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Tradução do russo e edição por CN, 8.07.2015
(original em: http://www.cccp-kpss.narod.ru/arhiv/soprobes/letters/suslovu.htm)
Carta a Suslov1
Tatiana Khabarova
1976
Ao cam. M.A. Suslov, membro do Bureau Político do CC do PCUS secretário do CC do PCUS
Aos membros do CC e do Politburo do PCUS
Em Fevereiro deste ano entreguei uma carta dirigida ao secretário-geral do CC do PCUS, L.I. Bréjnev, aos membros do Bureau Político do CC do PCUS, aos membros do CC do PCUS e aos delegados do XXV Congresso do partido. O destino dado a essa carta não é até ao momento claro, mas sublinho vivamente que pressuponho que co n h e ce i s o seu conteúdo em pormenor, assim como os restantes membros do Bureau Político.
Ao nos dirigirmos aos órgãos do partido, nós, cidadãos soviéticos de base, pressu- pomos, naturalmente, que nos dirigimos aos órgãos de um partido leninista. Não po- demos (e, aliás, não queremos) «partilhar» qualquer culpa ou responsabilidade pelo facto de hoje as normas leninistas não serem observadas pelos referidos ór- gãos, nem pelo facto de nos congressos do partido se editarem boletins para se impri- mir ditirambos e não para se difundir honestamente críticas sérias, de princípio e bem argumentadas.
Mas numa óptica leninista, a direcção política e ideológica do partido na União Soviética não pode, simplesmente não tem o direito de «desconhecer» os materiais que lhe são enviados, nos quais se demonstra irrefutavelmente, com clareza, o quão profundo e alarmante é o fosso entre a essência da doutrina marxista e, em geral, a doutrina filosófica e ideológica professada pelo Estado, e que esta última, na prática, n ão p o d erá mais ser considerada como marxismo. De «marxista», no seu fundo, já nada resta, além de uma fraseologia superficial «comunista», cujo «carga» real é abertamente demagógica.
Isto diz-vos respeito em primeiro lugar (depois de L.I. Bréjnev e A.N. Kossíguine), como dirigente a quem foi confiado o estado geral e o nível teórico-ideológico no país.
Para precisar a minha posição, o melhor e mais correcto é começar pela constata- ção de factos indiscutíveis; esses factos na nossa actual situação são os que se seguem.
1 Carta enviada em 26 de Abril de 1976.
Algures «de baixo» (mas com assinatura e o endereço do remetente) foi enviada a Vós, ao Bureau Político e ao Comité Central, uma r e f u t aç ão detalhada, demons- trativa e escrupulosamente fundamentada de uma série de pontos da Vossa concep- ção geral político-económica e filosófico-social, sendo que esses pontos são, infeliz- mente, decisivos nessa concepção. As correspondentes orientações são totalmente caracterizadas (sobretudo no plano teórico-filosófico) como revisionistas de di- reita, bukharinistas, incompatíveis com os interesses do normal desenvolvimento comunista do nosso regime social. Nas condições de uma discussão teórico-ideoló- gica honesta, segundo os princípios do partido, não há ninguém entre Vós (nem entre a Vossa «elite ideológica») que possa apresentar argumentos c o n t r a ou le- vantar quaisquer objecções de peso às razões apontadas.
Qual é, pois, cam. Secretário do CC, a Vossa opinião sobre «a lógica objectiva dos acontecimentos políticos», sublinhada tão insistentemente por V.I. Lénine? Será que julgais que não tem nenhuma relação com esta lógica o b j e ct i v a o facto (registado oficialmente, quer o queirais quer não) de que foi apresentada uma o u t r a concep- ção, contrária à Vossa abordagem das questões sob a Vossa competência, pratica- mente invulnerável a quaisquer contra-argumentos convincentes da Vossa parte (se não considerarmos como «argumento» a Vossa «preponderância» temporária por via de repressões administrativas)? Com efeito, que direito tendes de ocultar do partido, da comunidade científica, do povo, que existe realmente um trabalho de- senvolvido, registado na Vossa caixa de correio, no qual se demonstra à exaustão o carácter antimarxista e oportunista de todo um conjunto de teses e «teorias», cultivadas por Vós presentemente como «desenvolvimento criativo do marxismo»?
A este respeito penso que todos deveríeis aprender com I.V. Stáline, por vós difa- mado tão imerecidamente e sem fundamento.
Nos últimos anos da sua vida, I.V. Stáline recebeu muitas cartas sobre diversos problemas teóricos e científico-práticos, em que eram manifestadas discordâncias, por vezes bastante substanciais, em relação aos seus próprios pontos de vista. I.V. Stáline (ao contrário de Vós!) compreendia perfeitamente a gravidade e «profundi- dade» do sintoma que representava o surgimento no nosso Estado «ideológico», de forma aberta e inteiramente legítima, de uma polémica com os «principais teóricos» do país, e como seria torpe tentar silenciá-la. Também compreendia (igualmente ao contrário de Vós) que uma pessoa capaz de polemizar em pé de igualdade com o pri- meiro secretário do partido está interessada precisamente na opinião do pri- meiro secretário, e não na de colaboradores menores do aparelho, sem competên- cia nem poder para tomar quaisquer decisões de fundo sobre tais questões. I.V. Stáline (mais uma vez totalmente ao contrário de Vós) não considerava os seus opo- sitores (incluindo o manifesto bukharinista convicto L.D. Iarochenko2) «indignos» de uma resposta pessoal, e respondia ele próprio sobre a e ssê n c i a da questão, com argumentos científicos, e não com injúrias deliberadas «encomendadas» a funcioná- rios claramente incompetentes, em todo o caso, jamais com notificações entregues por agentes da polícia.
2 Iarochenko, Luka Danílovicth (1896-1995), membro do partido desde a guerra civil, na qual combateu, era chefe-adjunto de departamento na Comissão Estatal de Planificação (Gosplan) quando foi chamado a participar na discussão sobre economia de 1951. (N. Ed.)
I.V. Stáline termina as suas «Observações sobre questões económicas relaciona- das com a discussão de Novembro de 1951» com a proposta de «nomear uma co- missão que incluísse não apenas os autores [do manual], e não apenas quem parti- lha a opinião da maioria dos participantes na discussão, mas também os adversá- rios da maioria, os críticos veementes do projecto de manual.»3
Penso que é tempo de pôr fim ao famigerado mito do «stalinismo», que já causou suficiente dano quer ao desenvolvimento do nosso regime soviético, quer ao processo internacional socialista no seu conjunto.
