apesar de se ter lido a sentença numa sexta-feira, sem que a visada tivesse advogado, sem que percebesse inteiramente o que estava a passar (como quase ninguém percebe aqueles ofícios arrebicados dos tribunais), [O Tribunal] negou, mais tarde, a possibilidade de recorrer da sentença, argumentando – veja-se! – tê-lo feito fora do prazo”.
Portugal foi depois condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, essencialmente por ter separado os irmãos (era o que estava em causa).
Finalmente, revisto o processo, agora que Liliana tem de novo um emprego, a família acaba de unir-se outra vez, por decisão judicial.
Liliana e as advogadas ainda não sabem se vão pedir uma indemnização ao Estado português como compensação da odisseia que passaram. Há coisas que, de facto, não têm reparação. Mas, infelizmente, não podemos dizer que tudo acabou bem. A arrogância de certos organismos do Estado perante, sobretudo, os que não têm condições materiais ou de conhecimento para se defenderem é um problema que subsiste e não se resolveu.
Ao menos que o caso de Liliana sirva para os denunciar e levá-los a agir com mais humanidade e critério.
(Comentário da Estátua de Sal).
É raro eu ter um mínimo de consonância com o que o Henrique Monteiro escreve e publica, pelo que, quando tal ocorre, é merecido dar-lhe um especial destaque. Sobretudo neste caso em que a arrogância de classe dos agentes da Justiça contra os mais pobres se manifestou com uma violência inaudita, provavelmente achando que a pobreza da condenada os ilibaria de qualquer contraditório judicial e/ou da critica da opinião pública.
Enganaram-se, e a sua criminosa decisão não ficou impune. Parabéns às duas advogadas que, apenas remuneradas pelos critérios de sanidade da sua consciência e pela proclamação e defesa dos mais elementares princípios de Justiça, se empenharam no caso e o levaram a bom porto. Elas merecem a nossa admiração e um grande louvor, até porque, a magistratura é “vingativa”, corporativa até à medula, e deverá “infernizá-las” em futuros casos que defendam. Bem hajam, as duas causídicas.
estatuadesal.com
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