Como seria o golpe. Plano de operações do 25 de Abril em 2013
E se o 25 de Abril fosse hoje? Os cenários, os envolvidos e as consequências seriam algo diferentes em 2013
Qualquer coisa como isto talvez tenha acontecido naquele ameaço de Primavera, em Lisboa, a 18 de Março de 2013. Cheirou pela primeira vez a sol, mas depois ficou imenso frio outra vez. Cheguei tarde ao trabalho e meia hora depois recebi a visita inesperada de um velho amigo, um gentil tubarão do betão cuja ascensão pelos andaimes do poder acompanho desde sempre. Nunca soube ao certo de que tipo de política é que ele se ocupa. Talvez pertença a alguma sociedade secreta, talvez seja só alguém com muitos quilómetros de economia nos corredor do poder.
Para todos os efeitos, é engenheiro. Estudou Civil no Técnico e trabalha para privados, como consultor, em grandes obras públicas na Europa de Leste e em África. Por duas vezes, estando nós descontraidamente entre amigos, aconteceu virem buscá-lo de repente. Dois tipos pálidos, de fato e gravata. Uma vez na praia outra no Procópio. As constantes ausências prolongadas, mas imprevistas, que justifica com viagens de negócios e o facto de passar a vida nas Necessidades e em “cursos nos Estados Unidos” garantiram-lhe lá na rua a condição lendária de espião. Ele sabe sempre mais do que nós.
Entrou no jornal sem passar cartão ao segurança. É daquelas pessoas cuja confiança atira sempre o constrangimento para o outro lado da barricada. Ou, como diz Jaime Nogueira Pinto em Novembro, “a quem os homens e os animais obedecem por instinto”. Em mais de 20 anos de amizade nunca me procurou no local de trabalho nem apareceu sem avisar. A nossa vida profissional nunca se cruzava com a amizade. Fomo-nos habituando a preferir falar sobre as coisas em geral e a vida dos outros em particular. Com a cerimónia fácil dos velhos amigos, nunca demasiado íntimos.
Qual não foi o meu espanto quando ele se aproximou, me pousou a mão no ombro e sussurrou: “Boa tarde, caro compatriota. Põe-te, vamos fazer um golpe de Estado.” Sorri, cumprimentei-o espantado por vê-lo. “Onde é que podemos falar?” Disse--lhe para irmos ao bar, mas preferiu conversar no meio da rua, com demasiado calor, entre os pavilhões do Taguspark. “Os militares, em contacto com o que acreditam ser a maioria da sociedade civil, entendem que a Constituição e os órgãos de soberania estão reféns do poder económico e de interesses contrários à pátria, à larga maioria dos seus cidadãos e aos juramentos que lhe foram feitos. Na próxima manifestação vão fazer um golpe de Estado. E tu vais ajudar.” Armei uma gargalhada mas não a soltei, porque ele continuava com um ar sério. Durante mais dez minutos continuou o discurso sem se desmanchar.
Queria então o meu amigo Abel (nome duplamente fictício) que eu ajudasse a “escrever a revolução”, como ele dizia. Entregou-me um A4 dobrado em quatro partes. “Estuda isto, principalmente os pontos 3.2 e 3.9. É aí que tu entras. Não não me ligues, não fales disto a ninguém. Quando eu te ligar, aproxima-te de uma televisão a funcionar, com o som ligado. Começa já a escrever. Amanhã falamos.”
Afastou-se. Li o documento. Como não sabia muito bem o que pensar, reparei especialmente nos pontos 3.2 e 3.9, como me recomendou. Imaginei-me, de facto, a escrever uma revolução, a ter as ideias do futuro próximo, com a história por instantes na ponta dos dedos. Como tinha de acabar de transcrever uma entrevista, voltei ao jornal. Saí quase às onze da noite e fui comer um bife ao Império. Desdobrei outra vez o documento e pus-me a ler aquilo outra vez.