É inquestionável que a acção de I.V. Stáline teve contradições, momentos de falta de lucidez e francos insucessos, como de resto aconteceu com Lénine e Marx, uma vez que os clássicos da percepção proletária científica do mundo não eram profetas, nem oráculos, mas pessoas reais, cuja obra se sujeitou às leis da dialéctica da vida da sociedade humana, e não a uma inspiração divina. No entanto, as contradições inter- nas da biografia criativa de uma grande personalidade histórica não são nunca senão a soma, a expressão concentrada da tensão e contradições da sua época. Por isso, os acontecimentos de há 20 anos demonstraram à saciedade que a procura preconce- bida dos erros de Stáline conduziu de imediato e necessariamente à difamação e ca- ricatura de todo o período da construção da sociedade socialista na URSS, e verificou- se não passar de um p ret ex t o para o lançamento de campanhas caluniadoras, que visando o «derrubamento» de princípios e métodos do pensamento e acção social, desenvolvidos pela experiência da nossa revolução, com significado histórico univer- sal. Também pudemos constatar que tal difamação nunca se limitou em parte alguma ao «desmascaramento» de I.V. Stáline (em simultâneo, naturalmente, com o «des- tronamento» de todo o socialismo contemporâneo, em particular o soviético) – a
«vaga» devastadora avançou, surgiram todo o tipo de boatos «cientificamente fun-
damentados» relativamente à «justificação» e «necessidade» da revolução de Outu- bro, e depois, de toda a filosofia marxista revolucionária em geral.
Em suma, não houve nenhum «stalinismo»4 (conheceis, sem qualquer dúvida, esta circunstância tão bem como eu). O país seguia a via leninista, mesmo que com alguns custos inevitáveis, historicamente objectivos; não precisava de nenhuma «vi- ragem do stalinismo para o marxismo-leninismo», apesar de, naturalmente, ser ne- cessário continuar a desenvolver a doutrina comunista (tal como hoje é necessário), enriquecê-la, concretizá-la, atingir novos patamares conceptuais.
A partir de meados dos anos 50, o desenvolvimento dos acontecimentos seguiu uma tendência claramente não marxista (que hoje se mantém), que pode (e em rigor deve) ser caracterizada não como um «regresso ao leninismo» e uma superação de alguns «desvios», mas como um afastamento do leninismo no sentido do oportunismo de direita. (Nas suas vergonhosas «entrevistas» aos meios de in- formação de massas ocidentais, o primeiro «líder» desse afastamento, N.S. Khru- chov, proclamou abertamente Bukhárine, a par de outros fraccionistas, como «a nata do partido», mostrando-se aparentemente consternado por não ter conseguido levar
3 I. V. Stáline, Problemas Económicos do Socialismo na URSS, (1952), http://www.hist- socialismo.com/docs/ProblemasEconomicosSocialismo.pdf, p. 28. (N. Ed.)
4 Na nossa literatura, partidária e outra, esta expressão não é utilizada, mas a sua difusão em todo o mundo (e o mais lamentável, no movimento comunista internacional), tanto da
«terminologia» em si como do complexo de ideias e sentimentos objectivamente anti-so- cialistas, é da inteira responsabilidade do PCUS.
a cabo os seus intentos verdadeiramente contra-revolucionários e sabotadores de
«reabilitação» desse tipo de «natas».)
Os resultados desse «rumo» mantido até ao presente são os seguintes:
– um quadro de profunda renúncia ideológica, em que se chegou ao ponto intole- rável de, sob a designação de «doutrina de Marx-Lénine», se professar na realidade um bukharinismo praticamente puro, com uma aparência um pouco renovada;
– a perda necessariamente daqui decorrente de toda a orientação conceptual verdadeiramente científica, relativamente aos problemas da construção do co- munismo e da implantação planetária da formação socioeconómica comunista;
– a divisão, igualmente necessariamente daqui decorrente, do socialismo mun- dial em dois desconcertantes campos comunistas inimigos (!), a perda de orienta- ções marxistas fiáveis e eficazes nas condições actuais por parte das forças de es- querda do Ocidente, a difusão nos partidos comunistas ocidentais de pontos de vista erróneos, ingenuamente «democráticos» na aparência e pequeno-burgueses utópicos na realidade;
– a queda dos ritmos do nosso crescimento económico, o surgimento na econo- mia de amplos «focos» de estagnação, no domínio do progresso técnico, da política racional e exigente de investimentos públicos, da elevação da eficiência da produ- ção e da melhoria da qualidade da produção;
– muito pior é o entravamento do nosso desenvolvimento democrático, a hiper- trofia sem precedentes na história do Estado soviético da «perversão elitista», a ponto de se assistir a uma monopolização paralisante das mais importantes funções administrativas por uma casta degenerada interna, não removível através das vias legalmente estabelecidas, e que não presta contas nem é controlável pelas massas laboriosas.5
Pergunta-se, terá mudado alguma coisa (ou poderia ter mudado) no c o nju nt o d o s f a ct o s delineados a circunstância de terem sido incluídas formulações opor- tunistas de direita, provocatoriamente bukharinistas, nos documentos do Congresso do partido, num ambiente de ostensivo desprezo pela sensata e insistente crítica de baixo, terem sido incluídas formulações oportunistas de direita, provocatoriamente bukharinistas? (Por exemplo, as seguintes: «Só na base do desenvolvimento acele- rado da ciência e da técnica podem ser resolvidas as tarefas finais da revolução social e construída a sociedade comunista». «O desenvolvimento da ciência e da técnica permite renovar as condições socioeconómicas».)6
No que respeita a L.I. Bréjnev, seria de uma extraordinária miopia esperar que semelhante bukharinismo (só porque foi introduzido nos documentos orientadores do partido) se transforme em «leninismo» e possa vincular marxistas informados e politicamente honestos no Estado soviético. Tal só nos poderá impelir a declarar aberta, sem compromissos e incessantemente, o carácter erróneo dessas «concep- ções» e a envidar os esforços mais determinados no sentido da revisão e saneamento radical do estado geral na esfera teórico-ideológica.
