Costa Martins arrasa memórias de Vasco Lourenço
O ex-ministro do Trabalho de Vasco Gonçalves classifica o livro de "ofensa ao 25 de Abril".
20 de Junho de 2009
Num extenso comentário enviado ao Expresso, o coronel Costa Martins disseca o livro "Do Interior da Revolução", uma longa entrevista de Vasco Lourenço a Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de Documentação 25 de Abril e editado pela Âncora. Martins acusa Lourenço: "Em alguns casos, inventa factos; noutros - para fugir a responsabilidades, ou por ignorância - diz desconhecê-los; e em outros, manipula-os e subverte-os, chegando, por vezes, a fazê-lo de forma ridícula e até incorrendo em flagrantes contradições".
Piloto-aviador na reforma, Costa Martins também esteve envolvido no golpe de 25 de Abril, após o que foi ministro do Trabalho de todos os governos de Vasco Gonçalves. Membro dos conselhos de Estado e da Revolução, participou em muitos dos episódios referidos no livro por Vasco Lourenço, mas pertencendo a uma corrente político-militar diferente: enquanto este foi um dos operacionais do "grupo dos nove", Martins fazia parte da corrente "gonçalvista", alinhada com o PCP. Se Lourenço foi um dos vencedores do 25 de Novembro, Martins passou à clandestinidade e chegou a viver em Angola.
"Vasco Lourenço tem o direito de não entender que o mundo ultrapassa os limites do seu umbigo", escreve Costa Martins. "O que não tem é o direito de ofender tudo e todos para dar largas ao seu exacerbado egocentrismo e à sua desmedida megalomania, parecendo usá-los como capa para mascarar as suas frustrações. Nem tem o direito de denegrir o bom-nome e a honra dos seus camaradas militares, com invencionices, deturpações e manipulações de factos, mentiras e calúnias, espezinhando tudo e todos, muitas vezes dissertando sobre o que não sabe, ou não conhece, e atraiçoando a própria História do país".
Segue-se, na íntegra, o texto do coronel Costa Martins (os subtítulos são da responsabilidade do Expresso).
Uma ofensa ao 25 de abril
* Costa Martins
No Expresso de 25-04-2009, foi publicado um artigo de José Pedro Castanheira alusivo ao livro de Vasco Lourenço, intitulado "Do Interior da Revolução" em que sou visado. À partida, senti relutância em ler o livro pelo facto de Vasco Lourenço não me merecer confiança e por estar farto das suas mentiras e calúnias. Contudo, algumas pessoas recomendaram-me que o lesse, e acabei por fazê-lo. E valeu a pena.
A entrevistadora, no contexto das perguntas e com os seus profundos conhecimentos, refere aspectos importantes da História recente de Portugal.
Vasco Lourenço, dissertando sobre tudo e sobre todos, faz declarações por vezes inéditas.
Em alguns casos inventa factos; noutros - para fugir a responsabilidades, ou por ignorância - diz desconhecê-los; e em outros, manipula-os e subverte-os, chegando, por vezes, a fazê-lo de forma ridícula e até incorrendo em flagrantes contradições.
Vasco Lourenço chega a declarar que Melo Antunes era o único que tinha um plano estratégico para o país, mas que "foi um benefício" a sua saída da Comissão Coordenadora, quando ele entrou!
E afirma a seguir que: "o mesmo se passando com a substituição de Costa Martins por Canto e Castro". Não se tratou de substituição na Comissão Coordenadora, mas sim da usurpação do meu lugar no Conselho da Revolução, "cozinhada" de forma porca e suja, que então denunciei e o Expresso publicou.
Não somos burros dispostos a comer toda a palha
Vasco Lourenço mostra a sua verdadeira personalidade, sobre a qual não posso pronunciar-me em termos clínicos porque não sou médico da especialidade; mas posso e devo fazê-lo em termos de apreciação comum, ainda que, por agora, de forma não muito aprofundada para não me alongar demasiado - apesar de haver "pano para mangas"...
Vasco Lourenço tem o direito de não entender que o mundo ultrapassa os limites do seu umbigo.
O que não tem é o direito de ofender tudo e todos para dar largas ao seu exacerbado egocentrismo e à sua desmedida megalomania, parecendo usá-los como capa para mascarar as suas frustrações.
Nem tem o direito de denegrir o bom-nome e a honra dos seus camaradas militares, com invencionices, deturpações e manipulações de factos, mentiras e calunias, espezinhando tudo e todos, muitas vezes dissertando sobre o que não sabe, ou não conhece, e atraiçoando a própria História do País.
Na voracidade dos enganos vai ao ponto de nem sequer poupar a criança, seu neto, na dedicatória que lhe fez! Toma-nos a todos como se fossemos uns burros dispostos a comer toda a palha que nos quer dar.
