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terça-feira, 27 de maio de 2014

HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL 51ª PARTE - O TREINO PSICOLÓGICO - HISTÓRIA DE UM CARTEIRO À MODA ANTIGA - NÓS E TROPA - O VERA CRUZ QUE NOS LEVOU PARA ANGOLA - HORA DO RANCHO

O TREINO PSICOLÓGICO

Ali em pé, ao balcão daquele restaurante que eu havia escolhido para comer uma sandes acompanhada dum refrigerante, pois o excesso de trabalho obrigava-me a uma refeição rápida, acabei por me demorar muito mais do que o inicialmente previsto. Despertou-me a atenção uma conversa do indivíduo na faixa etária dos sessenta que se encontrava mesmo ao meu lado e que relatava, com a boca cheia, a forma como tinha decorrido a cerimónia do Domingo anterior a que ele havia ido assistir com a sua esposa : o juramento de bandeira dum seu afilhado, agora paraquedista. A determinada altura contava ele ao seu companheiro algumas peripécias impressionantes relacionadas com a dura instrução a que o seu afilhado agora boina verde havia sido sujeito. Repentinamente, levou um guardanapo de papel à boca, num esforço visível e incontrolado para conter o vómito iminente. Relatava naquele momento como terminavam os testes de apuramento daquela futura tropa de elite. Cada militar, para ganhar a boina, tinha de matar uma galinha à dentada !!!



Paraquedistas, Comandos, Operações Especiais, Fuzileiros e Rangers eram tropas alta e duramente preparadas para a guerrilha que haviam de enfrentar em terras de África.
Lembro-me dum amigo da adolescência a quem o cabelo caíu em peladas dispersas e o seu rosto ficou coberto de crostas em virtude da enorme pressão psicológica durante o decorrer dos treinos de especialização. Certa noite foi abruptamente acordado por volta das três horas, conduzido pelo cabo-de-dia ao Comando e aí foi-lhe friamente anunciada a morte do seu pai. O “choque psicológico” estava dado ! Alguns minutos mais tarde o oficial e o cabo de serviço transmitiram-lhe a contra-informação. Era mentira ! Aquela encenação fazia parte dos planos de treino. Os treinos psicolígicos não se ficavam por aqui, mas eram, sem dúvida, os mais marcantes para a preparação das forças de elite. Caminhar pelos esgotos, submersos até ao pescoço com todo aquele líquido imundo e a merda a tocar-lhes na boca, tudo isso não passava duma brincadeira se comparados com os outros treinos que me repugnam descrever. Visavam transformar um pacato, quiçá mimado e sempre perfumado rapaz, numa máquina de guerra apta a enfrentar todas as dificuldades com as quais decerto haveriam de se confrontar no cenário de guerra.
Partiam da Metrópole convencidos da sua intensa e apurada preparação física e psicológica, desejosos de entrar em combate. Contudo, por vezes, quando subiam e actuavam no real palco da guerra, esqueciam ou descuravam aquilo que com tanta insistência lhes havia sido ensinado. Durante a instrução os monitores não se cansavam de repetir que “suor derramado na instrução era sangue poupado em combate” !
Do soldado Comando Belmiro nunca mais tive notícias desde que veio evacuado para a Metrópole. Durante uma operação foi transportado, juntamente com outros camaradas, num helicóptero Puma até ao local onde era suposto irem defrontar-se com o inimigo.
Estes bem preparados “Rambos” manifestavam inquietação : uns benziam-se, outros rezavam, esforçando-se por abafarem e travarem os movimentos quase incontroláveis do bater acelerado dos maxilares. – Ânimo, meus bravos ! Vocês são os melhores ! – assim gritava, superando o ruído envolvente, um superior, enquanto os ia empurrando da altura a que se encontrava aquela máquina voadora, a qual por ali pairava sobre a mata verde apenas durante alguns segundos. Depois afastava-se, veloz, desaparecendo dos seus campos de visão.
A dura experiência adquirida nos treinos traíu o soldado Belmiro na altura do salto. Trinchou a própria língua, ficando metade dela sepultada ou devorada pelas formigas naquele minúsculo pedaço da tão extensa terra angolana.

