A musiquinha do Seguro
O Congresso do PS, realizado no último fim de semana, em Santa Maria da Feira, foi uma notável peça de ocultação da realidade que merece ser analisada na perspetiva da encenação meticulosamente preparada para destacar o “líder”. Mais do que a uma estratégia de ocultação, assistimos à tentativa de obliteração do passado recente, estratégia que é, aliás, habitual na prática do PS.
Compreende-se a necessidade de, perante a fraca liderança de António José Seguro, acossada internamente por adversários de maior peso, ensaiar a projeção de uma liderança que a narrativa mediática (e o país) não reconhece.
No reino de D. Sebastiões em que se transforma, ciclicamente, o partido de Mário Soares (quem não se lembra de António Vitorino?) e, sem que apareça o nevoeiro que se liberta da lenda, é imperioso fazer com que ele apareça, nem que para isso seja necessário utilizar vulgares cortinas de fumos como as que se utilizam nos concertos de Tony Carreira quando se cantam musiquinhas de fazer chorar amantes sensíveis.
A verdade, porém, é que, se o nevoeiro, fingido ou não, destaca o líder num fundo neutro, também oculta tudo o que está por trás. As cortinas de nevoeiro, no caso do congresso do PS, assumem as mais variadas formas, desde a discursividade do líder em construção e o tom inflamado usado para destacar uma união forçada e interesseira, com utilização recorrente de frases feitas que pouco dizem e nada esclarecem sobre as propostas do PS, à bandeira nacional que ondula incessantemente no fundo do palco onde se encena o nevoeiro sebastianista. O pormenor mais interessante, porém, por ser o que mais remete para um universo de fingimento, ou melhor, para um universo cinematográfico, em tons épicos e cor-de-rosa, é o da música que serviu de fundo a cada entrada do líder.
Seguro entrava na sala, e lá soava a música, injetada no áudio das televisões com tal nível sonoro que era difícil entender o que debitavam os repórteres. Seguro subia ao palco, e a música subia de intensidade. Tozé acabava o discurso e, com gestos ensaiados no media training, acenava, ao som da musiquinha, às massas congressuais que o adoravam, por nele verem a possibilidade, uns com mais convicção do que outros, do regresso ao poder.
O tema incidental do congresso socialista evoca as bandas sonoras dos filmes épicos, em que o herói surge em cena para salvar o que parece perdido. Todo o cenário, com a música a pontuar, faz lembrar os cenários gigantescos utilizados nos velhos westerns, cenários que reproduziam as enormes pradarias do oeste americano, onde Jonh Wayne, o herói tranquilo, cavalgava sob tranquilizantes céus azuis e umas quantas nuvens que apenas deixavam adivinhar a suave brisa capaz de fazer ondular bandeiras como a que esvoaçava na lateral do palco de Santa Maria da Feira. No fim, o cowboy, claro, levava para casa, na garupa do seu garboso cavalo, a cobiçada garota e tudo acabava bem. Mas isso é só nos filmes…
A política transformada em mero espetáculo é um triste espetáculo de se ver. O Congresso do PS deste fim de semana constitui um exercício de construção artificial de um líder que não o é, de um líder em que o partido não confia, mas que é o que está mais à mão de momento. Pode até ser primeiro-ministro, com ou sem maioria absoluta, com ou sem coligações, mas líder não será. Não o será porque pratica a obliteração do passado, não assume as responsabilidades partidárias pelo que está feito e recusa mudar de rumo, mesmo que insista que quer um “novo rumo”. Mas que rumo será esse, quando sente a necessidade de escrever à troica a garantir que continuará a fazer o caminho ditado no memorando?
Seguro parece procurar a quadratura do círculo, mas todos sentem que está perdido em equações impossíveis.
Outra linha interessante que merece análise é a da reeleição do secretário-geral por mais de 90 por cento dos votos. Interessante porque ninguém se lembrou de utilizar a recorrente argumentação que é usada para atacar o PCP por as eleições dos seus secretários-gerais serem, normalmente, feitas com percentagens semelhantes. No caso do PCP, tais resultados são sempre, para os “comentadores”, votações “norte-coreanas”, representam um “unanimismo” que é sinal de falta de democracia, são resultado de métodos “estalinistas”… No PS, pelo contrário, é tudo normal. Mesmo que, dois anos antes, Sócrates tenha sido reeleito com percentagens semelhantes…
O problema é que já estão todos a prepararem-se para se atirarem ao pote. Outra vez…
Praça do Bocage
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