5 A revocabilidade pelas massas, a prestação de contas às massas e a «governação com base na lei» são aspectos destacados por V.I. Lénine como os traços constituintes mais im- portantes do autêntico poder popular, do «pleno poder do povo no Estado». Cf. p. ex. Rela- tório sobre o Congresso Unificador do POSDR (carta aos operários de Petersburgo), (1906), V.I. Lénine, Obras Completas (em russo), t. 13, pp. 68 e 78.
6 Pravda, de 25 de Fevereiro de 1976, pp. 5 e 8.
O marxismo-leninismo ensina-nos (como já tive de repetir dezenas de vezes) que a estrutura essencial, determinante, da sociedade é precisamente a estrutura de base socioeconómica (a estrutura das relações de produção), que exprime a qualidade de classe de um dado regime social, o grau de reconhecimento nele atin- gido pelo trabalho produtivo humano e pelo trabalhador. Entre outros componentes de estrutura histórico-natural universal figuram a ciência, a história natural (junta- mente com a técnica, a sua materialização), as quais nunca se estiveram (nem podem estar) «acima» dos princípios da mundivisão da classe «superintendente» (segundo a expressão de Lénine) de uma dada ordem económica. O materialista, afirma Lé- nine, «não se limita a indicar a necessidade do processo, mas mostra qual é preci- samente a formação socioeconómica que dá um conteúdo a esse processo, e qual é precisamente a classe que determina essa necessidade».7
A mundivisão da classe hegemónica (a sua ideologia) constitui o conhecimento generalizado, integral da época, é o cimento do esqueleto de conceitos de todos os ramos do pensamento cognitivo, entre os quais têm o devido lugar as ciências natu- rais e técnicas. A «coisificação», «materialização» da ideologia é feita pelas diversas instituições (e não por meios técnicos).
Os critérios de veracidade do sistema de instituições (tal como do pensamento po- lítico-ideológico que nele se «materializa») têm correspondência não com as leis da natureza externa, mas com as leis da existência social, com os interesses e neces- sidades da classe liderante, a mais enérgica e historicamente mais vigorosa. «Assim como o conhecimento do homem reflecte a natureza que existe independentemente dele, isto é, a matéria em desenvolvimento, também o conhecimento social do ho- mem (ou seja: as diversas opiniões e doutrinas filosóficas, religiosas, políticas, etc.) reflecte o regime económico da sociedade. As instituições políticas são a superstru- tura que se ergue sobre a base económica.»8
No entanto, é perfeitamente claro que os seres racionais são capazes de alterar uma dada realidade objectiva, uma determinada existência, se contarem com a ajuda de formas cognitivas (e «instrumentos» materiais) que reflictam directamente essa realidade. Por conseguinte, a realidade socioeconómica c la ssi st a só pode ser alte- rada através do conhecimento social, através da ideologia, da concepção do mundo da classe mais forte, mais revolucionária e activa, a classe dos produtores, e
7 O Conteúdo Económico do Populismo e a Sua Crítica no Livro do Sr. Struve (O Reflexo do Marxismo na Literatura Burguesa). (A propósito do livro de P. Struve «Notas Críticas Sobre o Desenvolvimento Económico da Rússia, São Petersburgo, 1894», V.I. Lénine, Obras Completas (em russo), t. 1, p. 418.
8 «As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo», (Março de 1913), V.I. Lé- nine, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante! – Ed. Progresso, Lisboa – Moscovo, 1981, t. 1, p. 36. (N. Ed.)
«Os conceitos e construções teóricas da filosofia», como justamente escreveu P.V. Kópkine a propósito da validade das construções filosófico-ideológicas, «aferem-se en- quanto mundivisão, na qual assenta a actividade teórica e prática das classes e dos parti- dos (…) Se as acções, que correspondem aos princípios e categorias, conduzem à concreti- zação prática dos objectivos da humanidade, à criação de mundo racional e harmonioso de coisas e relações, ao alcance de novos conhecimentos científicos, à criação de obras artísti- cas, então isso atesta e demonstra a sua validade objectiva». P.V. Kópkine, «Sobre a natu- reza e particularidades do conhecimento filosófico», Voprossi Filosófi, 1969, n.º 4, p. 131.
através de «instituições políticas», nas quais «se materializa» o seu pensamento re- volucionário e a sua energia revolucionária.
«As novas ideias e teorias sociais surgem porque são necessárias à sociedade, porque sem a sua acção organizadora, mobilizadora e transformadora é impos- sível a resolução das tarefas prementes do desenvolvimento da vida material da sociedade. Surgindo na base das novas tarefas colocadas pelo desenvolvimento da vida material da sociedade, as novas ideias e teorias sociais abrem caminho, tor- nam-se património das massas populares, mobilizam-nas e organizam-nas contra as forças obsoletas da sociedade, e facilitam deste modo o derrube das forças cadu- cas que travam o desenvolvimento da vida material da sociedade.
É assim que as ideias e teorias sociais e as instituições políticas surgidas na base das tarefas candentes do desenvolvimento da vida material da sociedade, do desen- volvimento do ser social, agem elas próprias a seguir sobre o ser social, sobre a vida material da sociedade, criando as condições necessárias para levar a cabo a reso- lução das tarefas prementes da vida material da sociedade e tornar possível o seu subsequente desenvolvimento.»9
Uma multiplicidade de claríssimos exemplos históricos mostra que, em qualquer movimento de libertação, todas as tentativas de conferir um sentido orientador à transformação da existência material da humanidade, através de quaisquer outras
«ciências» que não seja a ideologia das massas revolucionárias, sempre se re- velaram constituir subterfúgios oportunistas, que procuram apagar, «corroer», di- minuir o papel da classe hegemónica numa dada revolução, privar o processo revo- lucionário precisamente do seu factor científico, virtualmente activo, virtualmente triunfador, desviá-lo da via que lhe é própria.
Semelhantes veleidades também não faltam na história da revolução c om u - n is ta mundial (que está longe de ter terminado!). Desde há longo tempo que o mé- todo favorito do capitulacionismo oportunista de direita é precisamente a contrapo- sição de diferentes ciências «humanas imaculadas» (alegadamente) e da técnica
«inocente» à consciência de classe do proletariado, materializada em estrutu- ras organizadas, as quais constituem o único e exclusivo meio para se alcançar qual- quer transformação qualitativa sensível na existência socioeconómica, nas relações de base da produção social.
