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quinta-feira, 29 de maio de 2014

HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL 53ª PARTE - MAIS RELATOS DA OPERAÇÃO MAR VERDE NA GUINÉ - AS GRANDES OPERAÇÕES DE LIMPESA NA GUINÉ - OPERAÇÃO LANÇA AFIADA - CEM PESOS ! MANGA DE PATACÃO

MAIS RELATOS DA OPERAÇÃO MAR VERDE NA GUINÉ

Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde 

Trecho do livro de Alpoím Galvão De Conakry ao MDLP (1976), seleccionado por A. Marques Lopes (vd. post de 22 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXX: Bibliografia de uma guerra (9): a invasão de Conacri):

A LFG ORION fundeou a NW dos molhes de protecção do porto de Conakry. A maré estava completamente cheia, o vento era nulo, e apenas o clarão da cidade iluminava a noite. Os botes de assalto foram colocados na água e, pelas 00.45, a equipa Victor, do comando do 2.° tenente Rebordão de Brito e composta por 14 elementos, largou discretamente em direcção aos molhes. Encostou ao Dique Norte, localizou exactamente o objectivo e partiu ao ataque.


O grumete FZE Abu Camará eliminou silenciosamente a sentinela, o que permitiu a entrada a bordo das três vedetas P6, que se encontravam a N da ponte do cais bananeiro. Abertas as portas das cobertas foram lançadas granadas de mão ofensivas para o interior das mesmas neutralizando as guarnições. A equipa de assalto atravessou velozmente a ponte e invadiu os restantes navios: mais três vedetas e uma espécie de lancha de desembarque.


Entretanto soara o alarme no porto e o inimigo abriu fogo sobre os nossos elementos que, repetindo a técnica das granadas de mão, eliminaram os focos de resistência a bordo. Os incêndios ateados pelas granadas cresceram rapidamente e, em breve, de bordo da ORION, avistaram-se as bolas de fogo provenientes das explosões das lanchas.


A equipa Victor, que realizou o notabilíssimo trabalho, regressou a bordo pelas 02.10, com dois feridos ligeiros e sem a menor perda de material.







As LFG Dragão e Cassiopeia, transportando a equipa ZULU, fundearam em 5 metros de fundo, na pequena baía a N da península de Conakry, junto aos baixos de La Prudente, cerca das 00.15, a três milhas marítimas do local de abicagem.


Às 01.40 os botes (em número de 10) largaram dos navios. Houve, poucos momentos depois, um pequeno contratempo: alguns botes enrodilharam-se em várias redes de pesca, que não foram avistadas devido à escuridão da noite. Depois de aturado trabalho a desvencilhar os hélices, conseguiu-se o desembarque pelas 02.15.


A equipa dividiu-se em três elementos: o primeiro, comandado pelo 1° tenente Cunha e Silva, dirigiu-se imediatamente à prisão La Montaigne, onde, depois de violenta escaramuça, eliminou a respectiva guarda e libertou os 26 prisioneiros portugueses que lá se encontravam.


O segundo, comandado pelo sub-tenente Falcão Lucas seguiu para o grupo de objectivos do PAIGC. Neutralizou uma série de sentinelas, destruiu 5 edifícios do partido, seis viaturas e abateu vários militantes que se encontravam nas instalações.


Finalmente o terceiro, comandado pelo 2° tenente Benjamim Abreu, encarregou-se do Campo das Milícias e da Villa Silly, residência secundária de Sekou Touré. Com uma decisão notável, o pequeno grupo (22 homens), forçou a entrada do Campo, esmagou a débil estrutura que se começou a formar e, à granada de mão, à bazucada e com bem dirigidas rajadas de metralhadora, pôs fora de combate cerca de 60 milicianos que guarneciam as duas casernas existentes. Prevendo que a guarda da casa de Sekou Touré, tivesse acorrido à defesa dos dois portões de entrada da propriedade, o tenente Benjamim resolveu saltar o muro que separava os dois objectivos e pôde assim, colhendo-a de supresa, eliminar a referida guarda. Sekou Touré ainda não chegara a casa: o quarto de dormir, a cama, impecavelmente aberta, aguardava o ditador Guineense! Incendiado o objectivo, o grupo retirou-se a fim de se juntar ao resto da equipa, o que conseguiu pelas quatro da manhã.