Certamente usando o dom da ubiquidade, esteve em todas as reuniões do MFA. Dirigiu e comandou tudo e todos, admoestou generais e pô-los em sentido. Ameaçou atirar pela janela quem se lhe opusesse, e reclamou camisa-de-forças. Vetou decisões que não lhe interessavam - ainda que, por vezes, contrariando a vontade de todos os outros. Impôs o que entendeu. Opôs-se a que existissem Generais na Junta de Salvação. Entendeu que seria ele "o comandante do 25 de Abril". Achou que os órgãos de comunicação social "tinham de estar disciplinados". E propôs-se vetar o resultado das eleições democráticas se entendesse que os eleitos eram "reaccionários"!
Com um tal democrata, para quê ditadores?
No 16 de Março
À medida que avançava na leitura do livro ia-se-me aguçando o interesse por tropeçar no capítulo em que Vasco Lourenço tivesse ordenado a Deus que se afastasse, para que fosse ele a comandar o mundo. Mas não o conseguiu.
E tudo por causa dos seus camaradas militares, porque uns são "cobardes", outros "tontos", outros "pobres diabos", outros "actores de palco", outros, "um bluff". Enfim, "uma cambada de incompetentes".
E os spinolistas? Essa "cambada de inúteis e imbecis" que "Spínola tinha à sua volta" e que só se apercebeu disso quando ele lhe chamou a atenção durante um reparo que lhe fez.
Foi por tudo isso que, logo no dia 16 de Março - já nos Açores - "sem saber exactamente o que se estava a passar" chamou "montes de nomes à malta do Movimento. Estúpidos. Deitaram tudo a perder! "
Não fora a contenção imposta pelo seu profundo sentimento de camaradagem - que sempre alardeou - e teria muito mais epítetos para qualificar toda essacambada de incompetentes, de inúteis e imbecis, estúpidos, tontos, cobardes, pobres diabos, actores de palco, bluffs, que, em vez de o ajudarem só o atrapalharam!
E foi por causa deles que não conseguiu afastar Deus e tomar o comando do mundo! Mas, também se o tivesse conseguido, não tinha tido a possibilidade de, no 25 de Abril, nos Açores, apelar ao Aspirante Ramos para que rezasse!
Isto, à cautela, não fosse o diabo tecê-las, porque apesar de ter deixado tudo preparado e todas as ordens dadas a todos antes de embarcar para os Açores, o Otelo podia não as ter entendido e resolver usurpar-lhe o palco - que era seu, exclusivamente seu!
No 25 de Abril
Já os fascistas, também estúpidos e incompetentes, nem discorreram que, se em vez de o terem mandado para os Açores em princípios de Março o tivessem feito alguns dias antes, não tinha havido 25 de Abril!
E a coisa que não lhes perdoa "foi o impedirem que estivesse aqui no 25 de Abril" - embora confesse que sempre esteve disposto a seguir!
A fls. 187 do livro, a propósito da sua ida para os Açores, faz mesmo a seguinte declaração: "Está bem. Eu embarco. Já fizemos o que tínhamos a fazer, aliás, eu sempre estive disposto a seguir"!
Se em vez de sempre ter estado disposto a seguir, tivesse tido a determinação de ficar e a coragem de enfrentar o regime recusando-se a embarcar, teria cá estado no 25 de Abril. Mas preferiu o pseudo rapto, para show off e como forma de fugir às responsabilidades, "empurrando-as" para cima de outros, em vez de as assumir.
Até porque, pouco tempo antes, um Capitão do Estado-Maior da Força Aérea, a quem fora imposta uma deportação, recusou-se a embarcar e, mesmo sem ter atirado indivíduos pelas janelas nem reclamado camisa-de-forças, ficou cá e participou activamente no 25 de Abril! Contudo, melhor fora que esse "tonto" não tivesse cá ficado.
Então não é que ele, "incapaz de perceber o seu Princípio de Peter", no 25 de Abril ia deitando tudo a perder com a emissão de um NOTAM determinando o encerramento do espaço aéreo português, o que fez com que Vasco Lourenço se visse impedido de regressar de imediato a Lisboa para estar "aqui no Continente, no centro dos acontecimentos" - no palco! Crime de "lesa-majestade" que nunca mais lhe perdoou.
Contudo, se tivesse recusado seguir para os Açores, Vasco Lourenço, não teria sabido que, "afinal [tinha] uma importância doida" - apesar de não ter sido nessa altura que pediu uma camisa-de-forças - só se tendo apercebido disso quando, no seu embarque, se deparou no Aeroporto com os "pides, com aqueles carimbos todos da PIDE, gabardina, óculos escuros, ar sinistro"..."pides por todo o lado"..."tantos!"