«Na base do conflito entre as novas forças produtivas e as velhas relações de produção, na base das novas necessidades económicas da sociedade surgem novas ideias sociais. As novas ideias organizam e mobilizam as massas, as massas jun- tam-se num novo exército político, formam um novo poder revolucionário e utili- zam-no para abolir pela força as velhas regras no domínio das relações de produ- ção e estabelecer novas regras.»10
Como é evidente, mesmo depois da conquista do domínio político pela classe ope- rária, mantém-se inabalável o esquema marxista da «acção do intelecto colectivo no ser social», só que agora os avanços periódicos profundos na construção económica do organismo social (avanços que o marxismo descreve como «concertação» entre
9 Sobre o Materialismo e o Materialismo Histórico, I.V. Stáline, História do Partido Co- munista da URSS (bolchevique), 1938, http://www.hist-socialismo.com/docs/04HistPCUb. pdf, p. 15. (N. Ed.)
10 Idem, ibidem, p. 23. (N. Ed.)
as relações de produção e as forças produtivas) deixam de ser espontâneos e confli- tuosos e tornam-se ordenados, uma vez que o poder proletário não tem razões para contrariar a realização dos interesses e necessidades essenciais da classe revolucio- nária, das amplas massas, e as massas não precisam de pegar em armas a cada passo em que o povo cumpre soberanamente a missão histórica universal da sua vida ma- terial e social, princípio renovado e dinâmico.
Sob o domínio da classe operária, a própria dinâmica da existência histórico-natu- ral, o seu desenvolvimento, torna-se inteligível, controlável racionalmente, ordenada e institucionalizada – e isto em nada afecta (mas apenas reforça) as tese fundamental da teoria marxista-leninista de que o ser social só pode ser «reflectido» pela consciência social, político-ideológica, «socializada» pelas corresponden- tes instituições político-revolucionárias (e não por qualquer «ciência ou técnica»).11
Deve-se assinalar a absoluta falácia das ideias desorientadoras hoje tão popula- res no nosso país de que, alegadamente, a «ciência» (as ciências naturais empírico-
-matemáticas) tem um qualquer ascendente intelectual sobre a ideologia, constitu- indo uma esfera de actividade cognitiva mais elevada, «mais geral» e «mais objec- tiva» do que a ideologia. O ambiente em que estas falácias se nutrem foi criado pela difusão de abordagens pseudomarxistas e «materialistas» vulgares, que descrevem a sociedade apenas como «parte» mecânica «da natureza», e o conhecimento da sociedade como «uma variedade do conhecimento em geral», que deve subordi- nar-se a certos «critérios gerais de cientificidade, em primeiro lugar ao critério da objectividade».12
Todavia, o comunismo científico marxista compreende a sociedade não como uma
«parte isolada» do ser natural, mas como o nível superior, dialéctico «univer- sal» do desenvolvimento histórico-natural, no qual se «revela», sistematiza e ordena a riqueza que o reveste da multiplicidade das formas anteriores deste pro- cesso mundial.
«(…) A sociedade é a unidade essencial completada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o hu- manismo da natureza».13
Marx fala várias vezes da «essência humana da natureza», da «realidade social
da natureza», da epopeia histórico-social da humanidade como «transformação da
11 «A prática histórica (…) confirmou com clareza a tese fundamental do comunismo científico sobre a importância primordial para a transformação socialista da sociedade das instituições políticas do poder revolucionário e das formas estatais de emancipação do trabalho.» (…) «A identificação e resolução das contradições realiza-se e só pode rea- lizar-se com a ajuda das instituições da superstrutura, mediante a sua acção de retorno sobre as relações de base, antes de mais sob a direcção do partido e do Estado socialista e com a participação activa das massas laboriosas». (R. Ronai e Ch. Karpati, «A base e a superstrutura na etapa da construção total do socialismo». Problemi Mira e Sotsializma,
1974, n.º 1, pp. 42-43.)
12 Cf. V.G. Afanássiev, A Administração Científica da Sociedade, IPL, Moscovo, 1968, p.
338; V.J. Kelle, «A importância e as funções do conhecimento social no socialismo»,
Voprossi Filossofi, 1972, n.º 5, p. 33; M.C. Kozlova, Voprossi Filossofi, 1974, n.º 9, p. 153.
13 K. Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos, 1844, Obras Completas (em russo) t. 42, p. 118.
natureza pelo homem».14 Marx sublinhou também de forma resoluta a inadmissibili- dade da utilização das leis inerentes a estádios iniciais, inferiores, de desenvolvimento como critérios, padrões, «standards», no estudo de estádios mais substanciais.15
E tal como a realidade social não é «parte», mas a expressão concentrada, o pico da potência e riqueza da matéria em desenvolvimento, a incarnação do seu un i - v e r sa li s m o , exactamente do mesmo modo a mundivisão dominante da classe revolucionária, o pensamento político-social, no quadro de uma de- terminada formação, constitui não uma qualquer «variedade do conhecimento em geral», mas é ela própria o supremo «conhecimento em geral», a sua base cate- gorial, o «repositório» e a fonte de quaisquer outras direcções da actividade intelec- tual humana. No que respeita ao «carácter objectivo» das verdades obtidas, a inter- pretação materialista-marxista nunca reconheceu outra objectividade que não seja a escolha p a r tidá r ia historicamente justa.
A ideologia da classe de vanguarda é como o «fermento criativo» do correspon- dente período histórico-social, que obrigatoriamente vai «a par e passo» com a sua época, e até «um pouco à frente» da história – por definição não pode de forma al- guma atrasar-se. Se não se cristalizarem, se não começarem a romper novas ideias resplandecentes político-sociais, sociojurídicas – nada verdadeiramente se moverá do lugar no campo económico-produtivo e nas estruturas sociais de base das profun- dezas da vida do povo.
Nenhum outro ramo do conhecimento tem a «rapidez» da ideologia. Observamos constantemente na história, nos seus momentos de ruptura, que a assimilação polí- tico-ideológica da realidade pode atingir um nível de maturidade e força extraordi- nariamente elevado, enquanto as ciências «subordinadas», concretas (em particular as aplicadas) se reestruturam e florescem apenas passado um longo tempo, quando os novos esquemas conceptuais triunfam e as transformações sociais decisivas se en- contram relativamente «sedimentadas».