ENTÃO E A NATO? Tudo aquilo era muito duvidoso: fazer um golpe de Estado, depor o governo e deixar lá o Cavaco e o BPN? Como garantir adesão total das forças armadas e, no mínimo, neutralidade da PSP e da GNR? Milhares de soldados nas ruas, o poder entregue aos militares, isso é bom? Como garantir a neutralidade da comunidade internacional? E a União Europeia? Então e a NATO? Adormeci com aquela frase na cabeça. Então e a NATO? No dia a seguir o Abel ligou-me logo de manhã. Quando vi o número corri para o televisor, liguei-o com som. “Daqui a 15 minutos no Niagara, o café novo da D. Silvina, na Praça do Chile.” Desligou. Por esta altura já me era indiferente se aquilo era verdade ou não. Era demasiado divertido, se fosse uma partida seria a melhor de sempre. Cheguei a horas.
“Ouve primeiro, sem me interromperes. Depois fazes as perguntas.” Ficámos na esplanada. O Abel falava baixo. “O golpe é liderado pelos chefes dos três ramos das forças armadas. As ordens vão sair dos estados maiores, daí para baixo não é provável que haja interrupção das cadeias de comando. A manutenção do PR em Belém é imposição deles, para garantir que há um interlocutor civil e soberano para a comunidade internacional. Alguém a quem os EUA e a Europa possam telefonar. Em diferentes graus, têm sido sondados os parceiros sociais e os líderes da oposição. Por regra, prometem manter-se neutros até se perceber o resultado do golpe. A verdadeira oposição pode vir da banca. Estão desconfiados, mas ainda não tiveram tempo para organizar o contragolpe. É por isso que vamos avançar já no 25 de Abril.”
“A PSP e a GNR, onde o descontentamento é cada vez maior, prometem cumplicidade. Essa lealdade pode variar conforme as zonas do país, mas a principal dificuldade pode ser o Corpo de Segurança Pessoal da PSP. Considera-se, contudo, que os meios do Exército, nomeadamente as forças de operações especiais (rangers e comandos) estão mais que equipadas para lidar com a situação. Em todas as situações a violência será sempre o último recurso. O objectivo é a ocupação pacífica do território. Mas as regras de envolvimento deixarão claro que a autoridade dessa ocupação pacífica não admite oposição. O fogo é uma possibilidade. Uma coisa desta envergadura não admite bluffs. Podem morrer pessoas.” Deus queira que ninguém se magoe.
Está sol, mas o vento torna-se desagradável, torço-me na cadeira. “Nem a União Europeia nem a NATO se podem dar ao luxo de fazer estalar uma guerra na Europa. Pensa-se que farão contenção de danos para que pareça tudo um sobressalto normal do devir democrático pós-moderno. Como a Itália ou a Bélgica não terem governo durante uns tempos. Neste momento a conspiração envolve dezenas de pessoas da sociedade civil. Estão lá o Soares, o Eanes e o Sampaio. Até com o PP houve contactos, não estão indisponíveis para conversar. Há muita coisa a perder e a ganhar. Pensamos que a rápida instituição de um governo de salvação nacional, com gente da esquerda e de direita, pacificará não só a comunidade internacional, mas até os mercados. Os militares informarão o mundo de que o governo deposto se preparava para um golpe contra a Constituição da República por forma a desmantelar o Estado social. A banca, vendo-se derrotada nas ruas, manter-se-á dócil sob ameaça de nacionalização, mas a primeira medida do novo governo será o lançamento de uma megainvestigação à corrupção e aos crimes económicos.”
Percebia-se que repetia o discurso automaticamente, sem pensar. Quantas vezes teria apresentado e explicado aquele documento nas últimas semanas? “Hoje é terça-feira, dia 19 de Março, faltam cinco semanas e dois dias. No dia 25 de Abril a descida da avenida vai começar às 15h. Os sindicatos vão pedir a maior manifestação dos últimos anos. No início de Abril começará a circular a ideia de um cerco ao parlamento. Desta vez o movimento Que Se Lixe a Troika vai associar-se à ideia. Os Indignados e os estivadores também. A CGTP, o PC e o Bloco de Esquerda não vão contrariar. O PS não levantará problemas desde que tenha garantido um quinhão proporcional às sondagens no governo de salvação. A ideia é levar a marcha dos restauradores para São Bento, cercando a Assembleia e a residência oficial do primeiro-ministro. É importante que isto aconteça antes da saída dos militares dos quartéis. Só uma hora e meia depois do início do cerco é que a tropa tomará posição, confirmando a vontade popular. O objectivo é devolver a política às pessoas, aos políticos. Não é entregá-la aos militares.”