Passou a equipa ZULU a constituir a reserva de manobra do Comandante da operação.

Da LDG Montante, partiram as equipas OSCAR, ÍNDIA e MIK. A primeira, seguiu em botes de borracha conduzidos por pessoal do navio e abicou ao Quartel da Guarda Republicana, pelas 01.35. Para o desembarque das outras duas, a Montante, num alarde de boa manobra, abicou pelas 01.40 ao molhe Yatch Club!

A equipa OSCAR, constituída por efectivos nossos do Front (total 40 homens) e encabeçada pelos alferes Ferreira e Tomás Camará, dirigiu-se discretamente para o portão da entrada. O alferes Ferreira temerariamente tentou dominar a sentinela, a qual se refugiou na casa da guarda. O alferes, ao tentar persegui-lo, foi abatido na soleira da porta por dois homens que se encontravam no interior, os quais abriram nutrido fogo sobre os assaltantes. Valeu a decisão e coragem do furriel de comandos Marcelino da Mata: mergulhou através da janela e na confusão de vidros partidos e cadeiras caídas, etc., abateu os oponentes com uma rajada de AK-47.


O grupo entrou de rompante pelo recinto, colocando-se em posição de enfiar a saída das casernas, enquanto alguns homens corriam para a armaria. Apanhados de supresa, os guardas republicanos tentaram sair das casernas mas foram abatidos na maioria perdendo-se os outros na escuridão da noite.







Ocupado o campo, abriram-se as portas da prisão onde foram encontrados cerca de 400 presos políticos, que retomaram a liberdade no meio de grandes manifestações de alegria (ver relato do Capitão Abou Sommah, ocupante da cela n.° 37). Fez-se em seguida a entrega do campo às forças do FNLG (20 homens), na pessoa do chefe Barry Ibrahima, conhecido por BARRY III e cujas qualidades o tinham feito estimar por todos quantos com ele contactaram.


A equipa ÍNDIA (10 homens, furriel Demda Seca e Thiam do FLNG) atravessou a linha de caminho de ferro de Conakry – Fria e dirigiu-se para a Central. Observou a existência de quatro portas com sentinelas. Eliminou duas, prendeu o encarregado da central e obrigou-o a cortar a luz da cidade. Eram 02.15. Esta acção era primordial para o efeito psicológico que se pretendia obter. O seu sucesso contribuiu bastante para a desorientação verificada.


A equipa MIKE (50 homens) tinha por objectivo o Campo Militar Samory. Em marcha acelerada percorreu o quilómetro que a separava do alvo. Desarmou as sentinelas que estavam nos portões e ocupou o recinto sem efusão de sangue. A tarefa seguinte constituiu em bazucar e destruir os veículos que vinham para o campo carregados de pessoal: foram assim destruídas 16 viaturas com algumas dezenas de soldados. Deitou-se fogo aos edifícios do Estado-Maior e, não havendo mais resistência, a equipa dividiu-se em duas: uma, com o Alferes Sisseco (ferido na boca), que conduziu os nossos elementos feridos para o molhe do Yatch Club; a outra, com o coronel do FNLG DIALLO, o Comandante Assad e o jornalista do JEUNE AFRIQUESiradiou Diallo, seguiu a ligar-se à equipa ÍNDIA. Por um acaso infeliz os rádios da equipa MIKE ficaram quase imediatamente fora de acção, o que obrigava a contactos directos com os outros grupos para saber o que se passava.


A LDG BOMBARDA, do comando do cap. ten. Aguiar de Jesus, cuja calma imperturbável era demonstrada pela descontracção como fumava o inseparável cigarrinho na extremidade duma já velha boquilha, pelas 01.00 pairava a 300 jardas a sul da praia Peronné. As 01.05, largaram de bordo dois botes com a equipa HOTEL, encarregada de se apossar da Emissora de Boulbinet.


