Jjardim Botânico – Paul Klee
Há semanas assim!
No meio do caos instituído pelo (des)governo, as idas e vindas da troika, a Merkel a atribuir ao salário mínimo as culpas da brutal taxa de desemprego ( que é que ela quer? pouco a pouco chegar à escravatura? os custos de mão de obra reduzem-se ao combustível, a máquina humana tem que comer minimamente para poder continuar a produzir, uma chatice que não baixa o custo de mão de obra para zero), ouvir os dislates costumeiros dos comentadores e jornalistas e os elogios àquela que em vida foi uma besta humana. No meio deste caos, desta cacofonia, que nos invade os dias, contra o que temos que lutar, dois momentos luminosos.
Um em Sintra, onde 6ª feira, foi dado o primeiro passo para, finalmente, a obra de Bartolomeu Cid dos Santos, acompanhada pela sua preciosa colecção de artistas seus amigos, alunos e ex-alunos, um total de mais de 3600 obras de gravuras, desenhos, aguarelas e guaches, vir a ser instalada no Casino de Sintra. Uma iniciativa cultural da máxima relevância para Portugal.
A segunda, na 4ª feira, na livraria Assírio & Alvim no Chiado foi apresentado o livro de Manuel Gusmão, Pequeno Tratado das Figuras. Jorge Silva Melo leu poemas, Filomena Molder fez uma interessantíssima introdução à leitura do livro, um pequeno ensaio falado.
Manuel Gusmão é um dos grandes poetas portugueses. Estes novos poemas acrescentam mais a uma obra que é sempre mais. Andávamos à procura de um texto sobre poesia que desse o relevo devido à poesia do Manuel. Ao percorrer o blogue de António Cabrita, uma das minhas rotinas num blogue sempre a ler, encontrámos o que procurávamos. Uma citação de um magnífico livro de ensaios do poeta e ensaísta libanês Salah Stétié, Hermes Défenestré (José Corti, 1997). Era o que queria mas não conseguia dizer.
«Não se terá sem dúvida compreendido nada da poesia sem que se tenha dito, em alto e bom som, da poesia que ela é inimiga do sonho, que ela é, para dizer de outra maneira, o gato do cão do sonho e vice-versa. Sim, tão cão e gato como os outros, e enfrentam-se arreganhando o dente, tal e qual. O sonho é a tapada de caça do psicanalista e não é esse tipo de caça que o poeta persegue. O poeta, aquilo que ele quer forçar é a realidade, toda a realidade, nada mais do que a realidade e se ele tropeça no sonho, como nos calhaus do caminho, é porque o sonho, esse calhau, também ele faz parte da realidade.»
Simples, exacto, urgente. Tão exacto e rigoroso como é a poesia de Manuel Gusmão.
O livro estava ali, na minha estante, fui respigar mais duas citações que, no meu tem entender, continuam a dizer melhor do que alguma vez conseguiria dizer o que gostaria dizer sobre os poemas do Manuel Gusmão, que desde o primeiro verso do primeiro livro me deslumbram.
“A poesia são as palavras que respiram, que respiram e nos acompanham em todos os caminhos da vida. A vida esse dia mais curto da nossa respiração.”
” Não sou por uma vida resolvida na poesia. Sou por portas e janelas que se abram na poesia para que milhares de presenças revolvam a língua.”
Este novo livro de Manuel Gusmão tem, como o nome revela as figuras, as imagens das coisas no núcleo dos poemas. Ordena-se em cinco partes:
– O Caderno das Imagens – Do caderno; Da Linguagem das Árvores e do Vento
– Os Desenhos do Escultor ou Notas sobre o Trabalho da Inspiração – Um Poema em Memória de Jorge Vieira
– No Labirinto das Imagens – o que falta par serem um filme?
– Filmar o Vento
– A Pintura Corpo a Corpo – Os Corpos da Pintura de Pintores Pintados
Um maravilhamento que passa de página par página. Aqui vos deixo um poema


DA LINGUAGEM DAS ÁRVORES
E DO VENTO

1.
um mecanismo simples mas delicado. O sol
acende as árvores na luz e no equilíbrio dos mundos
e imprime o seu leve gesto na tua retina; em resposta
as árvores, com a sua sombra, desenham, na parede
branca, e sonham, nas tuas pálpebras descendo,

uma escrita oriental, levemente dançando.
2.
Esta arvore guarda a sua memória de árvore
a sombra interior das suas antepassadas, gravada
nos anéis do seu cerne c nas estrias do seu tronco,

distribuída ondulante pelos seus ramos, ao encontro
das tímidas tentativas das suas folhas, da antecipação
do rumor da lenha ardendo, como se

uma lenta abelha habitando-a, espalhasse
em volta como quem dá  a sombra
pequenos estilhaços dc madeira, fragmentos

dc musgo seco e bandos dc folhas prateadas.
3.
uma árvore é um anjo
um anjo lenhoso, altamente inflamável,
de alto a baixo prometido
a um incêndio que a si mesmo se combatesse

uma árvore é um anjo da terra
um anjo que esta sempre a enraizar-se
e a erguer-se a poder dc braços

Uma árvore conhece pouco
das nossas maneiras dc lutar
e morrer; por isso:

uma árvore é e não é um anjo
4.
Com os dedos trabalhando
rápidos como abelhas
cegas, tu olhavas e vias
as paisagens que iam dc viagem
segundo as vertiginosas metamorfoses
das nuvens contudo
majestosamente debruçadas
sobre o território sobrevoado.
5.
Na indiferente aprendizagem do convívio connosco,
estas árvores erguem-se para os céus, aos pés do
teu corpo [que se desmorona]
desmoronado. Elas repetem o teu nome no seu.
Prometem a tua morte aos longos e inusitados
ciclos da terra.

Guardiãs das cores e dos tons, do rumor das ramas
e da lenha ardendo, dos ciscos e das cinzas, estas
árvores memoriosas dizem na sua voz dc água
corrente-fixa: <Nós, as árvores, há muito esperamos o vento
e o tempo. Podes confiar.
Dir-lhes-emos quem foste,
a data em que nascestc e aquela em que morreste>

6.
Neste rigoroso inverno, hoje, o sol
solenemente secou as águas
com que a chuva lavara a triste cidade.

E já de noite quando avança ao longo
de uma rua com vivendas protegidas
por altos muros e camelciras acesas

no escuro do seu verde. Erguidas acima
desses muros, rosa e brancas, as camélias
explodem nocturnas e silenciosamente.

Segues, devagar, olhando essas mínimas
explosões, adivinhando a consistência
dc porcelana das suas pétalas, brancas e rosa;

avanças na noite propicia, dc braço dado
meu amor, com a senhora donamorte
7.
Decai co’ a tarde a luz
quando o mundo declina o anoitecer
em que adormece.

Caem co’ a calma as colinas breves
sobre as planícies azuis; Caem as folhas
como caiam aquelas aves que até hoje

caem, dc poema em poema
e nem o seu corpo se destece
quando já na página dc água navegam

Praça do Bocage