E eu? Qual é o meu papel no meio disto? “Já te disse. Tu vais escrever esta revolução. O teu papel é tudo, meu amigo. Eu farei a ponte com o movimento e com as operações psicológicas. Tu terás de ir seguindo algumas orientações que receberás por mim, mas és o responsável por toda a comunicação, a agitação e a propaganda desta revolução.”
EPÍLOGO Passaram cinco semanas, uma noite e dois dias. Noite de 24 de Abril. Estou exausto. Nunca trabalhei tanto na vida. Todos os dias o Abel trazia novas encomendas: o discurso de rendição do Cavaco, as três versões dos primeiros comunicados dos militares (com violência, sem violência e com ameaça de guerra civil), uma letra alternativa para o juramento de bandeira, as palavras de ordem para a manifestação, o primeiro editorial para a RTP ocupada. Um dos processos mais penosos foi o da construção das duas novas músicas que vão servir de senha, contra-senha e hino da revolução. Recebi dois instrumentais, mas o Abel não me quis dizer os autores ou sequer os intérpretes. Por esta altura já deviam estar nas playlists das rádios, mas ainda não as ouvi.
Alimentado pelos relatos sempre vagos do Abel, fui imaginando “o movimento” como uma sala cheia de altas patentes, ex-presidentes, governadores, reitores e catedráticos. A relação com esta entidade mítica, com “o movimento”, também não foi especialmente turbulenta. Tive de escrever três vezes uma das versões do comunicado dos militares. Não conseguiam chegar a acordo sobre o estatuto a dar a Belém até à formação do novo governo. A ala dura fazia questão de sublinhar que o presidente apresentava a rendição do regime às mãos da vontade popular, nas mãos das forças armadas. Os moderados insistiam na necessidade de deixar o presidente salvar a face para poder comunicar com o estrangeiro, prometendo que não se oporiam a que fosse investigado e detido pouco depois, mal houvesse governo.
Tendo o Abel por único contacto, fui acompanhando o desenrolar dos acontecimentos pela televisão e pelos jornais. Tudo como previsto: o Arménio Carlos a pedir uma grande manifestação, as reuniões dos militares, o Soares a endurecer o discurso, o Vasco Lourenço e o bispo das Forças Armadas também. Ontem, dia 23, soube que a nomeação de Berta Cabral para a Secretaria de Estado da Defesa e o trânsito de dez jornalistas do DN para o governo dissiparam as últimas dúvidas. O golpe vai mesmo avançar.
A ordem que tenho é para estar às três da tarde no Marquês de Pombal. Descer a avenida e estar às 15h30 no São Jorge, comprar bilhete para a estreia de “Bibliografia” de João Manso e Miguel Manso e procurar pelo Abel no átrio. Ponho o despertador. Tocam lá em baixo. À uma da manhã? Estranho. Entrega de flores. São cravos, 39 cravos e um cartão.
“Querido Gouveia,
A Revolução agradece-te o maravilhoso esforço com que deste voz aos sonhos e aos legítimos desejos de um povo. Lamentavelmente, a vítima deste golpe és tu e quem te trai são os teus próprios amigos, infames judas. Quanto à revolução, caro compatriota, não a lamentes. Graças a ti, já tem guião. Já está escrita, ficou mais perto e não demora.
P. S. Vamos mesmo ver a estreia do filme do Manso. Vamos todos, a cantarolar o novo hino. E a rir um pouco da tua cara. Vai ser incrível. Não percas.”
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