Esta equipa, comandada pelo Alferes Jamanca e tendo como assessor do FNLG o engenheiro electrónico Tidiane Diallo, actuou de forma bizarra. O alferes Jamanca dera boas provas ao longo de 7 anos de campanha. Mas inexplicavelmente, depois de desembarcar junto do objectivo ou por desorientação do engenheiro Diallo, conhecedor do local, ou por indecisão do alferes, o facto é que os dez homens da equipa HOTEL ficaram agarrados ao local de desembarque até receberem ordem para retirar!


Entretanto, e em duas vagas de botes de borracha, desembarcaram as restantes equipas: ALFA, BRAVO, CHARLIE, DELTA, ECHO, FOXTROT e GOLF. Passada a desorientação inicial devida à escuridão provocada pelo corte de luz e por se estar numa cidade desconhecida, estas equipas, compostas por elementos da CCCA e do FNLG — cujos guias nem sempre se mostravam à altura da situação — seguiram para os objectivos e neutralizaram os meios importantes.







Apenas na Gendarmerie se encontrou resistência de vulto. Como a equipa ECHO (reforçada com a GOLF, BRAVO e DELTA, num total de 50 homens) demorou mais que o previsto a reagrupar o pessoal, ao chegar ao alvo que lhe estava destinado, verificou que uma coluna blindada se preparava para sair. O Capitão João Bacar, que comandava a equipa, atacou as viaturas com decisão, destruindo quatro e causando elevado número de baixas. A guarda do Palácio Presidencial, ao ver chegar os dez homens da equipa ALFA, debandou em grande velocidade deixando aos assaltantes o problema de revistar um edifício tão grande e que se encontrava vazio!


Finalmente, a LFG HIDRA (1° tenente Fialho Goes), aproximou-se, depois duma hábil navegação, do local de desembarque da equipa Sierra (capitão pára Morais), pairando pelas 212330, com dois metros de fundo. Em 220015, os botes largaram do navio, com rumo ao local de desembarque, sob o comando do guarda-marinha Centeno, imediato da HIDRA. As três milhas demoraram uma hora a percorrer e só pelas 01.30 se conseguiu desembarcar.


A equipa Sierra era composta por:


a) Elementos nacionais.


Cap. Lopes Morais

2° Sarg. mi/, comando Teixeira

Formação do comando

1.°s cabos paras Duarte, Morais
Tenente Januário, com 9 homens do seu pelotão
Alferes Justo, com 24 homens do seu pelotão.

b) Elementos do FNLG


Sub-Lieutenant Boiro, com cinco homens, sendo um, de nome Mamadu Balde, antigo controlador de circulação aérea no Aeroporto de Conakry.


Iniciou a progressão em direcção ao campo e antes de o atingir foi surpreendido pelo som dos rebentamentos que se iam ouvindo na cidade. O Cap. Morais, apesar de uma lesão num joelho contraída recentemente num salto de pára-quedas, forçou a marcha, mas sentindo uma certa resistência ao movimento na retaguarda, mandou um dos seus homens tentar a ligação e verificou com espanto que o tenente Januário e cerca de 20 homens tinham desaparecido.











"...A partir daquela altura só uma coisa importava já: localizar os MIG e destruí-los; dirigi-me ao local, mas não estavam; entretanto, no campo Alpha Ya-Ya, ouviam-se toques de clarins e ruídos fortes de motores a trabalhar;por me ressentir do joelho fiquei com três homens a meio do taxi-way e ordenei ao Alf. Justo e 2.° Sarg. Teixeira para irem procurar os MIG; voltaram vinte minutos depois, informando-me que no fim da pista estavam 3 aviões de hélice já velhos e que havia outra pista ao lado da principal e em terra batida, mas nada de MIG. Voltei para trás e aproximei-me da placa; nessa altura ouvia-se um toque prolongado de sino no aeroporto seguindo-se-lhe, passados alguns minutos, toques de apitos, calculo que por motivo da chegada dos pescadores a terra. Na placa havia seis aviões: 2 Caravelle, que o Ten. Boiro identificou pertencerem à Companhia AIR AFRIQUE e 4 aviões bi-motores, de asa alta, tipo Fokker F-27. O Alf. Justo quis ir destruí-los, mas não autorizei. Entretanto chegou uma viatura pesada que me pareceu uma auto-metralhadora; nos hangares que estavam abertos e iluminados não havia aviões" (do relatório do Capitão Morais).