Mas não foi só em relação à ida para os Açores que, em matéria de fuga às responsabilidades em momentos sérios e difíceis, Vasco Lourenço esqueceu a sua tão exibida frontalidade e procurou fugir às responsabilidades.
No PREC
No Verão de 1975, a dada altura houve reuniões do CR, no Alfeite, em dias sucessivos. Numa dessas reuniões, para me atacar, fez acusações graves relativamente a dois processos que corriam no Ministério do Trabalho.
Não podendo exibir elementos, por não os ter naquele momento, limitei-me a manifestar profunda estranheza.
No dia seguinte levei os respectivos dossiers à reunião e provei ser mentira tudo quanto Vasco Lourenço propalara na véspera.
Por não estar disposto a tolerar calunias, dirigi-me ao Primeiro-Ministro e ao Presidente da República, que participavam da reunião, e apresentei a minha demissão - que o Expresso noticiou. E sugeri a nomeação de Vasco Lourenço para me substituir como Ministro do Trabalho. Porque o cargo não era "pêra doce", encolheu-se e esquivou-se a aceitar tais responsabilidades.
Na sequência de insistentes solicitações do PR e do PM para que eu permanecesse em funções, acabei por aceitar, mas deixei bem claro que não admitiria críticas levianas e assentes em falsidades, para mais vindas de quem mostrava incapacidade para desempenhar as funções e assumir as inerentes responsabilidades.
Também, mais tarde, no dia 25 de Novembro, quando o confrontei com as vergonhosas calúnias que propalara na entrevista publicada no República em 20-11-75, relativas à Cabala do "Dia do Salário, mais uma vez mentindo procurou fugir às suas responsabilidades, declarando que não tinha dito "nada daquilo", que fora tudo invenções dos jornalistas e que iria fazer o desmentido no dia seguinte. Nunca cumpriu, nem nunca se retratou!
No 25 de Novembro
Com todo o seu heroísmo, no 25 de Novembro, em vez de ter assumido as suas responsabilidades, indo para o Comando da Região Militar de Lisboa, da qual era o comandante, "[deu] instruções a Ramalho Eanes para ir para a Amadora", e resolveu ficar em Belém" debaixo das asas do PR - não fosse, desta vez, o diabo tecê-las, para mais com a agravante de não ter à mão o Aspirante Ramos para rezar.
Mas há cerca de um ano teve o descaramento de declarar que no dia 25 de Novembro nunca me viu em Belém, apesar de se ter encontrado comigo nas duas vezes em que lá fui reunir-me com o PR, precisamente a propósito do 25 de Novembro! No livro faz a seguinte surpreendente declaração: "Eu ainda hoje não percebi qual foi a actuação do Costa Martins". Assim sendo, tem falado à toa, de forma irresponsável e inconsciente, quando sobre ela se tem pronunciado; para mais, fazendo-o geralmente à base de mentiras e calúnias!
Aliás, para que Vasco Lourenço pudesse "perceber qual foi a minha actuação" teria de saber primeiro, o que verdadeiramente, esteve por trás do 25 de Novembro, por trás da sua azáfama, do "levar e trazer", do "diz que disse" e das tarefas sujas a que se prestou, mentindo e caluniando camaradas que, de boa fé, o consideravam amigo.
É óbvio que eu - tal como a esmagadora maioria da população - não estava de acordo com os crescentes desmandos com que, no dia a dia, éramos confrontados, nem com o desnorte existente no País. Mas sabia que o que estava em causa não era o apregoado. E sempre estive contra a destruição dos Valores e Princípios Éticos, imprescindíveis ao relacionamento dos cidadãos na "prometida sociedade de rosto humano."
O exibicionismo da megalomania
Vasco Lourenço, na ânsia da sua desmedida ambição, parece ter corrido atrás de miragens acenadas por "aladinos" - qual coelho correndo atrás das cenouras - mas que, a final, em matéria de concretização se confinaram a duas efémeras estrelas, rapidamente apagadas quando os seus "brilhantes serviços" deixaram de "ter aproveitamento".
E de pouco lhe serviu ter ido sentar-se na cadeira do Primeiro-Ministro, em São Bento, num dia em que o Governo reuniu em Belém.
Parece serem essas as causas das suas incontidas frustrações bem espelhadas no livro, ainda que aparentemente camufladas pelo exibicionismo da sua megalomania e pela linguagem deselegante, grosseira e por vezes ofensiva, com que se refere a camaradas e se dirige publicamente a entidades respeitáveis, inclusivamente ao próprio Presidente da República, pensando que, assim, parece importante!
*Costa MartinsCoronel piloto aviador, na reforma; ex-ministro do Trabalho dos II, III, IV e V Governos Provisórios; ex-membro da Comissão Coordenadora do MFA, do Conselho de Estado, do Conselho da Revolução e do Conselho dos Vinte.
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