Foi por isso que V.I. Lénine, no alvorecer do poder soviético, teve necessidade de definir como tarefa imediata a combinação da «revolução proletária vitoriosa com a cultura b u rg u es a , com a ciência e técnica b u rg u es a s »,16 a combinação da
«última palavra da ciência e da técnica c a p i t a li s ta com a união maciça dos
trabalhadores conscientes, que criam a grande produção socialista».17 Valerá a pena demonstrar extensamente que seria a mais pérfida vulgarização do leninismo concluir daqui que, em geral, os objectivos finais da revolução socialista (que se
14 Idem, ibidem, pp. 123-124.
15 «(…) É absolutamente indevido utilizar uma esfera inferior como medida para uma esfera mais elevada; neste caso, leis racionais dentro de determinados limites são destorcidas e transformadas numa caricatura, dado que lhes é conferida arbitrariamente um significado de leis que não são de um determinado domínio, mas de outro mais ele- vado. Isto é como se eu quisesse obrigar um gigante a alojar-se na casa de um pigmeu.» Karl Marx, «Debates na Sexta Assembleia da Província da Renânia, primeiro artigo – Debates sobre a liberdade de imprensa e a publicação dos protocolos da Assembleia dos Estados», publicado no jornal Rheinische Zeitung, Maio de 1842, K. Marx e F. Engels, Obras (em russo), t. 1. p. 74. (N. Ed.)
16 Êxitos e Dificuldades do Poder Soviético (Abril de 1917), V.I. Lénine, Obras Escolhidas
em seis tomos, Ed. Avante! – Ed. Progresso, Lisboa – Moscovo, 1986, t. 4, p. 201. (N. Ed.)
17 Uma Grande Iniciativa (Junho de 1919), V.I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante! – Ed. Progresso, Lisboa – Moscovo, 1979, t. 3, p. 152. (N. Ed.)
resumem à construção do civilização comunista) se concretizam apenas através do
«desenvolvimento acelerado» dessa «ciência e técnica» burguesas.
No entanto, os oportunistas de todos os matizes, no período antes da guerra, fa- rejaram perfeitamente, com o seu habitual olfacto de classe, que uma «imperceptí- vel» deslocação da tónica (e até aparentemente bastante respeitável) da «revolução vitoriosa proletária» para «a técnica capitalista» e para a «cultura burguesa» seria a melhor maneira de arredar a classe operária da ribalta política e garantir o gradual predomínio na nossa sociedade de elementos politicamente conservadores e, no fi- nal, totalmente anti-socialistas.
O oportunismo actual, «pós-guerra», não actua de modo diferente. Por toda a parte onde conseguiu passar à contra-ofensiva, utilizou em larga escala precisamente esta «testada» adulteração teórico-prática: atribuir o papel revolucionador na dinâ- mica da produção social, «do regime económico da sociedade», não ao conheci- mento social ideológico e às estruturas sociais portadoras do conhecimento ideoló- gico (a classe operária com as suas instituições de poder, todas as massas laboriosas), mas a diferentes disciplinas «não autónomas» do ponto de vista de classe, e por con- seguinte a diversos grupos sociais intermédios, não autónomos do ponto de vista de classe, que numa série de países, a coberto de uma demagogia «marxista», defendem na prática posições profundamente antipopulares e anticomunistas. Isto refere-se antes de mais à intelligentsia tecnoburocrática.
A glorificação da «ciência e da técnica» (em contraposição ao pensamento so- cial, a despeito das formulações claríssimas dos fundadores!) como motor do desen- volvimento económico-produtivo, estimula, impele a intelligentsia científico-téc- nica, incluindo os quadros administrativos, a tentativas de se constituir como classe. (Com efeito, porque não tentar? Uma vez que lhe atribuem um estatuto tão lisonjeiro e honorável!). E constituir-se como classe significa afirmar-se institucio- nalmente, «equipar-se» com uma determinada «forma de propriedade». Ora a
«propriedade» da intelligentsia é a sua conhecida q u a l i f i ca çã o e d u ca ci o - n al . Portanto, propelir esta camada social para o nível de c la sse , que não lhe é próprio e não está ao seu alcance, conduziria à deformação verdadeiramente dege- nerativa da monopolização da educação, da liberdade intelectual no Estado, e à en- tronização natural e descarada de um monopólio de casta em todos os cargos rele- vantes no sistema de administração.
Em resultado, na característica da estrutura política do nosso regime estatal, cons- tatada por Lénine («um Estado operário-camponês com uma deformação burocrá- tica»18), a tónica deslocar-se-ia do Estado «operário-camponês» para a «deforma- ção burocrática» (por muito tragicómica que seja semelhante volta). E teríamos, em vez do «Estado de todo o povo», em vez da eliminação do burocratismo e da extinção das fronteiras socialmente relevantes entre o trabalho físico e intelectual, entre o tra- balho operacional e criativo – em vez de tudo isto teríamos um alastramento cance- roso do perigo burocrático, a estagnação intelectual no país, a ossificação das velhas diferenças sociais e a criação injustificada de novas diferenças, a violação grosseira
18 A citação exacta é a seguinte «O Estado operário é uma abstracção. De facto nós temos um Estado operário, 1.º, com a particularidade de que não é a população operária mas a população camponesa que predomina no país; e 2.º, um Estado operário com uma defor- mação burocrática», «A Crise no Partido», 19 de Janeiro de 1921, V.I Lénine, Obras Esco- lhidas em seis tomos, Ed. Avante! – Ed. Progresso, t. 5. p. 215. (N. Ed.)
do princípio da soberania popular, e do direito conquistado pelo povo de, cons- cientemente, «todos e cada um», decidir o seu destino futuro.
O modo condicional que aqui utilizo («conduziria», «teríamos»), em certos aspec- tos essenciais pode, aliás, ser substituído sem receio pelo modo indicativo. Muitas coi- sas inadmissíveis já hoje acontecem de facto no nosso país. Hoje, a mais evidente con- clusão – argumentada em pormenor e com honestidade nas minhas últimas cartas ao Comité Central do partido – consiste precisamente no facto de L.I. Bréjnev, através de uma persistente salganhada bukharinista nas questões políticas e filosóficas mais im- portantes sobre a formação da sociedade comunista, objectivamente empurrar o país para uma sufocante e antipopular elitização social «científica»-burocrática, elitização que, pela sua tendência real, aferível pela economia política marxista, e essência – fa- lando francamente –, é fascismo e não «comunismo».19
Poderão alegar a este propósito que L.I. Bréjnev pretende construir o comunismo apoiando-se, decerto, na «ciência e técnica» s o c ia l is ta e não burguesa.