Desde as duas da manhã que o comandante do T. G. tinha conhecimento da deserção do ten. Januário (msg. enviada pelo Grupo SIERRA — "O filho da puta do tenente fugiu com 20 dos meus homens. Traiu-me miseravelmente"). Embarcada a equipa VICTOR, a ORION levantou ferro, seguindo a toda a força para junto da BOMBARDA HIDRA. Era necessário desembarcar a equipa PAPA, destinada a cortar o istmo que separa Conakry l de Conakry II.


O CTG 2 passou em bote de borracha para a BOMBARDA a fim de, face à evolução da situação, accionar a equipa PAPA.


Às 02.30 recebera comunicação da HIDRA de que a equipa SIERRA não tinha encontrado os MIG. Pelas 03.00 algumas notícias colhidas junto de prisioneiros em terra afirmavam que os MIG tinham sido enviados para Labé, no dia 20, devido a uma remodelação ministerial no Governo de Conakry! Havia ainda a hipótese de se conseguir capturar Sekou Touré. Às 04.00, CGT 2 teve conhecimentos que o Presidente não fora visto nem na Villa Silly nem no Palácio Presidencial. Mandou suster o desembarque da equipa PAPA, quando aBOMBARDA já manobrava para tomar posição, e fez o ponto.


"Pelas 04.30, a situação apresentava-se da seguinte maneira:


— Objectivos PAIGC atingidos em boa parte.

— Domínio no mar, assegurado.
— Domínio em terra, ainda em disputa, mas com forte possibilidade de sucesso.
— Presidente Sekou Touré — não encontrado.
— Domínio no ar — não assegurado.

"Este factor pesou fundamentalmente no meu julgamento pois, dali em diante, a minha única preocupação foi deixar o menor número de provas documentais da nossa actividade. A possibilidade de afundamento dum navio nas águas de Conakry era de evitar a todo o custo. Mandei, pois, reembarcar todo o pessoal que compareceu nos locais para isso designados em caso de insucesso".(Do relatório de CTG 27.2).


A LFG HIDRA, que reembarcara a equipa SIERRA foi mandada pairar na posição uma milha a sul do farol de Boulbinet. Às 04.40, a LDG BOMBARDA iniciou a tarefa, pela equipa HOTEL e terminou-a às 05.30, deixando dois botes para o grupo ALFA, que foi recolhido pela ORION, onde já se encontrava novamente o CTG 2. Às 06.00 deu-se ordem à BOMBARDA e ORION para constituírem a T.U. 27.2.1., seguindo para sul da ilha de Kassa onde, às 07.10, meteu ao Rv-180° durante uma hora, em diversão.


Navegou depois independentemente, tendo às 13.35, recebido indicação para aguardar o resto da TG 27-2 em Orango.


O problema do reembarque na parte norte do T.O. Parâmetros mais delicados devido ao baixa-mar. Além disso, o Sol já iluminava perfeitamente o terreno e uma grande multidão, que vitoriava ruidosamente as equipas que actuaram em terra, aglomerava-se agora junto aos locais de reembarque.


MONTANTE colocou-se a 1.000 jardas de terra e, com o auxílio dos botes das LFG, foi reembarcado o pessoal, com excepção dos elementos do FNLG que quiseram continuar em terra. De terra, às 07.40, duma posição junto ao Palácio do Povo fizeram quatro disparos de morteiro de 82 sobre a MONTANTE, muito mal regulados. O navio e a DRAGÃO que se interpôs a fazer de escudo ao pessoal que reembarcava, calaram a boca de fogo com alguns tiros de intimidação. Às 08.05, a DRAGÃO encostou à ORION para receber material de transfusão de sangue, pois o 1° tenente MR Hélder Romero necessitava dele para o tratamento dos feridos e transbordou o sargento aviador Lobato, que se encontrava prisioneiro há 7 anos!