EXTRACTO DOS MEUS CONTOS: "HISTÓRIA DUM CARTEIRO À MODA ANTIGA DURANTE A GUERRA COLONIAL"

Este texto é uma súmula de histórias mais ou menos longas e que relatam uma parte da vida profissional do meu saudoso pai como Carteiro. Curiosamente, durante a minha especialização militar, estudei uma disciplina relacionada com esta actividade muito complexa (SPM-Serviço Postal Militar).
Após o 25 de Abril quem era interpelado na rua por um Carteiro retraía-se quase sempre em virtude do seu difícil reconhecimento. De cabelos grandes e despenteados, barba desgrenhada, calças de ganga e calçado de ténis sujos e rotos. Apenas o monte de cartas na mão nos permitia a sua identificação. Outrora o Carteiro tinha a obrigatoriedade de apresentar-se à sociedade tal como os restantes funcionários públicos, sobretudo fardados, ou seja : bonito por fora, não importando a desarrumação interior... Assim, o cabelo deveria estar bem aparado, a barba muito bem escanhoada, as unhas dos dedos das mãos curtas e limpas, os sapatos pretos muito bem engraxados, os metais do boné, lapela do casaco e botões areados até reluzirem e um sorriso sempre patente para oferecer aos “destinatários”.
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Lá vem o Carteiro ! Lá vem o Sr. Mário !
Ouvi-lo chegar agora
Já não tem o mesmo sabor
Nem dá p’ ra haver amizade

Chega lesto e vai embora
Sobre rodas e a motor
Perdeu de todo a vaidade
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Após muitos anos – nunca se sabia quantos – com a categoria de Carteiro de Reserva, pois enquanto nessa condição todo o tipo de serviço tinha de ser cumprido e o giro (zona de distribuição da correspondência) nunca era certo. Se quisesse progredir na carreira teria de submeter-se a um curso que o obrigava a muito trabalho e estudo para depois enfrentar um concurso e a consequente, embora nem sempre isenta, avaliação profissional. O meu pai lá foi promovido a Carteiro de 3ª, alguns anos mais tarde a 2ª, até atingir a categoria de 1ª, acabando reformado com uma que nem sequer chegou a exercer : a de Monitor.
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Farda/Fardo

Aquela farda envergando
E grande honra tendo nela
A vida-fardo carregando
E sempre achando-a tão bela !
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Foi um percurso muito duro, repleto de histórias às quais os mais novos não têm acesso e quando têm dificilmente compreendem e nem sequer acreditam.
O país estava embrenhado na Guerra Colonial e os mancebos eram recrutados por todo o lado, independentemente das suas capacidades psíquicas ou físicas.
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As relações sociais num aglomerado populacional predominantemente rural não eram, como ainda não o são, obviamente, iguais aquelas dos condomínios convencionais nas grandes cidades, nos quais mesmo que os prédios só possuam um elevador a servir dois ou três pisos, os condóminos quando se encontram a viajar nele apertados, pele contra pele, não se cumprimentam, ignorando-se entre si enquanto aquele caixote sobe ou desce, uns esforçando-se por olharem para o tecto, outros baloiçando as chaves do carro enquanto vão mirando a barguilha, outros, os “agarradinhos do celular”, enviando ou procurando mensagens e outros, até, aproveitando despudoradamente para coçarem os tomates. Na maior parte das vezes nem sequer manifestando uma cortesia, mesmo que hipócrita, de segurarem a porta quando o vizinho ou a vizinha vão a entrar ou a sair... Curiosamente podem encontrar-se algumas destas pessoas na missa dominical cumprimentando-se efusivamente, “saudando-se na paz do Senhor”, com muita fé (...)
O Carteiro, por demais carregado com tanta notícia de riso e choro, surgia cada vez mais perto em virtude das suas passadas sempre muito largas, enfrentando finalmente o primeiro aglomerado ruidoso e inquieto : os seus destinatários que diariamente ali, sensivelmente no mesmo horário, aguardavam notícias dos seus netos, filhos, maridos, pais, namorados ou simplesmente vizinhos e amigos. Aqueles aerogramas, cartas ou postais haviam sido escritos há pelo menos dois dias, as notícias que relatavam poderiam, entretanto, de alguma maneira, haver sido drasticamente alteradas. Mas não ! Quem se atreveria a pensar assim ? O ritual da abertura da correspondência era sempre o mesmo : rasgava-se apressadamente o aerograma ou a carta como se do seu interior se esperasse ver saltar milagrosamente, de braços bem abertos, o ente querido.