Pois então examinemos resumidamente esta objecção inteiramente plausível.
Em primeiro lugar, L. I. Bréjnev comete um erro imperdoável, antimarxista e anti-
-leninista, logo ao atribuir o papel principal da transformação direcionada da existên- cia socioeconómica ao conhecimento das ciências naturais e aos meios técni- cos, e não ao conhecimento social e às instituições políticas da classe que
«superintende» a época da revolução comunista, com todas as suas necessida- des sociais e históricas (incluindo técnicas). Os marxistas (muito antes desta nossa polémica, como é evidente) preveniram milhões de vezes que dessa maneira não se alcançará a «resolução das tarefas finais» do processo revolucionário comunista, mas apenas uma «redistribuição», desnecessária e completamente destruidora, da influência política na sociedade socialista a favor da elite «intelectual-burocrática»,
– por outras palavras, uma profunda de s o r ie n t aç ão doutrinal e prática face às atrás referidas tarefas finais. Tal encenação foi «representada» exaustivamente pela direcção de Dubcek/Sik, na Checoslováquia, e por Gomulka/Boleslaw, na Polónia. É estranho que L.I. Bréjnev e A.N. Kossíguine não tenham aprendido nada com tão sóbrias lições.
Em segundo lugar.
Em segundo lugar, todas estas considerações a respeito das ciências naturais (pre- cisamente, a «revolução científico-técnica»), que se desenvolvem «de modo diverso em diferentes condições sociais»: no socialismo «servem o homem» e «resolvem ta- refas finais», enquanto no capitalismo «não o servem» e não resolvem tais tarefas,
– todas estas considerações ignoram totalmente o princípio marxista angular, no caso em análise, do carácter de classe da ciência.
19 Para fundamentar a minha posição geral sobre esta problemática desenvolvi um traba- lho assaz amplo, cujos resultados estão resumidos, entre outros materiais que são do Vosso conhecimento, nos manuscritos «O socialismo actual e o problema da inovação qualitativa histórico-social» (20 páginas) e «Os princípios estáticos e dinâmicos da planificação da eco- nomia nacional» (cerca de 17 páginas).
Considero oportuno notar, mais uma vez, que todo o material de que disponho pode ser colocado à Vossa disposição sem demora, mal haja os menores sinais de uma atitude cons- trutiva do partido, no sentido de debater as questões que tenho levantado – a sua «enfermi- dade» social e política é tal que qualquer esperança (da Vossa parte) de evitar a sua discussão é totalmente absurda e irrealista.
O marxismo indica que a ciência constitui um fenómeno histórico concreto me- diado pelas classes, e não um fenómeno «super-humano». Em qualquer formação socioeconómica a ciência serve não um qualquer «homem» em abstracto, mas a classe que a trouxe à vida. Servir ou não servir a classe hegemónica, isso não depende minimamente do quadro mental subjectivo dos cientistas; estes inevitavelmente s e r v e m sempre as forças sociais de classe, cuja concepção do mundo, «apropria- ção do mundo», domina (ascende ao domínio; ag arra - se convulsivamente ao po- der que está a perder) num determinado momento. Se pensardes com as categorias da física objectivista de Newton, independentemente das mais pias intenções que ti- verdes, s erv i rei s a classe da burguesia, porquanto o esqueleto de categorias, a «carcaça» de categorias, que vos é dado para a reflexão sobre o universo foi há muito gerado pela burguesia (como classe hegemónica de uma determinada época histórico-social), – foi gerado não como o fim de servir o «homem em geral», mas com o fim de servir o homem integrado na classe dos proprietários privados.
Nos anos da implantação do poder soviético na Rússia, as instituições teóricas e políticas eram proletárias, mas as ciências naturais e a técnica eram «capitalistas». Deve-se constatar, com toda a clareza que aqui se exige, que não se registaram ulte- riormente quaisquer alterações su b st a n c i a i s nesta disposição: as ciências natu- rais continuam actualmente a ser o b j e c t iv is ta s - es t at á ti c a s («burguesas», se não quisermos utilizar aquele termo propositadamente vulgarizador), a técnica permanece in du s tr i a l , de acordo com o carácter assinalado das ciências naturais. O conhecimento especificamente «comunista» da natureza, capaz de operar com processos din â m i co s (processos de d e s e nv ol v i m e nt o , e não apenas mudan- ças quantitativas de crescimento), – um tal conhecimento da natureza por enquanto ainda não surgiu, como não surgiu também a tecnologia de produção comunista não- industrial, nã o m e c â ni c a . (O fundamento socioeconómico do estado de coisas descrito é a persistência das relações monetário-mercantis na estrutura do nosso modo de produção.)
Nestas condições, retirar da ordem do dia o problema da origem e condicionamento de classe dos esquemas conceptuais, «de percepção do mundo», dominantes na inves- tigação científica actual, constituiu e constitui um grosseiro erro político-ideológico.
A precipitada «liquidação dos princípios de classe» na história natural teve como conclusão o facto de os esquemas esboçados, inteiramente burgueses-objectivis- tas pela sua orientação mundividente, terem sido canonizados na qualidade de dis- posições «super-humanas», «universais e gerais», em cuja conformidade, vejam só, devem ser «ordenados» o próprio marxismo-leninismo e o próprio socialismo.