Desde o romper do dia que a força naval se achava no mais alto grau de prontidão anti-aérea. Quando, pelas 09.00, se deu por terminado o reembarque, já havia ordem para formar em losango, dispositivo que foi executado às 10.30, ao rumo base 240.°

O regresso fez-se sem incidentes, fundeando-se em Soga em 231625.

Terminada a operação, que custou ao inimigo mais de 500 baixas, desfez-se a TG 27.2.
blogueforanada.blogspot.pt

Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969) 

Excertos do Diário de um Tuga. Texto de Luís Graça

Contuboel. 15 de Julho de 1969 (revisto)

1. Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa (1) ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há dois meses e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).

© Humberto Reis (2005).

Os alegres dias de Contuboel (2 de Junho a 18 de Julho de 1969). Legenda do fotógrafo: "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o Moreira, o Rocha, condutor, o Rodrigues, já falecido [ todos eles, quadros metropolitanos da CCAÇ 12], e o djubi, manobrador da canoa, de pé".

Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau (2). Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros (3).

Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro (4). Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...


















Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência.

Vou ter saudades das histórias que a velhice de Contuboel nos contava. Madina do Boé, Fiofioli… Nós, osperiquitos, ouvimos com respeito a velhice e é, com natural apreensão, que nos preparamos para montar a tenda algures no chão fula. Dizem-me que marchamos, dentro de dias, para Bambadinca. Não gostei do sítio quando por lá passei, há um mês e meio. Ainda cheirava a pólvora... Em contrapartida, o aquartelamento é novo, oferecendo boas condições de alojamento, pelo menos para os oficiais e sargentos.

2. Março de 1969. Durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março, o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole é passado a pente fino: 1300 homens, além da aviação e da artilharia, estão empenhados na grande operação de limpeza a que foi posto o nome de código de Lança Afiada (não tenho ideia se a marinha esteve envolvida, e em especial o corpo de fuzileiros, cortando a possível retirada do In pelo Rio Corubal).

Estava-se então em plena época seca: o capinzal já não resiste às granadas incendiárias e as clareiras, abertas pelas queimadas na savana arbustiva, deixam entrever a imensa mole de vegetação tropical para além da qual fica tabanca di bandido, em florestas sombrias onde coabitam dginé e najoré, e que na algaraviada dos meus nharros quer dizer irãs, diabos, diabretes, duendes e toda a espécie de espíritos (bons e maus)…

O objectivo da operação é, como sempre, aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo... (À força, se a dita população não quiser voltar a viver sob a nossa bandeira e a nossa soberania).

A ideia de manobra é simples: da Ponta do Inglês (antigo aquartelamento das nossas tropas, abandonado em finais de 1968, se não me engano) à mata do Fiofioli, da estrada Mansambo-Xitole à Ponta Luís Dias (outrora um florescente entreposto comercial à beira rio) um enorme cilindro compressor irá empurrando tudo o que for balanta, beafada e bicho do mato para o Rio Corubal onde os esperam os pássaros de fogo dos tugas, os hipopótamos, os jacarés, as formigas carnívoras, os jagudis...

Oficialmente o dispositivo do IN na área compreendida entre a linha geral Xime-Xitole e a margem direita do Rio Gorubal foi desarticulado — um eufemismo, de resto, muito utilizado nos nossos relatórios militares para justificar resultados mais morais e psicológicos do que materiais em operações desta envergadura, e que quando muito só se realizam de dois em dois anos (Na verdade, não é todos os dias que nos podemos dar ao luxo de mobilizar o equivalente a um agrupamento, ou seja, três batalhões).

Na prática, os roncos não foram espectaculares: para além de algumas toneladas de arroz destruídas e de umas tantas casas de mato ou cubatas queimadas, enfim, para além de alguns contactos com o IN, sempre à distância, “o que contou sobretudo foi termos penetrado em santuários do IN tão míticos como a mata doFiofioli” (diz-me um furriel da velhice com quem gosto de conversar do passado recente). Fico a saber que o Fiofioli é um sítio tão temível para os tugas da Zona Leste como, noutros sectores, o Boé, o Cantanhez, o Morès, o Choquemone, o Caresse ou a ilha do Como.