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Carteiro e Conselheiro

Quase todas as famílias portuguesas
Tinham no Carteiro um elo muito amigo
Que os ligava da Guiné até Timor

Trazia cartas / ”aeros” d’ incertezas
- O seu menino não corre qualquer perigo !
(Sorria sempre escondendo a sua dor...)
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Àquele Carteiro foram também levados para a guerra dois dos seus três filhos. Com o coração bem apertado pelas amarras da angústia, lá ia distribuindo as notícias, por vezes com a dificuldade dos atropelos das pequenas multidões ansiosas, mas mantendo sempre patente no seu rosto suado um sorriso autêntico enquanto da sua veia poética iam brotando simultaneamente palavras de ânimo, esperança, fé, embora educadamente fosse avançando sempre, porque ainda havia muita correspondência para distribuir e também desejoso estava ele de chegar a casa e saber dos seus...



contosdaguerracolonial.blogspot.pt






NÓS e TROPA

A importância do correio na vida dos militares, estacionados principalmente em áreas operacionais isoladas. 

Prezados Amigos Camaradas e Leitores

Depois de me ausentar deste fio por alguns meses, estou de volta com um tema que naturalmente quem esteve em áreas isoladas se deve lembrar bem: Como o correio influenciava nosso estado emocional.

Aquela noite o soldado Cardoso não tinha dormido bem. Sonhou com sua família e teve um pesadelo.
De manhã, estava ansioso que chegasse o avião do correio para saber noticias de seus parentes em Portugal. 
Quando abriu uma carta remetida pelo seu pai, confirmou o mau pressentimento que tivera essa noite. A notícia do falecimento de seu irmão Pedro, vitima de um acidente de automóvel, deixou-o arrasado.
Embora tivesse recebido palavras de conforto de seus companheiros de secção, grupo de combate e graduados, sua tristeza manteve-se por uns dias. 

Já para o cabo Ricardo, as noticias foram maravilhosas.
Sua esposa informava-o do nascimento da filha.
Quando foi mobilizado, havia deixado a Matilde grávida de 5 meses. Na carta, vinha uma fotografia do bebé, que correu de mão em mão, entre os camaradas da secção.





O soldado Oliveira, estranhou quando recebeu de sua noiva um envelope um pouco maior que os habituais. Quando abriu, verificou que juntamente com a carta vinha uma madeixa de cabelo e um tufo de pelos que pareciam pubianos.

Esse dia, eu também fui contemplado com uma carta da Márcia, minha madrinha de guerra, residente em Nova Lisboa e que, além de carinhosas palavras de conforto, também informava que como estávamos próximos do Natal, me enviaria uma caixa com alguns acepipes, próprios dessa quadra festiva.
Fiquei radiante com as noticias.

Também havia os que nada recebiam, (maioria) ficavam tristes e pensativos, vendo seus companheiros com expressões de alegria, devorando com o olhar, as palavras escritas em cartas comuns ou aerogramas. Fixavam-se demoradamente nas fotografias recebidas e sorridentes mostravam aos seus camaradas.

Alguns soldados eram analfabetos e pediam aos amigos de confiança e companheiros do grupo de combate para lhes lerem e escreverem as cartas.

O recebimento de cartas era como um bálsamo para àqueles homens angustiados que esperavam ansiosos as noticias de seus familiares e amigos.
Essa euforia tinha reflexos no alivio momentâneo da tensão que ali se vivia, em consequência do perigo ao qual estavamos expostos diariamente.





Quando a avioneta que trazia o correio, geralmente duas vezes por semana, se aproximava, quase todos corriam para a pista, ansiosos por serem contemplados com alguma noticia daqueles que a milhares de quilómetros lhes era tão queridos.
Esse pequeno avião também trazia ás vezes, no malote, caixas com fotografias que eu lhe havia tirado e cujos rolos dos negativos tinham ido para Luanda para serem reveladas.
No correio seguinte, algumas dessas fotos, naturalmente seguiriam para os familiares, em Portugal, confirmarem que eles estavam bem.

