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segunda-feira, 29 de abril de 2013

"CARTA ABERTA AO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA" 

por Tiago Antunes

Sr. Presidente da República,

Antes de mais, desculpe vir incomodar. Eu sei que trabalha muito, 10 ou 12 horas por dia, e não pretendo maçar mais. Mas é que o assunto que me traz é mesmo muito sério e não pode esperar.

Acabo de ouvir na televisão o Primeiro-Ministro – que foi empossado por si e relativamente ao qual o Sr. Presidente ainda ontem reiterou que “dispõe de condições para cumprir o mandato democrático em que foi investido” (mandato DEMOCRÁTICO, saliento) – atacar e ameaçar um outro órgão de soberania, que ainda para mais é um Tribunal, por natureza independente.

O Sr. Presidente, com a sua longa experiência em cargos políticos – que, como tanto gosta de frisar, nenhuma outra pessoa em Portugal tem… –, saberá melhor que ninguém que os termos em que o Primeiro-Ministro hoje se referiu ao Tribunal Constitucional não são aceitáveis num Estado de Direito Democrático (como é o nosso, nos termos do artigo 2.º da Constituição).

Saberá que, entre nós, vigora o princípio da separação de poderes (artigo 111.º da Constituição); saberá que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei” (artigo 203.º da Constituição); e saberá, por fim, que “os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões” (artigo 216.º, n.º 2 da Constituição).

Sabendo tudo isto, certamente não poderá achar normal que um Primeiro-Ministro, ainda que prometendo a contragosto respeitar a decisão do Tribunal Constitucional, o venha erigir em inimigo público n.º 1, imputando-lhe a criação de graves problemas para os Portugueses, acusando-o de prejudicar a credibilidade externa do nosso país, culpabilizando-o pelo descalabro da execução orçamental, responsabilizando-o pelo potencial falhanço de negociações internacionais em curso, assacando-lhe culpas num eventual segundo resgate e chantageando-o quanto a decisões futuras relativas aos cortes que se avizinham na educação, saúde, etc.

Nada disto é tolerável. E tudo isto é revelador de uma imensa falta de maturidade democrática e de um assustador desconhecimento ou desprezo pelo papel dos Tribunais num Estado de Direito.

A Constituição, interpretada de forma autêntica pelo Tribunal Constitucional, é um pressuposto do exercício de funções governativas. Não pode nunca ser apresentada como um obstáculo à governação, um entrave ao cumprimento de metas ou um alibi para falhanços.

O Governo é um órgão constituído, no sentido em que exerce as suas funções sob a autoridade e no quadro delimitado pela Constituição. Se um concreto Governo não está preparado ou não é capaz de governar com a atual Constituição, então pura e simplesmente não pode ser Governo.

Fazer da Constituição o bode expiatório, ou do Tribunal Constitucional o alvo não é admissível numa democracia consolidada, em que cada órgão de soberania exerce as suas funções com respeito pelo espaço próprio de intervenção dos demais. E de nada vale invocar que há constitucionalistas com uma opinião diferente, porque Tribunal Constitucional só há um e é a ele – e só a ele – que compete proceder à fiscalização abstrata das leis. O Governo tem mais é que ter fair-play democrático, não pode amuar e vir para a televisão fazer queixinhas dos juízes.

Ou seja, o Governo tem de cumprir a Constituição, tal como interpretada pelo Tribunal Constitucional; não pode queixar-se dela ou dizer mal deste. Nem pode fazer birra, porque a decisão não foi conforme aos seus interesses. Acima de tudo, não pode abrir uma guerra com um Tribunal – que julga em função da Constituição e nada mais – nem pode atribuir-lhe as culpas dos seus sucessivos desvios colossais ou da agravada austeridade que ainda por aí venha.

Como muito bem disse o Presidente do Tribunal Constitucional, é a lei que tem de se conformar com a Constituição e não o oposto. Pelo que, se o Orçamento foi considerado inconstitucional, a culpa é de quem assim o fez, e não de quem, interpretando a Constituição, o julgou como tal.

Creio que no passado também o Sr. Presidente teve uns momentos de fraqueza, ao referir-se ao Tribunal de Contas como uma “força de bloqueio”. Mas enfim, já lá vão muitos anos e, como para ser mais honesto do que V. Exa. é preciso nascer duas vezes, creio que hoje honestamente reconhecerá que foi um deslize infeliz…

Creio, aliás, que concordará comigo que nunca se tinha visto em Portugal um tal ataque às instituições judiciais por parte de um Governo em funções.

Ora, é justamente na sua qualidade de “garante do regular funcionamento das instituições democráticas” (artigo 120.º da Constituição) que lhe dirijo esta missiva. É que esse regular funcionamento foi hoje posto em causa, com o Governo a vilipendiar outro órgão de soberania, a apontar um Tribunal como adversário político e a querer condicionar a sua independência.

Sendo que é exatamente para casos como estes – em que o Governo comprometa o regular funcionamento das instituições democráticas – que a Constituição lhe atribui a si, Sr. Presidente, o poder de demitir o Governo (artigo 195.º, n.º 2 da Constituição).

Recordo-lhe que, ao tomar posse, naquele fatídico dia 9 de Março de 2011, o Sr. Presidente jurou “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa” (artigo 127.º, n.º 3 da Constituição). Não lhe resta outra alternativa, pois, senão fazê-la cumprir, protegendo quem tem por missão interpretá-la (o Tribunal Constitucional) e afastando liminarmente quem tão grosseiramente a desrespeita (o Governo).

Acresce que a decisão que motivou tal amuo e falta de tino no Primeiro-Ministro foi uma decisão proferida a seu pedido, Sr. Presidente da República. Porque bem compreende que, numa democracia civilizada, não há qualquer drama no controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis, o Sr. Presidente solicitou ao Tribunal Constitucional que fiscalizasse a Lei do Orçamento. Não pode agora pactuar com quem, revelando mau-perder e incompreensão pelo estatuto da Constituição no exercício do poder político, não se conforma com a decisão que o Sr. Presidente despoletou.

É a autoridade da Lei Fundamental que está em causa. É a autoridade do órgão que a Constituição incumbiu de proceder à respetiva interpretação que está em causa. E é a sua própria autoridade, Sr. Presidente, enquanto requerente da fiscalização da constitucionalidade do Orçamento, que está em causa. Assim, e em face da comunicação que o Primeiro-Ministro dirigiu ao país, não lhe resta outra hipótese: obviamente demita-o.

Atenciosamente,

Tiago Antunes

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