- Afinal, nem hospital nem enfermeiras cubanas nem sequer o fantasma do Nino vestido à cowboy - comentava, entre irónico e desapontado, à mesa da lerpa, um outro furriel da velhice de Contuboel - Foi só por dizer que estivemos na mata do Fiofioli… Nem sequer fiz o gosto ao dedo!

O que eu posso concluir destas conversas entre periquitos e velhinhos, no meio de rodadas de cerveja e de uísque, é que depois do inferno de Madina do Boé, a Lança Afiada teve um certo sabor a vitória para as NT.

0 que se passara, entretanto, é que, na impossibilidade de resistir abertamente à contra-penetração das NT, a guerrilha ensaiara algumas manobras de diversão pelo fogo, enquanto as populações sob o seu controlo, previamente alertadas, se metiam na arca de Noé (quiçá com toda a bicharada do mato, os porcos, as galinhas), cambando o Rio Corubal e pondo-se a salvo na outra margem... Em suma a velha táctica dum conhecido mestre escola chinês: “dispersar quando o inimigo ataca, reagrupar quando o inimigo retira”…

Um mês depois, e quando os tugas voltavam a dormir de cu para o ar, preparando-se para hibernar nos seus campos fortificados durante a estação das chuvas, os diabos negros da floresta desencadeavam uma série de acções que culminariam no ataque em força, inesperado e espectacular, a Bambadinca, a sede do comando do sector L1 até então inviolável...

Foi a 28 de Maio de 1969, à noite, estávamos nós a chegar a Bissau. Quando passámos por Bambadinca, oito dias depois, a caminho de Contuboel, não se falava de outra coisa… "Podíamos ter sido todos mortos ou apanhados à unha, tal era a bandalheira em que estava o quartel" - confidenciou-me o meu conterrâneo e amigo, o Agnelo, 1º cabo de transmissões da CCS... De facto, faziam-se quartos de sentinela... sem armas!

Ao que soube mais tarde, o comandante e o seu adjunto (5) apanharam uma porrada do Spínola e seguiram com guia de marcha para Bissau...
______

Notas (L.G. - 2005)

(1) Canção, romântica, então em voga, nos idos anos de 1965/66, do francês Hervé Villard (n. 1946). A letra era típica da época, delicodoce, inócua, pacífica, para consumo de adolescentes apaixonados, quando ainda se ouviam canções francesas românticas na nossa rádio e os copains e as copines da França do acordeão e do Charlles de Gaulle preparavam para incendiar Paris: "Nous n'irons plus jamais,/ Où tu m'as dit je t'aime,/ Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années, /Nous n'irons plus jamais, /Ce soir c'est plus la peine, /Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années; Capri, c'est fini, /Et dire que c'était la ville / De mon premier amour, /Capri, c'est fini, /Je ne crois pas /Que j'y retournerai un jour" ...

(2) Forma carinhosa ou reverente como era tratado o general Spínola pela NT e pela população local que convivia connosco.

(3) Termo algo depreciativo (tal como tugas, sinónimo de brancos de Portugal) com que tratávamos os africanos da Guiné. Não se pode dizer que o termo fosse explicitamente racista. Era uma expressão de caserna.

(4) Furriel miliciano Monteiro, da CART 2479 / CART 11, que seguiu para Pitche, a nordeste de Nova Lamego (ou Gabu), com os seus africanos (soube-o há dias), na mesma atura em que nós (CCAÇ 12) seguimos para Bambadinca. Estes africanos fizeram a recruta e a instrução de especialidade juntamente com os nossos. Na altura Contuboel funcionava co,mo um centro de instrução militar. Nunca mais o tornei a ver, ao Monteiro. Espero fazê-lo em breve. Graças à Net, foi ele que me localizou, embora fosse eu a procurá-lo. Um ciber-abraço, daqui, para o Renato Monteiro!