Estas e outras reações e cenas incomuns, relacionadas com a entrega de correspondência, foram por mim presenciadas, várias vezes, quando estava de sargento de dia a companhia e assistia a distribuição do correio, feita pelo cabo escriturário.

Aquela abraço

Raul Machinho

Nas fotografias: Eu junto da avioneta que transportava o correio.
Raul anexou a seguinte imagem :
  • Avião correio.jpg
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A Verdade Contada Por Quem Andou Lá - Norte De Angola

Boa noite a todos os que através deste meio proporcionam lembranças de tempos que já lá vão!... 
Era bom que o fizessem com VERDADE e que não comentassem por comentar coisas que não correspondem à verdade. 
Como é a primeira vez que escrevo aqui, não li todos os comentários já existentes, mas bastou ler dois ou três para verificar deturpação dos factos narrados !!! 
É um grande prazer falar embora de forma virtual, com camaradas que por ali andaram e sofreram, apesar que tal como eu, agora até temos saudades!... 
Li num comentário que como tropa da Metrópole, andou pelos Dembos. Pango Aluquem e Lifune,Tari,Santa Eulália,Onzo, Sande etc., e nunca por ali viu Companhias de Militares Angolanos...Lamento ter que desmentir tal afirmação!. Eu próprio Mario Braz Pais de Aguiar, ex-1º.Cabo nº. 469/67, apontador da MG-42. Assentei praça no dia 22 de Janeiro de 1967 no RISB (RI22) Sá da Bandeira. Após a recruta fui para Nova Lisboa RI21 onde tirei a especialidade AAPM (Apontador de Armas Pesadas e Metralhadoras). Fui promovido a 1º. Cabo na altura em que a Companhia de Caçadores 1204 então formada no RI21, seguia para Cabo Ledo onde estivemos 15 dias em Instrução Operacional. Dali seguimos direitinhos para Taria (Sede da C.Caç.1204-Comandada pelo Capitão José Rosado Castela Rio). Eu pertencia ao 4º. Pelotão do Alferes Brito, furrieis Gonçalves, Cid, etc... 
Estive 6 meses no tari, 3 meses no Sande e 3 meses no Onzo. No dia 3 de Janeiro de 1968 a caminho das Três Marias onde iamos abastecer o Pelotão Independente (também de Nova Lisboa), fomos emboscados e atacados durante 2 horas. Rebentou uma mina comandada que se destinava ao carro onde eu ia com a MG-42. Não morri porque não era o meu dia. 




Do Tari fomos para Pango Aluquem onde estivemos até terminar o serviço militar obrigatório. Eu próprio enquadrado no meu Pelotão, estivemos em todas as Fazendas de Café que eram protegidas por nós e estive 3 meses no Gombe-Iá-Muquiama. Atenção?. Eu estive lá e mais, para quem tem dúvidas: Sendo uma Companhia formada em Angola RI21-Nova Lisboa, como é lógico, a maior parte das praças era de côr. Basta dizer que no meu pelotão eu era o único Cabo Branco!. Porém, eramos todos irmãos e amigos. Tenho saudades deles, pois nunca mais os vi. 
Quem ler este comentário e que tenha andado por lá ou saiba quem andou, nos anos 1979/1969, por favor contactem-me. Será grande alegria. E mais, a alegria ainda seria maior se eu descobrisse algum Angolano que andou onde eu andei "lado a lado". 
Alguém se lembra do Belo?,do Farinha?,do Gonçalves?,do Brito? do Seixas?,do Vilela?, do Joaquim Almeida?,do Vieira?,do Florindo Ferreira Pesqueira (de Valongo), do Arménio Ferreira?, do Capitão Castela Rio???. Estes são alguns nomes e de todos estes apenas estive com um 40 anos depois em Tavira, sim o Furriel José Belo! 
Como é do conhecimento geral, nas ex-colónias ((consideradas Portugal), ao atingirmos a idade militar eramos recenseados e recrutados tal como na Metrópole. Eu encontrava-me lá desde os meus 17 anos de idade. 
Tenho algumas fotos dos tempos de tropa, "não muitas". Estava a esquecer-me. Vi um soldado do meu pelotão em Ponta Delgada-Açores, há uns anos, andava ele embarcado num barco de pesca da Madeira. António Olival Castro. Disse ter muitas fotos e que me mandava depois. Bebemos umas cervejas e até hoje nada mais soube dele!. Era da minha Secção e da mesma especialidade. 
Abraços a todos os que tiverem oportunidade de ler a minha escrita. Esta está a ser contada como se tivesse sido ontem que por ali andei. Apenas a memória já não me deixa recordar os nomes de todos, apenas sei que o soldado angolano Samuel morreu numa emboscada na picada do Sande/Tari. Não era do meu Pelotão, mas tenho a sua imagem na minha memória (excelente rapaz). Era do pelotão do Alferes Vilela que também ficou gravemente ferido e foi evacuado para Metrópole, assim como o soldado condutor Joaquim Almeida.Este evacuado para Luanda. Sobre este, sei que está em São Miguel-Açores (Ribeira Grande). Andei naquela Ilha 15 anos, até 2008 e possivelmente cruzei com ele, mas nunca falamos. Há poucos dias telefonou-me e também caíu na emboscada do meu pelotão. Era motorista de um dos jipões. 
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O “Vera Cruz” que nos levou para Angola