«(…) Devemos compreender» – escreveu I.V. Lénine em «Significado do mate- rialismo militante» – «que sem uma sólida fundamentação filosófica não há ciência da natureza, nem materialismo que possa suportar a luta contra a investida das ideias burguesas e o restabelecimento da concep- ção burguesa do mundo. Para sustentar essa luta e levá-la com pleno êxito até ao fim, o cientista deve ser um materialista moderno, um partidário consciente da- quele materialismo que é representado por Marx, isto é, deve ser um materialista dialéctico. Para atingir esse fim, os colaboradores da revista Pod Známiniem Marksizma devem organizar o estudo sistemático da dialéctica de Hegel do ponto de vista marxista, isto é, da dialéctica que Marx aplicou pratica-
mente tanto no seu O Capital como nos seus trabalhos históricos e polí- ticos, e aplicou com tal êxito que actualmente (…) cada dia do despertar para a vida de novos povos e novas classes confirma cada vez mais o marxismo.»20
Vemos que V.I. Lénine, com uma clareza inequívoca, insiste numa «sólida» fun- damentação filosófico-dialéctica das ciências naturais, na reconstrução conceptual das ciências naturais, de acordo com os princípios da «concepção materialista da dialéctica de Hegel», a «dialéctica que Marx aplicou praticamente tanto no seu O Capital como nos seus trabalhos históricos e políticos»; e não, em absoluto, no ajustamento metodológico do marxismo às técnicas estáticas-mecanicistas da investigação científica! Os nossos «marxistas» de hoje proclamam, no essencial, uma certa coisa diametralmente oposta: em vez da reconstrução materialista-dia- léctica da ciência da natureza em toda a sua profundidade, proclamam a «reori- entação» da ciência social marxista, da própria filosofia marxista-leninista, no espírito do «materialismo natural» estático, não dialéctico (e por vezes manifesta- mente antidialéctico).
Entretanto, a metodologia do objectivismo das ciências naturais (sem excluir «os métodos matemáticos exactos») não possui nenhuma «latitude extraordinária», e muito menos, no caso presente, estaremos ante uma mítica «ciência pura», pela qual o nosso sistema social necessita, supostamente, de se guiar, sem murmúrios, reve- rencialmente, como se fosse uma indiscutível verdade em última instância. É com- pletamente ao contrário; ante nós temos um complexo conceptual, formado nos seus traços determinantes pelo modo socioeconómico anterior, que nos é al h ei o e com- porta em si poderosíssimas tendências «restauracionistas», e que, a continuar sem uma persistente e atenta «fundamentação filosófica», transformará essas inclina- ções negativas na mais sórdida realidade.
Nos países do Ocidente burguês, um complexo de ciências análogo (ou melhor, idêntico) trabalha com extraordinário zelo e interesse as mais recentes necessidades do capitalismo monopolista de Estado altamente burocratizado. Entre estas necessi- dades, a principal e mais geral é o mascaramento minucioso, «científico» («mate-
20 «Significado do marxismo militante», Março de 1922, V.I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Ed. Avante – Ed. Progresso, Lisboa – Moscovo, t. 3, 1979, pp. 567-568. Sub- linhados da autora. (N. Ed.)
Vejamos agora (por exemplo) a seguinte passagem pertencente à pena de V.G. Afanássiev:
«Também à ciência da natureza é inerente o processo de formalização, de matematiza- ção do conhecimento; as suas realizações tornam-se em grau crescente métodos de investi- gação da ciência natural. (…) Utilizando as realizações da ciência natural, os métodos ma- temáticos rigorosos e os meios de investigação da ciência natural, as ciências sociais enri- quecem-se, desenvolvem-se e (isto é o principal) adquirem um elevado grau de exactidão, necessário para a resolução efectiva dos problemas actuais de administração. Hoje é par- ticularmente intensiva a penetração dos métodos matemáticos científicos nas ciências so- ciais, o que se explica pela unidade entre a natureza e a sociedade, pela presença nos fenó- menos sociais não só de características qualitativas mas também quantitativas, pelo enorme grau de abstracção, pela extraordinária latitude dos princípios da matemática, que tornam possível a sua aplicação também aos estudos sociais.» (V.G. Afanássiev, Revolução Científica Técnica, Administração, Educação, Politizdat, Moscovo, 1972, p. 146.)
mático» se possível), da escravização elitista-exploradora dos trabalhadores, a con- cepção de um tal conjunto de instrumentos organizacionais-administrativos, o qual, mantendo a totalidade do poder real nas mãos das elites, crie a ilusão de «democra- cia», de «participação do povo na governação», do «desenvolvimento multilateral da personalidade», permita (através de manipulações propagandísticas) a tempo e habilmente neutralizar focos de descontentamento político cívico de massas.
E supostamente não há nada de anormal nisto, nada de insultuoso que manche a impecável face «humana» da «ciência pura» objectivista. A concepção do mundo estática-objectivista, o «sistema da natureza» objectivista, com toda a sua «abstrac- ção», tem fundas raízes na terra; foi criada por forças que assumiam como sua «mis- são final» não o renascimento criativo harmónico da personalidade humana, mas uma durável e tranquila «posse das coisas nesta vida», como disse John Lock, um representante «clássico» das concepções jurídicas e político-económicas da socie- dade burguesa, segundo a definição de Marx. A evolução espontânea, irresponsavel- mente declarada livre e «acima das classes», do ordenamento objectivista-«coi- sista» do pensamento e a atribuição a este, de facto, de funções ideológicas deter- minadas, nas condições do socialismo, apenas poderão conduzir (e na realidade es- tão a conduzir) a que o elitismo burocrático (o qual, por enquanto, ainda constitui um problema sério no aperfeiçoamento do funcionamento do nosso Estado) adquira inesperadamente um «reforço científico» (convenientemente vindo de fora) e, com redobrada energia, comece a «abrir brechas» e a «forçar» as estruturas de base socialistas na direcção que lhe convém. É precisamente este processo de deformação c o n sc i e n t e da base socialista pela recém-amassada «elite», que há muito se con- centra em «possuir bens na vida terrestre» (e não no futuro comunista do povo) – é precisamente este processo regressivo que constitui a lamentável linha que domina o nosso desenvolvimento político-estrutural. Linha cuidadosamente protegida e aprofundada com invenções bukharinistas sobre a influência decisiva da «técnica» e das «verdades científicas super-humanas» na ordem socioeconómica.
Para concluir esta carta, direi o seguinte.