(5) BCAÇ 2852 (1968/70)

Guiné 63/74 - CXXXII: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2) 

Moeda de 1 escudos da Guiné. Comemorativa dos 500 anos de descoberta da Guiné, em 1446, por Nuno Tristão

© Transmontana, em Bafatá ? E uma passagem de avião, para virmos a casa, de férias ? E o famigerado Hotel da Cona Rachadaonde a gente ficava, de passagem, em Bissau ? Eu pelo menos fiquei uma vez ou duas, se não me engano... (Ou era outra pensão ainda mais reles ? Recordo-me que um dia rebentaram-me a mala e fanaram-me o uísque)... Tu tinhas os teus conhecimentos em Bissau...


Moeda de 10 escudos da Guiné. © Afonso Sousa (2005).



Como tens uma boa memória, pode ser que te lembres disso... Eu já nem me lembro sequer de quanto ganhávamos... Cerca de cinco notas de conto, não ? Os alferes, sete; os capitães, não faço ideia... E os nossos soldados africanos, que eram praças de 2ª ? Tenho ideia que ganhavam seiscentos pesos, mais outro tanto (25 pesos / dia) por serem desarranchados... Como eram islamizados, não podiam comer a comida do tuga, pelo que foram mais tarde autorizados a receber o subsídio de alimentação... Mandaram-me isso à cara, no Xime, quando morreu o Cunha e o restante pessoal da CART 2715... Os sacanas tiveram um momento de hesitação, antes de aceitarem ir comigo resgatar os corpos dos nossos camaradas mortos, à cabeça da coluna (vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970):


- Pessoal africano só ganha seiscentos pesos! - Que é como quem diz: vai lá tu, que os mortos são do vosso sangue, são do vosso chão, são da vossa terra, são tugas... Foi o único momento, em toda a minha comissão, em que vi os nossos soldados terem medo...


Moeda de 5 escudos da Guiné. © Afonso Sousa (2005).



De qualquer modo, o que eram 600 escudos guineenses (pesos) naquela época ? Apenas o suficiente para comprar, na loja do libanês ou do tuga, um saco de arroz importado, e para alimentar (mal) uma família extensa, reunida na sua morança(muitos deles, tinham pelo menos duas mulheres que trouxeram das suas terras para Bambadinca).



2. Resposta do (senhor engenheiro) Humberto Reis:


Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.


O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção.


Em Bissau, como normalmente ficava instalado na BA12 [Base Aérea nº 12] nos alojamentos dos pilotos, pois tinha lá malta minha conhecida de cá, não sei qual o preço das pensões, e do bifinho na Transmontanade Bafatá também já não me lembro.


Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola : 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos.


Não se riam, meus amigos, com a expressão dos frigoríficos "a petróleo" pois era assim mesmo que funcionavam, visto que o gerador eléctrico [de Bambadinca] só trabalhava à hora de almoço e depois durante a noite. Disto, da produção de frio/ar condicionado falo de cátedra pois é a minha vida profissional (eu costumo dizer que vivo do ar condicionado).


Aquele sistema de produção do frio a partir de uma fonte quente ainda hoje é utilizado, chama-se deabsorção, e utiliza como refrigerante a água, ao contrário dos sistemas mais vulgarizados que utilizam alguns gases, mais ou menos poluentes da camada de ozono. Posso dar-vos como exemplo alguns dos sistemas de produção do frio para o ar condicionado, que conheço pois acompanhei de perto: Estalagem da Srª das Neves, no nordeste transmontano, do Hospital de Matosinhos, dos edifícios do BCP-Millennium no Tagus Park em Oeiras, do Hospital de Mirandela, etc., utilizam sistemas destes.


Um abraço. Humberto Reis


3. Obrigado, Humberto, por me refrescares a memória. Já agora fica com este apontamento: trata-se de um interessante "Rol das despesas mensais de um soldado" que nos permite reconstituir, de certo modo, o quotidiano e o padrão de consumo de um soldado-tipo. Não tenho a certeza se a stituação se reportava à Guiné, Angola ou Moçambique. Para o caso, também não interessa muito. De qualquer modo diz respeito a 1973.