Faz hoje 40 anos (31/07/1971) que partimos a bordo deste navio rumo à guerra que já durava há 10 anos em Angola, tendo chegado a Luanda no dia 9 de Agosto.
Navio-almirante da marinha mercante portuguesa e da frota da Companhia Colonial de Navegação, o Vera Cruz foi entregue à CCN a 23 de fevereiro de 1952, no porto de Antuérpia (Bélgica), depois de concluir com êxito as provas de mar.
Além de ser o maior navio português, o Vera Cruz era também a maior unidade até então construída na Bélgica, tendo assistido à cerimónia de entrega do paquete as individualidades mais importantes daquele país.
Comandado por Hilário Filipe Marques, o Vera Cruz deixou Antuérpia a 28 de fevereiro, chegando a Lisboa a 2 de março de 1952.
Durante a estadia no Tejo, o Vera Cruz foi visitado pelas grandes figuras do regime, com destaque para o presidente da República, general Craveiro Lopes, presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar.
Com 21.765 toneladas de arqueação bruta, o Vera Cruz tinha 185,75 metros de comprimento fora-a-fora, 23 metros de boca (largura) e 15,80 metros de pontal.
O navio estava equipado com dois grupos de turbinas Parsons, desenvolvendo a potência de 25.500 cavalos-vapor e atingindo a velocidade máxima de 23 nós (42,6 quilómetros horários). A velocidade de cruzeiro era de 20 nós.
Cada um dos dois hélices de três pás do paquete pesava 16 toneladas e o Vera Cruz consumia 140 toneladas de fuel oil (óleo combustível) e 200 toneladas de água por cada dia de navegação.
Foram instalados a bordo os mais modernos aparelhos de ajuda à navegação, nomeadamente agulha giroscópica, piloto automático, odómetro eléctrico, radar com alcance de 30 milhas (55,5 quilómetros), radiogoniómetro, sonda e radiotelefone.
Vera Cruz dispunha de alojamento para 1.242 passageiros instalados em 289 camarotes, distribuídos em três classes: 148 passageiros em primeira classe, 250 em segunda, 844 na terceira classe.