Há muitos anos que «desenvolveis criativamente» a ideologia marxista-leninista no nosso país, de um modo que privais de toda a possibilidade de expor os pontos de vista (e mesmo da possibilidade de e x is tir normalmente, de acordo com a lei) aos investigadores-marxistas que não estão dispostos a concordar à força e se resignarem com invenções anti-socialistas sobre o «primado» da técnica no progresso social his- tórico, sobre a necessidade de subordinar a vida humana às exigências da fantasiada
«revolução científica-técnica», sobre quaisquer «problemas globais» que teremos
«em comum» com os Rockefeller, os quais seriam ainda mais amplos (!) que os pro- blemas da reorganização comunista do mundo – em suma, com toda uma lista de absurdidades, nulidades no aspecto teórico-filosófico e clamorosamente nefastas no aspecto político. E, como é evidente, o Vosso nome é para aqui chamado em primeiro lugar, uma vez que sem a «mais elevada sanção» semelhante obscurantismo, seme- lhantes actos criminosos (de que eu, por exemplo, sou vítima há já sete anos) segu- ramente não poderiam acontecer. (Envio-vos os correspondentes documentos a este respeito; talvez, apesar de tudo, possais finalmente separar-vos das lentes cor-de- rosa e ver com atenção, em profundidade, a obra criminosa, a escória política, que cultivastes no campo do famigerado «desenvolvimento criativo» e nas secções adja- centes do aparelho do partidário-estatal. É preciso pôr fim às perseguições de pessoas
honestas, bem como em geral à metodologia atrás descrita de «criatividade» polí- tico-filosófica, a qual por enquanto nada «criou», mas apenas vulgariza os ideais do nosso movimento e irritantemente desacredita o nome dos clássicos do marxismo.
«As leis soviéticas», como muito justamente assinalou I.V. Andrópov no seu recente discurso, «são a incarnação da vontade da classe operária e de todos os trabalhado- res. É importante que sejam observadas rigorosamente. Esta exigência é feita a todos os cidadãos, independentemente dos cargos que ocupem, do carácter do trabalho que realizem. Uma sólida legalidade socialista garante os interesses e direitos dos sovié- ticos, bem como os interesses de toda a sociedade no seu conjunto».
«O partido considera que a análise crítica, prática, aberta, num ambiente sau- dável, do estado de coisas em qualquer domínio, a análise autocrítica das insufici- ências existentes deverão ser parte orgânica do estilo de trabalho de cada organi- zação, de cada colectivo».21
Na Vossa opinião, estas excelentes indicações também se referem ao próprio Co- mité Central? Será que Vós próprios, no Bureau Político, não vos atreveis, na rea- l ida de e não apenas em palavras, a seguir as vossas próprias declarações? Pois bem, organizai a «análise crítica, prática, aberta, num ambiente saudável, do es- tado de coisas» – o estado de coisas é que, nas ciências sociais que acompanhais e nas secções de ciência do Comité da Cidade de Moscovo e do CC do PCUS, pratica- mente todos, incluindo os presidentes da Academia e os dirigentes dessas secções, consideram que a Revolução de Outubro se revelou, afinal, «desnecessária».
Mas em vez de uma análise crítica «aberta e saudável», preferis tentar eliminar civicamente, e caso seja possível, fisicamente, todo aquele que «ouse» exigir-vos, em determinadas questões (aliás suficientemente alarmantes), o cumprimento desta norma da vida do Estado e do partido, – norma que não vos resolveis a negar, não vos resolveis a confessar ao povo que ela é há muito espezinhada por Vós, esmagada, transfigurada no seu contrário.
«O nosso objectivo é conseguir que cada cidadão compreenda, sinta, que a re- solução dos assuntos sociais, o próprio desenvolvimento da sociedade depende pessoalmente dele próprio, do seu trabalho, do seu empenhamento político.»22
Seria mais oportuno que colocassem a vós próprios o objectivo de conseguirem que estes preceitos elementares, em que foi educada a esmagadora maioria da nossa população ao longo de 60 anos, sejam minimamente compreendidos e sentidos pela actual composição do Bureau Político! Eu, por exemplo, não preciso de qualquer es- tímulo para revelar o meu empenhamento político. Compreendo perfeitamente que se me foi dado um certo nível de penetração em determinados problemas e a capaci- dade de formular o pensamento com nitidez, então o meu dever é realizar, transfor- mar num b e m da s o c ie da de esse nível de desenvolvimento da correspondente problemática, que de mim depende, porquanto isso é justamente um instrumento
«material» com o qual o povo organiza os assuntos da sociedade. Porém, o mal não está em nós não compreendermos, supostamente, a importância da nossa actividade social; todo o mal está em que a importância da nossa intervenção social não é por Vós minimamente compreendida; o mal está em que a Vossa atitude em relação à autonomia político-intelectual do povo que não é leninista, mas aristocrata,
21 Pravda, de 23 de Abril de 1976, p.2.
22 Idem, ibidem.
desdenhosa e arrogante, que nenhuma nação civilizada no mundo actual (não ex- cluindo naturalmente a nossa) não pode tolerar nem tolerará.
E ainda: no que toca à «resposta» que d ev eri a ser dada às minhas missivas. As
«respostas» que recebi, aquelas que o Vosso aparelho foi até ao momento capaz de imaginar, no seu conjunto não são a concretização das normas jurídico-morais le - n i n is ta s , mas uma ampla tentativa de um certo tipo de «institucionalização» das labregadas políticas bukharinistas-kulaquistas. (Não duvido que este «sistema» ver- gonhoso é usado para «responder» a muitos cidadãos honestos na União Soviética, além da minha pessoa. Naturalmente que não reconheço nem irei reconhecer estas
«respostas». As questões que trato são demasiado sérias para que se «responda» com o envio de um postal de correio com números de telefone (que não interessam absolutamente a ninguém) ou com corridas pelas secções da milícia com queixas con- tra mim: eis «um comportamento anti-social».
Neste caso só há uma resposta realmente admissível (e continuarei incessante- mente a exigi-la): a r e s o l u ç ão dos problemas levantados (levantados pela pró- pria realidade e não por uma qualquer arbitrariedade minha), a resolução dos pro- blemas levantados a partir de posições marxistas, no espírito dos princípios leninis- tas do debate político-ideológico, no respeito incondicional da legalidade socialista em relação aos iniciadores desse debate, às pessoas que intervêm com críticas argu- mentadas e construtivas. Não sei que outros materiais críticos (além daqueles entre- gues por mim) desconhecidos da opinião pública em vão têm sido enviados ao CC; é possível que entre eles se encontrem trabalhos muito melhores que os meus, mais dignos de constituírem a base do referido debate; mas se em todo o caso as m i n h a s intervenções vierem a ser consideradas, é desnecessário precisar que qualquer selec- ção só será reconhecida por mim, na condição de nela participar directamente.
Tatiana Khabarova
Doutorada em Ciências Filosóficas
26 de Abril de 1976
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