Encontrei esta informação numa nota de despesa, fotografada, que consta de um livro de que é primeiro autor o meu amigo e nosso contemporâneo de Contuboel, o Renato Monteiro, da CART 11, o homem da piroga no Geba:


Despesa do 3/1973:


Cerveja > 54 x 6$00 = 324$00

Cerveja > 24 x 4$00 = 92$00
Floid (sic) = 55$00
Pasta p/ dentes = 18$00
1 frasco de cola = 30$00
1 bloco de escrever = 15$00
1 lata de fruta = 11$00
1 garrafa de Porto = 55$00
Sabão = 7$00
Selos = 30$00
Envelopes = 8$00
Fotos = 44$00
Carne patoscada (sic) = 77$00
Vagaço (sic) = 14$00
1 lata de leite = 8$00
FIO = 750$00
Despesa total = 1538$00

1/4/1973

Assinatura ilegível

(1) Monteiro, R.; Farinha, L. - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: Círculo de Leitores / D. Quixote. 1990. 223.


4. Estes valores acima referidos são já reveladores da crise que, no 1º trimestre de 1973, afectava já a economia portuguesa bem como das pressões inflacionistas. Repare-se, em todo o caso, que numa despesa mensal de 788$00, pouco restava do pré do soldado do Ultramar, uma parte do qual era de resto depositado na Metrópole. Do total do consumo mensal (788$00), 52.8% ia para a cerveja! Havia dois tipos de garrafa: a de 0,6 litros (a chamada bazuca, na Guiné) e a de 0,33 l.


A moeda da República da Guiné Bissau. 5 pesos (1977) (Frente). © Afonso Sousa (2005).


Admitindo que esta era a despesa média da generalidade das nossas praças em África, o consumo de cerveja diária, per capita, seria então superior a um litro, ou seja, mais de 40 litros por mês: (24 x 0,33) + (54 x 0,6)=7,92 + 32,4= 40,32 litros. Ao fim de um ano, seria o equivalente a 460 litros...


Há ainda a acrescentar o consumo de outras bebidas alcoólicas (8.8%), como o Porto, o bagaço e o uísque (este último consumido, diaramente, sobretudo pelos oficiais e sargentos). As duas rubricas, somadas, perfazem um total de 60%, que seria quanto muitos soldados gastavam com a droga do quotidiano da guerra da Guiné, que era o álcool. A última coisa que podia faltar num aquartelamento era a cerveja, o vinho e outras bebibas alcoólicas. Também havia os vicidados da coca-cola...


Para os fumadores, haveria ainda que considerar uma despesa mensal de 50$00 a 100$00 (sabendo-se que um maço de tabaco, de tipo SG Filtro, custava 2$50, segundo a preciosa informação do Humberto Reis). Sem contar com despesas extras (uma escapadela a Bissau ou a Bafatá), deveria ainda considerar-se o patacãodestinado à lavadeira, embora muitos soldados poupassem neste item, lavando a sua própria roupa.


A moeda da República da Guiné Bissau. 5 pesos (1977) (Verso). © Afonso Sousa (2005).


De notar, por outro lado, o peso que o correio tinha nas despesas mensais do soldado: neste caso, cerca de 16% considerando itens de despesa com o correio o frasco de cola, o bloco de escrever, os selos, os envelopes e as fotos (total: 127$00). Cerca de 10% da despesa tem a ver com a higiene pessoal (80$00) e o restante (cerca de 12.2%) com a alimentação (96$00). O petisco era também uma forma de reforçar a solidariedade entre camaradas e ajudar a passar os dias da comissão que nunca mais chegava ao fim...


O pré do soldado (que em 1973 não deveria muito diferente de 1969/71: 900$00, mais o prémio de especialidade que não deveria ultrapassar os 225$00) não chegaria, nalguns meses, para cobrir as despesas essenciais. Daí ele ter que recorrer ao fiado, ou seja, à boa vontade do sargento da companhia que explorava o bar e cantina (neste caso o fiado é o equivalente à despesa de um mês: 750$00!). Em último caso, mandava uma aerograma para a família lhe enviar, no correio mais próximo, mais uma ou duas notas de cem.


blogueforanada.blogspot.pt

1 comentário:

Garrochinho disse...

obrigado pela informação que servirá aos interessados e apaixonados pela história dos quadradinhos