Os interiores deste paquete eram considerados luxuosos para a época, incluindo numerosos salões, bares, cinemas, jardim de inverno, duas piscinas e amplos tombadilhos e solários, hospital com cinco enfermarias, salas para crianças e todas as facilidades consideradas necessárias para um grande transatlântico, incluindo ar condicionado.
Realizou a viagem inaugural partindo de Lisboa em 20 de março de 1952 e fez a primeira escala no porto do Rio de Janeiro em 29 de março.
O Vera Cruz tinha 350 tripulantes, dentre os quais 38 oficiais.
Muitos estão lembrados, ou já ouviram falar, da grandiosa despedida do Vera Cruz ao deixar Lisboa em viagem inaugural, rumo ao Brasil. Mas, poucos sabem como foi a recepção do outro lado do Oceano Atlântico.
A primeira escala do Vera Cruz ao Brasil deu-se no sábado, dia 29 de março de 1952, no Rio de Janeiro. Como a Imprensa havia noticiado com antecedência a chegada do famoso transatlântico, a cidade despertou cedo, milhares de pessoas aglomeraram-se na Praça Mauá e nas proximidades do porto.
Devido a forte nevoeiro, houve um atraso e somente após as 12 horas foi feita a atracação do tão esperado paquete português.
Brasileiros e portugueses, sob sol ardente, esbanjavam alegria, sem conter seu entusiasmo. Nunca um navio de qualquer nacionalidade foi tão bem recebido.
Com o deflagrar dos conflitos de libertação colonial em Angola e Moçambique, a partir de 1960, o Estado português viu-se na obrigação de reforçar militarmente as suas colónias na tentativa de conter e eliminar os focos de resistência à ordem estabelecida.
Assim, no decorrer de 1961, várias unidades da marinha mercante de Portugal foram requisitadas pelo governo para servirem como transporte de tropas ou como navios de carga de material bélico.
Vera Cruz não escapou à nova realidade e, ao retornar a Lisboa de sua viagem, a que seria na verdade a última, na Rota de Ouro e Prata (efectuada em março e abril daquele ano), o transatlântico foi rapidamente adaptado para as funções de navio-transporte e posto sobre o controle operacional da Marinha de Guerra, sempre, porém, com as cores da CCN.
Seguiu-se a partir de então um longo período onde alternaram-se viagens sob o comando naval e viagens puramente comerciais, a maioria destas realizadas entre Lisboa e Lobito/Luanda (Angola).



Esta fase durou até 1971. Em janeiro do ano seguinte, o transatlântico, após realizar uma viagem como transporte de tropas, foi ancorado no Rio Tejo, aguardando-se a decisão sobre o futuro.
Tal decisão só foi tomada um ano mais tarde e ela marcaria o fim do transatlântico. Transcorridos apenas 20 anos de sua entrada em serviço, sendo portanto relativamente novo e ainda em condições de serviço, o Vera Cruz foi vendido para desmonte e sucata a uma empresa especializada de Taiwan.
Em 4 de março de 1973 largou pela última vez as amararas do cais de Lisboa com destino a Formosa, desaparecendo assim dos oceanos, mas não de nossa memória, que lhe guarda recordação perene.
Fonte: Jornalista José Carlos Silvares, do jornal A Tribuna, Santos, Brasil.
cc3413.wordpress.com

ERA TEMPO DE GUERRA

O RANCHO NA GUERRA COLONIAL

Albano Mendes de Matos



Hora do rancho na guerra colonial.


O dia findava, estremecido nos horizontes. Estava na hora do rancho. Sargentos e soldados chegaram-se às cozinhas rodadas, situadas junto de um escarpado, entre a serração de madeiras e uma casa velha, com marmitas e copos de cantil nas mãos. Uns riam, outros ruminavam asneiras, enquanto outros, silenciosos, olhos no chão, pareciam estar muito longe daquele lugar. Um mundo de reacções animais e de comportamentos humanos, próprios para universo de pesquisa social e psicológica, laboratório de análises individuais e colectivas, para estudo de procedimentos recalcados, lutas intimistas e introvertidas, correntes de consciência desordenadas, projecções naturais demasiado extrovertidas, desequilíbrios orgânicos e funcionais, estados de pré-loucura, inventados ou reais.
Um auxiliar de cozinheiro lançava um quarto de casqueiro numa parte da marmita, outro, junto dos pipos, a tresandar e estearina, vazava, por medida, uns decilitros de vinho nos copos de cantil. Os caços, medidas certas, de uma só vez, saltavam nas bocarras dos caldeirões e levavam o rancho escaldante às marmitas, mal lavadas, porque em guerra não se limpam latas e o sarro ajuda a conservá-las. Os vapores subindo e esmorecendo nos ares. O capitão dos serviços, o primeiro-sargento e o furriel vagomestre dirigindo, fiscalizando e mantendo a disciplina. O rancho dos oficiais era levado, em terrinas, para uma sala, onde comiam, à ordem do comandante, numa mesa, em pratos das cantinas da carga ou nas marmitas.
Mediante algumas críticas, o tenente-coronel comandante não se cansava de falar aos soldados sobre a alimentação que, para ele, era uma das principais preocupações, a par da defesa e da segurança. Terminava sempre as argumentações dizendo que, na hora das refeições, muitas casas portuguesas, na Metrópole, não sequer tinham comida comparada com o rancho. Os soldados pensavam e não reclamavam.
Espalhados pelas pedras, pelos troncos, pelas escadas e pelos muros, os militares iam tragando o rancho, nas pressas da fome. Grão-de-bico, arroz e carne de porco salgada, tirada de barricas de madeira. Mais ou menos carne, consoante a sorte ou o azar. Febras, entremeados, gorduras, focinhos, orelhas, toucinhos e couratos por barbear. Uma massa forte e espessa, onde as pequenas colheres de bolso se mantinham na vertical, abundante e bem confeccionada, dizia o relatório do oficial responsável. O vinho, apanhado no copo meia-lua do cantil, em quantidades exíguas, para a maioria dos homens habituados à beberricagem, era escorropichado, no sabor da parafina, chisca a chisca, com um pingo para saborear no final. Corria o boato que não se devia beber, porque lhe deitavam uma mistela que tirava o tesão, para diminuírem as fogosidades.
- Este não sabia fazer a barba, ou não tinha gilette! - gracejou um soldado, atirando fora um naco de toucinho, com as cerdas em riste, que um cão lesto abocanhou.
- Há dois dias que não me passa comida de panela pelas goelas; com cabelos ou não, sabe-me bem! - disse outro, tragando sofregamente o quinhão.
- Lateiro é o que tu és! Muita larica tu deves ter passado, lá nas berças! - respondeu-lhe o camarada do lado.
- Enfarda que é a Pátria que paga! Ela trata-te bem! - comentou outro, acrescentando - E para grande fome não há ruim pão! Dizem na minha terra.
- Se lerpares, que é o que temos mais certo, vais de pança cheia! - gracejou um soldado, que ia mastigando os grãos e deitando fora a massa.
Um militar, já veterano em Úcua, de rosto muito tostado, cheirando a suores de semanas, chegou-se ao grupo e comentou:
- Estais aqui de passagem, com certeza, mas olhai que não é dos piores lugares; estamos ao pé da estrada e as coisas chegam-nos mais rápidas. Eles tratam-nos bem... De manhã, grão ou feijão com porco salgado ou massa ou arroz com atum e, à tarde, para variar, porco com feijão ou grão e atum com arroz ou massa... Por vezes, um pedaço de bacalhau salgado, ou liofilizado, ou lá o que seja, duro que nem cornos, que vem em latas bem soldadas, desfiado, com grão-de-bico.
- Olha este a querer dar música! – ripostou um soldado.
- A vinhola é que é uma pinguita, não dá para um homem lavar os dentes! - queixou-se um corpanzudo artilheiro.
- Mete-te muito nele, que ficas sem tusa! - gracejou o veterano em Úcua.
- Só faltava mais essa! Estás a brincar! - disse o artilheiro.
- Diz-se para aí que os tipos metem-lhe uma mistela, para um gajo não ter comichões! - respondeu o veterano.
- Porra! Lá vai!… - exclamou um soldado que escutava, atirando fora a ração de vinho.
- Acredito! Eles são capazes de tudo, até de nos capar! – gracejou o artilheiro.
- Apalpar, já nos apalparam algumas vezes, que é a rotina da tropa, nos quartéis; agora, levámos um grande apalpão, pontapeados para o fundo dos porões e para os cornos da guerra - comentou o veterano, olhando em volta.
- Alguns cobres para a Cuca, uma farda, uma espingarda e porco com cerdas de sapateiro, não está mal, não senhor... Tudo pela Pátria, que está em perigo, e pelas nossas famílias, que estão espalhadas por Angola, muitas em situações de dor, vagueando nas raias do medo - acrescentou um cabo, entre o humorístico e o sério.

ÚCUA, Angola, 27 de Julho de 1961.

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